A
DOUTRINA DA AUTORIDADE SUPREMA DAS
ESCRITURAS
A autoridade da Escritura
Sagrada, razão pela qual deve ser crida e obedecida, não depende do testemunho
de qualquer homem ou igreja, mas depende somente de Deus (a mesma verdade) que
é o seu Autor; tem, portanto, deve ser
recebida, porque é a Palavra de Deus.
Pelo testemunho da Igreja
podemos ser movidos e incitados a um alto e reverente apreço pela Escritura
Sagrada; a suprema excelência do seu conteúdo, a eficácia da sua doutrina, a
majestade do seu estilo, a harmonia de todas as suas partes, o escopo do seu
todo (que é dar a Deus toda a glória), a plena revelação que faz do único meio
de salvar-se o homem, as suas muitas outras excelências incomparáveis e
completa perfeição são argumentos pelos quais abundantemente se evidencia ser
ela a Palavra de Deus; contudo, a nossa plena persuasão e certeza da sua
infalível verdade e divina autoridade provém da operação interna do Espírito
Santo que, pela Palavra e com a Palavra, testifica em nossos corações.
O Juiz Supremo, pelo qual todas
as controvérsias religiosas têm de ser determinadas, e por quem serão
examinados todos os decretos de concílios, todas as opiniões dos antigos
escritores, todas as doutrinas de homens e opiniões particulares; o Juiz
Supremo, em cuja sentença nos devemos firmar, não pode ser outro senão o
Espírito Santo falando na Escritura.
Em dias como os que estamos
vivendo, em que cresce a impressão de que o evangelicalismo moderno
(particularmente o brasileiro) manifesta profunda crise teológica, eclesiástica
e litúrgica, convém considerar novamente essa importante doutrina. Convém uma
palavra de alerta contra antigas e novas tendências de usurpar ou limitar a
autoridade da Palavra de Deus.
I. Definição
Nós afirmamos e professamos a
doutrina da autoridade das Escrituras. Que, por serem divinamente inspiradas,
elas são verídicas em todas as suas afirmativas. As Escrituras são a fonte
infalível de informação que estabelece definitivamente qualquer assunto nelas
tratado: a única regra infalível de fé e de prática, o supremo tribunal de
recursos ao qual a Igreja pode apelar para a resolução de qualquer controvérsia
religiosa.
Isto não significa que as
Escrituras sejam o único instrumento de revelação divina. Os atributos de Deus
se revelam por meio da criação: a revelação natural (cf. Sl 19:1-4 e Rm
1:18-20). Uma versão da sua lei moral foi registrada em nosso coração: a
consciência (cf. Rm 2:14-15), "uma espiã de Deus em nosso peito,"
"uma embaixadora de Deus em nossa alma," como os puritanos costumavam
chamá-la. A própria pessoa de Deus, o
ser de Deus, revela-se de modo especialíssimo no Verbo encarnado, a pessoa do
Senhor Jesus Cristo(cf. Jo 14.19; Cl 1.15 e 3.9).
Mas, visto que Cristo nos fala
agora pelo seu Espírito por meio das Escrituras, e que as revelações da criação
e da consciência não são nem perfeitas e nem suficientes por causa da queda,
que corrompeu tanto uma como outra, a palavra final, suficiente e autoritativa
de Deus para esta dispensação são as Escrituras Sagradas.
II. Base Bíblica
A base bíblica da doutrina da suprema autoridade das Escrituras é tanto
inferencial como direta.
A. Base Inferencial
É inferencial, porque decorre do
ensino bíblico a respeito da inspiração divina das Escrituras. Visto que as
Escrituras não são produto da mera inquirição espiritual dos seus autores (cf.
2 Pe 1.20), mas da ação sobrenatural do Espírito Santo (cf. 2 Tm 3.16 e 2 Pe
1.21), infere-se que são autoritativas. Na linguagem da Confissão de Fé, a
autoridade das Escrituras procede da sua autoria divina: "porque é a
Palavra de Deus."
Isto não significa que cada
palavra foi ditada pelo Espírito Santo, de modo a anular a mente e a
personalidade daqueles que a escreveram. Os autores bíblicos não escreveram
mecanicamente. As Escrituras não foram psicografadas, ou melhor,
"pneumografadas." Os diversos livros que compõem o cânon revelam
claramente as características culturais, intelectuais, estilísticas e
circunstanciais dos diversos autores. Paulo não escreve como João ou Pedro.
