FACULDADE DE TEOLOGIA
TESTEMUNHAS HOJE
CURSO LIVRE
FILOSOFIA
CONCEITO GERAL DE FILOSOFIA CRISTÃ
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DEFINIÇÃO DA FILOSOFIA
O homem sempre se
questionou sobre temas como a origem e o fim do universo, as causas, a natureza
e a relação entre as coisas e entre os fatos. Essa busca de um conhecimento que
transcende a realidade imediata constitui a essência do pensamento filosófico,
que ao longo da história percorreu os mais variados caminhos, seguiu interesses
diversos, elaborou muitos métodos de reflexão e chegou a várias conclusões, em
diferentes sistemas filosóficos.
O termo filosofia
O termo filosofia
deriva do grego phílos (“amigo”, “amante”) e sophía (“conhecimento”, “saber”) e
tem praticamente tantas definições quantas são as correntes filosóficas. Aristóteles
a definiu como a totalidade do saber possível que não tenha de abranger todos
os objetos tomados em particular; os estóicos, como uma norma para a ação;
Descartes, como o saber que averigua os princípios de todas as ciências; Locke,
como uma reflexão crítica sobre a experiência; os positivistas, como um
compêndio geral dos resultados da ciência, o que tornaria o filósofo um
especialista em idéias gerais. Já se propuseram outras definições mais
irreverentes e menos taxativas. Por exemplo, a do britânico Samuel Alexander,
para quem a filosofia se ocupa “daqueles temas que a ninguém, a não ser a um
filósofo, ocorreria estudar”.
Definição da filosofia
Pode-se definir
filosofia, sem trair seu sentido etimológico, como uma busca da sabedoria,
conceito que aponta para um saber mais profundo e abrangente do homem e da
natureza, que transcende os conhecimentos concretos e orienta o comportamento
diante da vida. A filosofia pretende ser também uma busca e uma justificação
racional dos princípios primeiros e
universais das coisas, das ciências e dos valores, e uma reflexão sobre a
origem e a validade das idéias e das concepções que o homem elabora sobre ele
mesmo e sobre o que o cerca.
Evolução da filosofia
Ao longo de sua
evolução histórica, a filosofia foi sempre um campo de luta entre concepções
antagônicas -- materialistas e idealistas, empiristas e racionalistas,
vitalistas e especulativas. Esse caráter necessariamente antagonista da
especulação filosófica decorre da impossibilidade de se alcançar uma visão
total das múltiplas facetas da realidade. Entretanto, é justamente no esforço
de pensar essa realidade, para alcançar a sabedoria, que o homem vem
conquistando ao longo dos séculos uma compreensão mais cabal de si mesmo e do
mundo que o cerca, e uma maior compreensão das próprias limitações de seu
pensamento.
Origem da filosofia
As culturas mais
primitivas e as antigas filosofias orientais expunham suas respostas aos
principais questionamentos do homem em narrativas primitivas, geralmente orais,
que expressavam os mistérios sobre a origem das coisas, o destino do homem, o
porquê do bem e do mal. Essas narrativas, ou “mitos”, durante muito tempo
consideradas simples ficções literárias de caráter arbitrário ou meramente
estético, constituem antes uma autêntica reflexão simbólica, um exercício de
conhecimento intuitivo.
Observando que os
antigos narradores -- Homero, Hesíodo -- só transmitiram tradições, sem dar
nenhuma prova de suas doutrinas, Aristóteles, um dos fundadores da filosofia
ocidental, distinguiu entre filosofia e mito dizendo ser próprio dos filósofos
o dar a razão daquilo que falam.
Estabeleceu-se assim
na cultura ocidental uma primeira delimitação do conceito de filosofia como
explicação racional e argumentada da realidade. No entanto, não havia sido
definida nesse momento a separação da filosofia e das diversas ciências.
Aristóteles, por exemplo, investigou tanto sobre metafísica especulativa, como
sobre física, história natural, medicina e história geral, todas reunidas sob a
denominação comum de filosofia. Somente a partir da baixa Idade Média e mais
ainda do Renascimento, as diversas ciências se diferenciaram e a filosofia se
definiu em seus atuais limites e conteúdos.