Lucas fez uso de pesquisas para escrever o seu Evangelho e o livro de Atos.
Cada autor escreveu na sua própria língua: hebraico, aramaico e grego. Os
autores bíblicos, embora secundários, não foram instrumentos passivos nas mãos
de Deus. A superintendência do Espírito não eliminou de modo algum as suas
características e peculiaridades individuais. Por outro lado, a agência humana
também em nada prejudicou a revelação divina. Seus autores humanos foram de tal
modo dirigidos e supervisionados pelo Espírito Santo que tudo o que foi
registrado por eles nas Escrituras constitui-se em revelação infalível,
inerrante e autoritativa de Deus. Não somente as idéias gerais ou fatos
revelados foram registrados, mas as próprias palavras empregadas foram
escolhidas pelo Espírito Santo, pela livre instrumentalidade dos escritores.
O fato é que, por procederem de
Deus, as Escrituras reivindicam atributos divinos: são perfeitas, fiéis, retas,
puras, duram para sempre, verdadeiras, justas (Sl 19.7-9) e santas (2 Tm 3.15).
B. Base Direta
Mas a doutrina da autoridade das
Escrituras não se fundamenta apenas em inferências. Diversos textos bíblicos
reivindicam autoridade suprema.
Os profetas do Antigo Testamento
reivindicam falar palavras de Deus, introduzindo suas profecias com as assim
chamadas fórmulas proféticas, dizendo: "assim diz o Senhor,"
"ouvi a palavra do Senhor," ou "palavra que veio da parte do
Senhor." No Novo Testamento, vários textos do Antigo Testamento são
citados, sendo atribuídos a Deus ou ao Espírito Santo. Por exemplo: "Assim
diz o Espírito Santo..." (Hb 3:7).
A autoridade apostólica também
evidencia a autoridade suprema das Escrituras. O Apóstolo Paulo dava graças a
Deus pelo fato de os tessalonicenses terem recebido as suas palavras "não
como palavra de homens, e, sim, como em verdade é, a palavra de Deus, a qual,
com efeito, está operando eficazmente em vós, os que credes" (1 Ts 2:13).
Que autoridade teria Paulo para exortar aos gálatas no sentido de rejeitarem
qualquer evangelho que fosse além do evangelho que ele lhes havia anunciado,
ainda que viesse a ser pregado por anjos? Só há uma resposta razoável: ele
sabia que o evangelho por ele anunciado não era segundo o homem; porque não o
havia aprendido de homem algum, mas mediante revelação de Jesus Cristo (Gl.1:8-12).
Jesus também atesta a autoridade
suprema das Escrituras: pelo modo como a usa, para estabelecer qualquer
controvérsia: "está escrito" (exemplos: Mt.4:4,6,7,10; etc.), e ao
afirmar explicitamente a autoridade das mesmas, dizendo em João 10:35 que
"a Escritura não pode falhar."
III. Usurpações da Autoridade
das Escrituras
Apesar da sólida base
bíblico-teológica em favor da doutrina reformada da autoridade suprema das
Escrituras, hoje, como no passado, deparamo-nos com a mesma tendência geral de
diminuir a autoridade das Escrituras. E isso ocorre de duas maneiras: por um
lado, há a propensão em admitir fontes adicionais ou suplementares de
autoridade, que tendem a usurpar a autoridade da Palavra de Deus. Por outro
lado, há a tendência de limitar a autoridade das Escrituras, negando-a,
subjetivando-a ou reduzindo o seu escopo.
Com relação à primeira dessas
tendências, pelo menos três fontes suplementares usurpadoras da autoridade das
Escrituras podem ser identificadas: a tradição (degenerada em tradicionalismo),
a emoção (degenerada em emocionalismo) e a razão (degenerada no racionalismo).
Sempre que um desses elementos é indevidamente enfatizado, a autoridade das
Escrituras é questionada, diminuída ou mesmo suplantada.