1 - OS
GRANDES PERÍODOS DA FILOSOFIA
1.1. Filosofia pré-socrática
Pré-socráticos são os
filósofos anteriores a Sócrates, que viveram na Grécia por volta do século VI
a.C., considerados os criadores da filosofia ocidental. Essa fase, que
corresponde à época de formação da civilização helênica, caracteriza-se pela
preocupação com a natureza e o cosmos. Ela inaugura uma nova mentalidade,
baseada na razão, e não mais no sobrenatural e na tradição mítica. A escola
jônica (ou escola de Mileto), eleática, atomista e pitagórica são as principais
do período.
Os físicos da Jônia,
como Tales de Mileto (624 a.C.-545 a.C.), Anaximandro (610 a.C.-547 a.C.),
Anaxímenes (585 a.C.-525 a.C.) e Heráclito (540 a.C.-480 a.C.), procuram
explicar o mundo pelo desenvolvimento de uma natureza comum a todas as coisas e
em eterno movimento. Heráclito, considerado o mais remoto precursor da
dialética, afirma a estrutura contraditória e dinâmica do real. Para ele, tudo
está em constante modificação. Daí sua frase “não nos banhamos duas vezes no
mesmo rio”, já que nem o rio e nem quem nele se banha é o mesmo em dois
momentos diferentes da existência. Os pensadores de Eléa, como Parmênides (515
a.C.-440 a.C.) e Anaxágoras (500 a.C.-428 a.C.), ao contrário de Heráclito,
dizem que o ser é unidade e imobilidade e que a mutação não passa de uma
aparência. Para Parmênides, o ser é ainda completo, eterno e perfeito.
Os atomistas, como
Leucipo (460 a.C.-370 a.C.) e Demócrito (460 a.C.-370 a.C.), sustentam que o
universo é constituído de átomos eternos, indivisíveis e infinitos reunidos
aleatoriamente.
Pitágoras (580
a.C.-500 a.C) afirma que a verdadeira substância original é a alma imortal, que
preexiste ao corpo e no qual se encarna como em uma prisão, como castigo pelas
culpas da existência anterior. O pitagorismo representa a primeira tentativa de
apreender o conteúdo inteligível das coisas, a essência, prenúncio do mundo das
idéias de Platão.
1.1.1. Filosofia clássica (de 470 a 320 a.c.)
A Filosofia da Grécia
Antiga teve nos sofistas e em Sócrates seus principais expoentes. Eles se
distinguem pela preocupação metafísica, ou procura do ser, e pelo interesse
político em criar a cidade harmoniosa e justa, que tornasse possível a formação
do homem e da vida de acordo com a sabedoria. Este período corresponde ao
apogeu da democracia e é marcado pela hegemonia política de Atenas.
Os sofistas,
filósofos contemporâneos de Sócrates, como Protágoras de Abdera (485 a.C.-410
a.C.) e Górgias de Leontinos (485 a.C.-380 a.C.), acumulam conhecimento
enciclopédico e são educadores pagos pelos alunos. Pretendem substituir a
educação tradicional, destinada a formar guerreiros e atletas, por uma nova
pedagogia, preocupada em formar o cidadão da nova democracia ateniense. Com
eles, a arte da retórica – falar bem e de maneira convincente a respeito de
qualquer assunto – alcança grande desenvolvimento.
Conhecido somente
pelo testemunho de Platão, já que não deixou nenhum documento escrito, Sócrates
(470 a.C.?-399 a.C.) desloca a reflexão filosófica da natureza para o homem e
define, pela primeira vez, o universal como objeto da Ciência. Dedica-se à
procura metódica da verdade identificada com o bem moral. Seu método se divide
em duas partes. Pela ironia (eironéia, do grego: perguntar), ele força seu
interlocutor a reconhecer que ignora o que pensava saber. Descoberta a ignorância,
Sócrates tenta extrair do interlocutor a verdade contida em sua consciência
(método denominado de maiêutica).
Discípulo de
Sócrates, Platão (427 a.C.?-347 a.C.?) afirma que as idéias são o próprio
objeto do conhecimento intelectual, a realidade metafísica (ver Platonismo).
Para melhor expor sua teoria, utiliza-se de uma alegoria, o mito da caverna, no
qual a caverna simboliza o mundo sensível, a prisão, os juízos de valor, onde
só se percebem as sombras das coisas. O exterior é o mundo das idéias, do
conhecimento racional ou científico. Feito de corpo e alma, o homem pertenceria
simultaneamente a esses dois mundos. A tarefa da Filosofia seria a de libertar
o homem da caverna, do mundo das aparências, para o mundo real, das essências.
Platão é considerado o iniciador do idealismo.
Seguidor de Platão,
Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) aperfeiçoa e sistematiza as descobertas de
Platão e Sócrates. Desenvolve a lógica dedutiva clássica (formal), que postula
o encadeamento das proposições e das ligações dos conceitos mais gerais para os
menos gerais. A lógica, segundo ele, é um instrumento para atingir o
conhecimento científico, ou seja, aquilo que é metódico e sistemático. Ao
contrário de Platão, afirma que a idéia não possui uma existência separada –
ela só existe nos seres reais e concretos.
1.2. Filosofia
pós-socrática
de 320 a.C. até o início da era cristã
As correntes
filosóficas do ceticismo, epicurismo e estoicismo traduzem a decadência
política e militar da Grécia.
Primeira grande
corrente filosófica após o aristotelismo, o ceticismo, que tem em Pirro (365
a.C.?-275 a.C.) seu principal representante, afirma que as limitações do
espírito humano nada permitem conhecer seguramente. Assim, conclui pela
suspensão do julgamento e permanência da dúvida. Ao recusar toda afirmação
dogmática (ver Dogmatismo), prega que o ideal do sábio é o total despojamento,
o perfeito equilíbrio da alma, que nada pode perturbar. Os cínicos, como
Diógenes (413 a.C.-323 a.C.) e Antístenes (444 a.C.-365 a.C), desprezam as convenções
sociais para levar uma vida natural primitiva. Afirmam que só a virtude, por
libertar o homem do desejo de possuir bens materiais, pode purificá-lo.
Epicuro (341 a.C.
-270 a.C.) e seus seguidores, os epicuristas, viam no prazer, obtido pela
prática da virtude, o bem. O prazer consiste no não-sofrimento do corpo e na
não-perturbação da alma. Os estóicos, como Sêneca (4 a.C.- 65 d.C.) e Marco
Aurélio (121-180), que se opõem ao epicurismo, pregam que o homem deve
permanecer indiferente a circunstâncias exteriores, como dor, prazer e emoções.
Procuram submeter sua conduta à razão, mesmo que isso traga
dor e sofrimento, e não prazer.
No século III da Era
Cristã, Plotino (205-270) pensa o platonismo na perspectiva histórica do
Império Romano. As doutrinas neoplatônicas têm grande influência sobre os
pensadores cristãos.
1.3. Filosofia
medieval
Ao retomar as idéias
de Platão, Santo Agostinho (354-430) identifica o mundo das idéias com o mundo
das idéias divinas. Através da iluminação, o homem recebe de Deus o
conhecimento das verdades eternas. Esta corrente da Filosofia e seus
desenvolvimentos são conhecidos como patrística, por ser elaborada pelos padres
da Igreja Católica. Entre os séculos V e XIII predomina a escolástica, o
conjunto das doutrinas oficiais da Igreja, fortemente influenciadas pelos
pensamentos de Platão e Aristóteles. Os representantes da escolástica estão
preocupados em conciliar razão e fé e desenvolver a discussão, a argumentação e
o pensamento discursivo. Uma das principais correntes filosóficas da época é o
tomismo, doutrina escolástica do teólogo italiano Santo Tomás de Aquino (1225-1274), que encontra correspondência na
estrutura socioeconômica do feudalismo, rigidamente estratificada.