A. A Tradição Degenerada em
Tradicionalismo
Este foi um dos grandes
problemas enfrentados pelo Senhor Jesus. A religião judaica havia se tornado
incrivelmente tradicionalista. Havendo cessado a revelação, os judeus, já no
segundo século antes de Cristo, produziram uma infinidade de tradições ou interpretações
da Lei, conhecidas como Mishnah. Essas tradições foram cuidadosamente guardadas
pelos escribas e fariseus por séculos, até serem registradas nos séculos IV e V
A.D., passando a ser conhecidas como o Talmude, a interpretação judaica oficial
do Antigo Testamento até o dia de hoje. Muitas dessas tradições judaicas eram,
entretanto, distorções do ensino do Antigo Testamento. Mas tornaram-se tão
autoritativas, que suplantaram a autoridade do Antigo Testamento. Jesus acusou
severamente os escribas e fariseus da sua época, dizendo:
Em vão me adoram, ensinando
doutrinas que são preceitos de homens. Negligenciando o mandamento de Deus,
guardais a tradição dos homens. E disse-lhes ainda: Jeitosamente rejeitais o
preceito de Deus para guardardes a vossa própria tradição... invalidando a
palavra de Deus pela vossa própria tradição que vós mesmos transmitistes... (Mc.7.7-9,13).
O Apóstolo Paulo também
denunciou essa tendência. Escrevendo aos colossenses, ele advertiu:
Cuidado que ninguém vos venha a
enredar com sua filosofia e vãs sutilezas, conforme a tradição dos homens,
conforme os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo... Se morrestes com
Cristo para os rudimentos do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, vos
sujeitais a ordenanças: Não manuseies isto, não proves aquilo, não toques
aquiloutro, segundo os preceitos e doutrinas dos homens? (Cl.2.8,20-22).
Quinze séculos depois, os
Reformadores se depararam com o mesmo problema: as tradições contidas nos
livros apócrifos e pseudepígrafos, nos escritos dos pais da igreja, nas
decisões conciliares e nas bulas papais também degeneraram em tradicionalismo.
As tradições eclesiásticas adquiriram autoridade que não possuíam, usurpando a
autoridade bíblica. É neste contexto que se deve entender a doutrina reformada
da autoridade das Escrituras. Trata-se, primordialmente, de uma reação à
posição da Igreja Católica.
Isto não significa, entretanto,
que a tradição eclesiástica seja necessariamente ruim. Se a tradição reflete,
de fato, o ensino bíblico, ou está de acordo com ele, não sendo considerada
normativa (autoritativa) a não ser que reflita realmente o ensino bíblico,
então não é má. Os próprios Reformadores produziram, registraram e empregaram
confissões de fé e catecismos (os quais também são tradições eclesiásticas).
Para eles, contudo, esses símbolos de fé não têm autoridade própria, só sendo
normativos na medida em que refletem fielmente a autoridade das Escrituras.
O problema, portanto, não está
na tradição, mas na sua degeneração, no tradicionalismo, que atribui à tradição
autoridade inerente. O tradicionalismo atribui autoridade às tradições, pelo
simples fato de serem antigas ou geralmente observadas, e não por serem
bíblicas. Essa tendência acaba sempre usurpando a autoridade das Escrituras.
B. A Emoção Degenerada em
Emocionalismo
Outra fonte de autoridade que
sempre ameaça a autoridade das Escrituras é a emoção, quando degenerada em
emocionalismo. Isto quase inevitavelmente conduz ao misticismo. Na esfera
religiosa, freqüentemente é dado um valor exagerado à intuição, ao sentimento,
ao convencimento subjetivo. Quando tal ênfase ocorre, facilmente esse
sentimento subjetivo de convicção, pessoal e interno, é explicado misticamente,
em termos de iluminação espiritual e revelação divina direta, seja por meio do
Espírito, seja pela instrumentalidade de anjos, sonhos, visões, arrebatamentos,
etc.
Não é que Deus não tenha se
revelado por esses meios. Ele de fato o fez. Foi, em parte, através desses
meios que a revelação especial foi comunicada à Igreja e registrada no cânon
pelo processo de inspiração. O que se está afirmando é que o misticismo copia,
forja essas formas reais de revelação do passado, para reivindicar autoridade
que na verdade não é divina, mas humana (quando não diabólica). Essa tendência
não é de modo algum nova. Eis as palavras do Senhor através do profeta
Jeremias:
Assim diz o Senhor dos
Exércitos: Não deis ouvido às palavras dos profetas que entre vós profetizam, e
vos enchem de vãs esperanças; falam as visões do seu coração, não o que vem da
boca do Senhor... Até quando sucederá isso no coração dos profetas que
proclamam mentiras, que proclamam só o engano do próprio coração?... O profeta
que tem sonho conte-o como apenas sonho; mas aquele em quem está a minha
palavra, fale a minha palavra com verdade. Que tem a palha com o trigo? diz o
Senhor (Jr.23.16,26,28).