1.4. Filosofia
moderna
A desintegração das
estruturas feudais, as primeiras grandes descobertas da Ciência – como o
heliocentrismo de Galileu
Galilei e as leis das órbitas
planetárias de Kepler – e a ascensão da burguesia assinalam a crise do
pensamento medieval e a emergência do Renascimento. Em contraste com a
filosofia medieval, religiosa, dogmática e submissa à autoridade da Igreja, a
filosofia moderna é profana e crítica. Representada por leigos que procuram
pensar de acordo com as leis da razão e do conhecimento científico, caracteriza-se
pelo antropocentrismo – atitude que consiste em considerar o homem o centro do
universo – e humanismo. O único método aceitável de investigação filosófica é o
que recorre à razão. René Descartes
(1596-1650), criador do cartesianismo, é considerado o fundador da
filosofia moderna. Ele inaugura o racionalismo, doutrina que privilegia a
razão, considerada fundamento de todo o conhecimento possível. Dentro desta
corrente destacam-se também Spinoza (1632-1677) e Leibniz (1646-1716).
Ao contrário dos
antigos pensadores que partiam da certeza, Descartes parte da dúvida metódica,
que põe em questão todas as supostas certezas. Ocorre a descoberta da
subjetividade, ou seja, o conhecimento do mundo não se faz sem o sujeito que
conhece. O foco é deslocado do objeto para o sujeito, da realidade para a
razão. O percurso da dúvida cartesiana, ao colocar em questão a existência do
mundo, descobre o ser pensante (“Penso, logo existo”).
Além do racionalismo,
as duas principais correntes da filosofia moderna são o empirismo e o
idealismo, movimentos que têm relação com a ascensão econômica e social da
burguesia e com a Revolução Industrial.
No século XVII, o
inglês Francis Bacon (1561-1626) critica o método dedutivo da tradição
escolástica, que parte de princípios considerados como verdadeiros e
indiscutíveis, e esboça as bases do método experimental, o empirismo, que
considera o conhecimento como resultado da experiência sensível. Na mesma
linha, estão os pensamentos de Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke
(1632-1704) e David Hume (1711-1776). O empirismo pode ser considerado
precursor do positivismo.
Século XVIII – O
racionalismo cartesiano e o empirismo inglês preparam o surgimento do
iluminismo, no século XVIII, caracterizado pela defesa da Ciência e da
racionalidade crítica, contra a fé, a superstição e o dogma religioso.
Contemporâneo da Revolução Industrial representa os interesses da burguesia
intelectual da época e influencia a Revolução Francesa. Os principais nomes do
movimento são Voltaire (1694-1778) e
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).
Immanuel Kant (1724-1804) deseja fazer a síntese do racionalismo e do
empirismo, a partir de uma análise crítica da razão. Supera esses dois
movimentos ao afirmar que o conhecimento só existe a partir dos conceitos de
matéria e forma: a matéria vem da experiência sensível e a forma é dada pelo
sujeito que conhece.
O idealismo, a
terceira grande corrente da filosofia moderna, consiste na interpretação da
realidade exterior e material a partir do mundo interior, subjetivo e espiritual.
Isso implica na redução do objeto do conhecimento ao sujeito conhecedor. Ou
seja, o que se conhece sobre o homem e o mundo é produto de idéias, representações e
conceitos elaborados pela consciência humana. Um dos principais
expoentes é Friedrich Hegel (1770-1831). Para explicar a realidade em constante
processo, Hegel estabelece uma nova lógica, a dialética. Defende que todas as
coisas e idéias morrem. Essa força destruidora é também a força motriz do
processo histórico.
Século XIX – O positivismo
de Auguste Comte (1798-1857) considera
apenas o fato positivo (aquele que pode ser medido e controlado pela
experiência) como adequado para estudo. É uma reação contra o idealismo e as
teorias metafísicas do pensamento alemão. O método é retomado no século XX, no
neopositivismo, cujo principal representante é Ludwig Wittgenstein (1889-1951).
Ainda no século XIX,
Karl Marx (1818-1883) utiliza o método
dialético e o adapta à sua teoria, o materialismo histórico, que considera o
modo de produção da vida material como condicionante da História. O
marxismo critica a filosofia hegeliana
(“não é a consciência dos homens que determina seu ser, mas, ao contrário, é
seu ser social que determina sua consciência”) e propõe não só pensar o mundo,
mas transformá-lo. Assim, formula os princípios de uma prática política,
voltada para a revolução. Ganha força com a vigência do socialismo em vários
países, como a União Soviética, onde era a filosofia oficial.
Nesta época, surgem
também nomes cuja obra permanece isolada, sem filiar-se a uma escola
determinada, como é o caso de Friedrich Nietzsche (1844-1900). Ele formula uma crítica aos
valores tradicionais da cultura ocidental, como o cristianismo, que considera decadente
e contrário à
criatividade e espontaneidade
humana. A tarefa da Filosofia seria, então, a de libertar o homem dessa
tradição. No fim do século XIX, o pragmatismo defende o empirismo no campo da
teoria do conhecimento e o utilitarismo (busca a obtenção da maior felicidade
possível para o maior número possível de pessoas) no campo da moral. Valoriza a
prática mais do que a teoria e dá mais importância às conseqüências e efeitos
da ação do que a seus princípios e pressupostos.
1.5. Renascimento
As grandes
transformações culturais, econômicas e sociais dos séculos XV e XVI afetaram
também a filosofia, que, de monopólio até então quase exclusivo da classe
universitária (“escolástica” é o mesmo que “escolar”) passou a interessar a uma
outra camada de intelectuais, sem vínculo com a universidade e mais ligados à
aristocracia e à cultura dos palácios. O resultado foi a ruptura dos vínculos
com a teologia e um crescente processo de
secularização da filosofia. Entre muitos dos novos intelectuais, o
interesse primordial já não era pelos temas sacros (divinae litterae, “letras
divinas”) e sim pela literatura secular (humanae litterae), daí seu nome de
“humanistas”. As preocupações dos filósofos renascentistas, que seriam
desenvolvidas nos séculos posteriores, giraram em torno de três grandes temas:
o homem, a sociedade e a natureza.
Foram os humanistas
que se encarregaram da reflexão sobre o primeiro desses temas. A nova
organização do pensamento renascentista fez prevalecer Platão sobre
Aristóteles, a retórica sobre a dialética medieval, os
diálogos literários sobre
as disputas lógicas escolásticas.
Com a recuperação da literatura clássica, manifestaram-se também as influências
das filosofias do último período da antiguidade, como o atomismo, o ceticismo e
o estoicismo.
No pensamento social,
sobressaiu a figura de Nicolau Maquiavel, que defendeu em O príncipe (1513) a
aplicação da “razão de estado” sobre as normas morais. No século XVII
destacou-se no pensamento político as figuras do inglês Thomas Hobbes e do
holandês Hugo Grotius. O primeiro defendeu a existência de um estado forte como
condição da ordem social; Grotius apelou para a lei natural como salvaguarda
contra a arbitrariedade do poder político.
1.6. Filosofia
contemporânea
A partir do começo do
século XX teve início uma reflexão radical sobre a natureza da filosofia, sobre
a determinação de seus métodos e objetivos. No que diz respeito ao método,
destacaram-se as novas reflexões sobre a epistemologia ou ciência do
conhecimento -- surgidas a partir do estudo analítico da linguagem -- e o
impulso dado à filosofia da ciência. As preocupações fundamentais do pensamento
filosófico foram as concernentes ao homem e sua relação com o mundo que o
cerca.
Dentro da chamada
filosofia analítica, o empirismo lógico do Círculo de Viena foi uma das
correntes filosóficas que mais ressaltaram ser a filosofia como um método de
conhecimento. Para essa corrente, o objeto da filosofia não é a proposição de
um sistema universal e coerente que permita explicar o mundo, mas sim
o esclarecimento da
linguagem das proposições
lógicas ou científicas. Ora, para que elas tenham sentido, devem ser
verificáveis, de tal modo que as que não o forem -- por exemplo, proposições
acerca da ética ou da religião -- carecem de qualquer interesse filosófico.