Séculos depois o Apóstolo Paulo
enfrentou o mesmo problema. Ele próprio foi instrumento de revelações
espirituais verdadeiras, inspirado que foi para escrever suas cartas canônicas.
Nessa condição, ele sabia muito bem o que eram sonhos, visões, revelações e
arrebatamentos. Mas, ainda assim, advertiu aos colossenses, dizendo:
"Ninguém se faça árbitro contra vós outros, pretextando humildade e culto
dos anjos, baseando-se em visões, enfatuado sem motivo algum na sua mente
carnal" (Cl.2:18). Tanto Jesus como os apóstolos advertem a Igreja
repetidamente contra os falsos profetas, os quais ensinam como se fossem
apóstolos de Cristo, mas que não passam de enganadores.
Pois bem, sempre que tal coisa
ocorre, a autoridade das Escrituras é ameaçada. O misticismo, como degeneração
das emoções (não se pode esquecer que também as emoções foram corrompidas pelo
pecado) tende sempre a usurpar, a competir com a autoridade das Escrituras,
chegando mesmo freqüentemente a suplantá-la. Na época dos Reformadores não foi
diferente. Eles combateram grupos místicos por eles chamados de entusiastas que reivindicavam autoridade espiritual interior, luz interior, revelações
espirituais adicionais que suplantavam ou mesmo negavam a autoridade das
Escrituras. Esta tem sido igualmente uma das características mais comuns das
seitas modernas, tais como mormonismo, testemunhas de Jeová, adventismo do
sétimo dia, etc. Entre os movimentos pentecostais e carismáticos também não é
incomum a emoção degenerar em emocionalismo, produzindo um misticismo usurpador
da autoridade das Escrituras.
C. A Razão Degenerada em
Racionalismo
A ênfase exagerada na razão
também tende a usurpar a autoridade das Escrituras. O homem, devido a sua
natureza pecaminosa, sempre tem resistido a submeter sua razão à autoridade da
Palavra de Deus. A tendência é sempre tê-la (a razão) como fonte suprema de
autoridade. Isto foi conseqüência da queda. Na verdade, foi também a causa,
tanto da queda de Satanás como de nossos primeiros pais. Ambos caíram por darem
mais crédito às suas conclusões do que à palavra de Deus. Desde então, essa
soberba mental, essa altivez intelectual tem tendido sempre a minar a
autoridade da Palavra de Deus, oral (antes de ser registrada) ou escrita.
Por que o ser humano, tendo
conhecimento de Deus, não o glorifica como Deus nem lhe é grato? O Apóstolo
Paulo explica: porque, suprimindo a verdade de Deus (Rm.1:18), "...se
tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração
insensato. Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos... pois eles mudaram a
verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura, em lugar do
Criador...’’ (Rm.1:21-22,25).
Esta tem sido, sem dúvida, a
causa de uma infinidade de heresias e erros surgidos no curso da história da
Igreja. A heresia de Marcião, o gnosticismo, o arianismo, o docetismo, o
unitarianismo, e mesmo o arminianismo são todos erros provocados pela
dificuldade do homem em submeter sua razão à revelação bíblica. Todos
preferiram uma explicação racional, lógica, em lugar da explicação bíblica que
lhes parecia inaceitável. Assim, Marcião concebeu dois deuses, um do Antigo e
outro do Novo Testamento. Por isso, também o gnosticismo fez distinção moral
entre matéria e espírito. Já o arianismo originou-se da dificuldade de Ario em
aceitar a eternidade de Cristo. Do mesmo modo, o docetismo surgiu da
dificuldade de alguns em admitir um Cristo verdadeiramente divino-humano. O
unitarianismo, como nós unicistas, decorre da recusa em aceitar a doutrina
bíblica da Trindade. Os unitários não devem ser confundidos como unicistas. Os
unitários entendem que Deus é um e único, o Pai de Jesus Cristo. Nós os Unicistas
entendemos que o Pai, o Filho e o Espírito são apenas manifestações e ofícios
diferentes do único Deus.
(Deut.6:4). Enquanto que o arminianismo surgiu da dificuldade de Armínio em
conciliar a doutrina da soberania de Deus com a doutrina da responsabilidade
humana (rejeitando a primeira).
A tendência da razão em usurpar
a autoridade das Escrituras tem sido especialmente forte nos últimos dois
séculos. O desenvolvimento científico e tecnológico instigou a soberba
intelectual do homem. Assim, passou-se a acreditar apenas no que possa ser
constatado, comprovado, pela razão e pela lógica. A ciência tornou-se a
autoridade suprema, a única regra de fé e prática. E a Igreja passou a fazer
concessões e mais concessões, na tentativa de harmonizar as Escrituras com a
razão e com a ciência. O relato bíblico da criação foi desacreditado pela
teoria da evolução; os milagres relatados nas Escrituras foram rejeitados como
mitos; e muitos estudiosos das Escrituras passaram a assumir uma postura
crítica, não mais submissa aos seus ensinos. Foi assim que surgiu o método de
interpretação histórico-crítico em substituição ao método histórico-gramatical.
Nele, é a suprema razão humana que determina o que é escriturístico ou mera
tradição posterior, o que é milagre ou mito, o que é verdadeiro ou falso nas
Escrituras.
Mas antes de se atribuir tanta
autoridade à ciência, convém considerar a sua história. Quão falível e mutável
é! A grande maioria dos "fatos" científicos de dois séculos atrás já
foram rejeitados pela própria ciência. Além disso, com que freqüência meras
teorias e hipóteses científicas são tomadas como fatos científicos comprovados!
IV. Limitações da Autoridade das
Escrituras
Além das tendências que acabei
de considerar, propensas a usurpar a autoridade das Escrituras, existem outras,
que tendem a limitar a autoridade bíblica, negando-a, subjetivando-a ou
reduzindo o seu escopo. É o que têm feito a teologia liberal, a neo-ortodoxia e
o neo-evangelicalismo, com relação a três dos principais aspectos da doutrina
da autoridade das Escrituras. Estas três concepções de "autoridade"
bíblica precisam ser entendidas. Elas estão sendo bastante divulgadas em nossos
dias, e são, em certo sentido, até mais perigosas do que as tendências
anteriormente mencionadas, por serem mais sutis. Este assunto pode ser melhor
entendido considerando-se os três principais aspectos da doutrina da autoridade
das Escrituras: sua origem (ou base), certeza (ou convicção) e escopo (ou
abrangência).
A. Origem ou Base da Autoridade
das Escrituras
A origem ou base da autoridade
das Escrituras, como já foi mencionado, encontra-se na sua autoria divina. As
Escrituras são autoritativas porque são de origem divina: Deus (Espírito Santo, ou Espírito de Cristo)
é o seu autor primário. Para nós, as Escrituras são autoritativas porque são a
Palavra de Deus inspirada. Por isso são infalíveis, inerrantes, claras,
suficientes, etc.
A teologia liberal
(racionalista) nega a própria base da autoridade da Escritura, negando a sua
origem divina. Para ela, as Escrituras são mero produto do espírito humano,
expressando verdades divinas conforme discernidas pelos seus autores, bem como
erros e falhas características do homem. Sua autoridade, portanto, não é divina
nem inerente, mas humana, devendo ser determinada pelo julgamento da razão
crítica. Eis o que afirmam: "A verdade divina não é encontrada em um livro
antigo, mas na obra contínua do Espírito na comunidade, conforme discernida
pelo julgamento crítico racional." De acordo com a teologia liberal,
"nós estamos em uma nova situação histórica, com uma nova consciência da
nossa autonomia e responsabilidade para repensar as coisas por nós mesmos. Não
podemos mais apelar à inquestionável autoridade de um livro inspirado."
B. Certeza da Autoridade das
Escrituras
A certeza ou convicção da
autoridade das Escrituras provém do testemunho interno do Espírito de Cristo. A
excelência do seu conteúdo, a eficácia da sua doutrina e a sua extraordinária
unidade são algumas das características das Escrituras que demonstram a sua
autoridade divina. Contudo, admitimos que "a nossa plena persuasão e
certeza da sua infalível verdade e divina autoridade provém da operação interna
do Espírito de Cristo, que pela Palavra e com a Palavra, testifica em nossos
corações."
O testemunho da Igreja com
relação à excelência das Escrituras pode se constituir no meio pelo qual somos
persuadidos da sua autoridade, mas não na base ou fundamento da nossa
persuasão. A nossa persuasão da autoridade da Bíblia dá-se por meio do
testemunho interno do Espírito de Cristo com relação à sua inspiração. Na nossa
concepção , se alguém crê, de fato, na autoridade suprema das Escrituras como
regra de fé e prática, o faz como resultado da ação do Espírito de Cristo. É
ele, e só ele, quem pode persuadir alguém da autoridade da Bíblia.
Essa persuasão não significa de
modo algum uma revelação adicional do Espírito. Significa, sim, que a ação do
Espírito na alma de uma pessoa, iluminando seu coração e sua mente em trevas
(Ef.1:18;4:21-24;2 Co 4:3-4,6), regenerando-a, fazendo-a nova criatura, dissipa
as trevas espirituais da sua mente, remove a obscuridade do seu coração,
permitindo que reconheça a autoridade divina das Escrituras. O Apóstolo Paulo
trata deste assunto escrevendo aos coríntios. Ele explica, na sua primeira
carta, que, "o homem natural não aceita as cousas do Espírito de Deus,
porque lhe são loucura; e não pode entendê-las porque elas se discernem
espiritualmente" (1 Co 2.14). O homem natural, em estado de pecado, perdeu
a sua capacidade original de compreender as coisas espirituais. Ele não pode,
portanto, reconhecer a autoridade das Escrituras; ele não tem capacidade para
isso. Na sua segunda carta aos coríntios o Apóstolo é ainda mais explícito, ao
observar que,
...se o nosso evangelho ainda
está encoberto, é para os que se perdem que está encoberto, nos quais o deus
deste século cegou os entendimentos dos incrédulos, para que lhes não
resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem de
Deus... Porque Deus que disse: de trevas resplandecerá luz —, ele mesmo
resplandeceu em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de
Deus na face de Cristo (2 Co 4:3-4,6).
O que Paulo afirma aqui é que o
homem natural, o incrédulo, está cego como resultado da obra do diabo, que o
fez cair. Nesse estado, ele está como um deficiente visual, que não consegue
perceber nem mesmo a luz do sol. Pode-se compreender melhor o testemunho
interno do Espírito com esta ilustração. O testemunho do Espírito não é uma
nova luz no coração, mas a sua ação através da qual ele abre os olhos de um
pecador, permitindo-lhe reconhecer a verdade que lá estava, mas não podia ser
vista por causa da sua cegueira espiritual.
Deve-se ter em mente, entretanto
— e esse é o ponto enfatizado aqui —, que esse testemunho interno do Espírito Cristo
diz respeito à certeza do crente com relação à plena autoridade das Escrituras,
e não à própria autoridade inerente das Escrituras. A convicção de um crente de
que as Escrituras têm autoridade é subjetiva, mas a autoridade das Escrituras é
objetiva. Esteja-se ou não convencido da sua autoridade, a Bíblia é e continua
objetivamente autoritativa. A neo-ortodoxia existencialista confunde estas
coisas e defende a subjetividade da própria autoridade da Bíblia. Para eles, a
revelação bíblica só é verdade divina quando fala ao nosso coração. Como dizem,
"as Escrituras não são, mas se tornam a Palavra de Deus" quando
existencializadas.
C. Escopo da Autoridade das
Escrituras
Essas posições da teologia
liberal e da neo-ortodoxia com relação à origem e à certeza da autoridade das
Escrituras são seríssimas. Contudo, talvez mais séria ainda (por ser mais
sutil) é a questão relacionada ao escopo da autoridade das Escrituras.
A doutrina neo-evangélica faz
diferença entre o conteúdo salvífico das Escrituras e o seu contexto salvífico,
reivindicando autoridade e inerrância apenas para o primeiro. Mas tal posição
não reflete nem se coaduna com a posição cristã protestante histórica. Para esta, o escopo da
autoridade das Escrituras é todo o seu cânon. É verdade que a Bíblia não se
propõe a ser um compêndio científico ou um livro histórico. Mas, ainda assim,
todas as afirmativas nelas contidas, sejam elas de caráter teológico, prático,
histórico ou científico, são inerrantes e autoritativas.
Os principais problemas
relacionados com a posição neo-evangélica quanto à autoridade das Escrituras são
os seguintes: Primeiro, como distinguir o conteúdo salvífico do seu contexto
salvífico? É impossível.
As Escrituras são a Palavra de Deus revelada
na história. Segundo, como delimitar o que está ou não está diretamente
relacionado ao propósito salvífico, se o propósito da obra da redenção não é
meramente salvar o homem, mas restaurar o cosmo? Que porções das Escrituras
ficariam de fora do escopo da salvação? Como Ridderbos admite, "a Bíblia
não é apenas o livro da conversão, mas também o livro da história e o livro da
Criação..." Que áreas da vida humana ficariam de fora da obra da redenção?
A arte, a ciência, a história, a ética, a moral? Quem delimitaria as fronteiras
entre o que está ou não incluído no propósito salvífico? Admitir, portanto, o
conceito neo-evangélico de autoridade das Escrituras é cair na cilada liberal
do cânon dentro do cânon, e colocar a razão humana como juiz supremo de fé e
prática, pois neste caso competirá ao homem determinar o que é ou não propósito
salvífico.
A questão da autoridade das
Escrituras pode ser resumida na seguinte pergunta: quem tem a última palavra,
Deus, falando através das Escrituras, ou o homem, por meio de suas tradições,
sentimentos, emoção, misticismo ou razão? A resposta é clara. Embora
reconhecendo que o propósito especial das Escrituras não é histórico, moral ou
científico, mas salvífico, nós não diminuímos a sua autoridade de forma alguma:
nem por adições ou suplementos, nem por reduções ou limitações de qualquer
natureza. A fé genuína e verdadeira reconhece a autoridade de todo o conteúdo
das Escrituras, e sua plena suficiência e suprema autoridade em matéria de fé e
práticas eclesiásticas.
Tão importante é a redescoberta
destas doutrinas, que pode-se afirmar que, da aplicação prática das mesmas,
decorreu, em grande parte, a profunda reforma doutrinária, eclesiástica e
litúrgica que dará origem às igrejas de fé verdadeira e genuína. Todas as
doutrinas foram submetidas à autoridade das Escrituras. Todos os elementos de
culto, cerimônias e práticas eclesiásticas foram submetidos ao escrutínio da
Palavra de Deus. A própria vida (trabalho, lazer, educação, casamento, etc.)
foi avaliada pelo ensino suficiente e autoritativo das Escrituras. Muito
entulho doutrinário terá que ser rejeitado. Muitas tradições e práticas
religiosas acumuladas no curso dos séculos foram reprovados quando submetidos
ao teste da suficiência e da autoridade suprema das Escrituras.
É tempo de reavaliar a nossa fé,
nossas práticas eclesiásticas e nossas próprias vidas à luz desta doutrina.
Afinal, admitimos que a Igreja cristã deve estar sempre se reformando — não
pela conformação constante às últimas novidades, mas pelo retorno e conformação
contínuos ao ensino das Escrituras.
Sabendo que a nossa natureza
pecaminosa nos impulsiona em direção ao erro e ao pecado, conhecendo o engano e
a corrupção do nosso próprio coração, reconhecendo os dias difíceis pelos quais
passa o evangelicalismo moderno (particularmente no Brasil), e a mistica
doutrinária, a exegese superficial e a ignorância histórica que em grande parte
caracterizam o neo-evangelicalismo no nosso país, não temos o direito de
assumir que nossa fé e práticas eclesiásticas sejam corretas, simplesmente por
serem geralmente assim consideradas. É necessário submeter nossa fé e práticas
eclesiásticas à autoridade suprema das Escrituras.
Assim fazendo, não é improvável
que nós, à semelhança dos genuínos reformadores,
também tenhamos que rejeitar considerável entulho teológico, eclesiástico e
litúrgico acumulados nos últimos séculos. Não é improvável que venhamos a nos
surpreender, ao descobrir um evangelho místico e deturpado, profundamente tradicionalista,
subjetivo e racionalista. Mas não é improvável também que venhamos a presenciar
uma nova e profunda transformação religiosa em nosso país, para a glória do
Senhor seu evangelho e seu reino, assim
seja Amém!
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