Também a escola de Oxford considerou a linguagem como objeto de seu estudo, se
bem que tenha concentrado sua atenção na linguagem comum, na qual quis
descobrir, latentes, as várias concepções elaboradas sobre o mundo. O austríaco
Ludwig Wittgenstein insistiu na importância fundamental do estudo da linguagem
e afirmou que ela participa da estrutura da realidade, já que não é senão um
reflexo, uma “figura”, da mesma.
A fenomenologia de
Edmund Husserl propôs uma análise descritiva que permitisse chegar à evidência
da “própria coisa”, não como existente mas como pura essência. Para o vitalismo
de Henri Bergson há dois modos de conhecimento: o analítico, no campo da
ciência, e a intuição, própria da filosofia e único meio de captar a
profundidade do homem e do mundo.
No que diz respeito
às inquietações e propostas da moderna filosofia, cumpre citar o
instrumentalismo de John Dewey, que estabeleceu como orientação da filosofia e
como critério da verdade a utilidade de uma idéia face às necessidades humanas e
sociais; o existencialismo, que antepôs, na sua reflexão filosófica, a própria
existência do homem a qualquer outra realidade; ou o estruturalismo, que
postulou, no estudo de qualquer realidade, que ela devia ser considerada nas
suas inter-relações com o todo de que faz parte.
Numerosos filósofos
integraram em seu pensamento elementos pertencentes a escolas filosóficas
diferentes. Sartre, por exemplo, foi existencialista e marxista, e os
pensadores da chamada escola de Frankfurt ensaiaram uma síntese de marxismo e
psicanálise.
Tanto o marxismo, que com sua pretensão de constituir um instrumento
transformador da sociedade, ultrapassou a simples classificação de escola
filosófica, quanto a psicanálise, que, ao contrário, somente pretendeu em
princípio ser uma teoria e uma terapia psicológicas, exerceram influência
poderosa no pensamento filosófico contemporâneo.
2 - FILOSOFIA
ANALÍTICA
Dentro do pensamento
contemporâneo, o que se costuma chamar de filosofia analítica não é exatamente
um movimento homogêneo, e sim um conjunto de tendências. Mas essa denominação
genérica é plenamente justificável, na medida em que, diante dos problemas
filosóficos, essas tendências partilham uma determinada atitude que não tinha
sido desenvolvida anteriormente.
O que faz essas
correntes parecerem aparentadas entre si é a ênfase em ver a filosofia, antes
de tudo, como análise -- ou seja, elucidação, esclarecimento. Nesse aspecto,
seu interesse voltou-se fundamentalmente para a lógica e a análise dos
conceitos subjacentes à linguagem, considerando que muitos dos dilemas
filosóficos habituais podem ser resolvidos -- ou deixados de lado, por
insolúveis – mediante o estudo dos termos em que estão expostos.
Por suas concepções,
a filosofia analítica se liga à tradição empirista anglo-saxônica. Não é de
estranhar, portanto, que seu início se identifique com dois filósofos
britânicos de Cambridge, Bertrand Russell e G. E. Moore, ambos nascidos na
década de 1870, e que o enfoque dado por eles à percepção se vincule estreitamente
ao proposto por John Locke no século XVII.
Bertrand Russell se
caracterizou por abordar os problemas filosóficos através da lógica formal e
por considerar que o único meio de adquirir conhecimento do mundo eram as
ciências físicas. A teoria de Russell estava profundamente relacionada com a
dos positivistas lógicos da escola de Viena, para os quais a tarefa principal
da filosofia era distinguir entre as afirmações demonstráveis a partir da
lógica e dos dados empíricos e as que não passavam de enunciados metafísicos
indemonstráveis, ou “pseudoproposições”.
Moore, ao contrário,
nunca achou que fosse preciso empregar a lógica formal ou converter a filosofia
em ciência. Defendeu o senso comum frente à grandiloqüência metafísica e
sustentou que o caminho adequado para resolver um problema filosófico consistia
em perguntar qual era sua causa.
Figura básica na
história da filosofia analítica, com dois períodos criativos diferenciados e
mesmo antitéticos, foi o lógico austríaco Ludwig Wittgenstein, que ensinou em
Cambridge. Sua primeira fase é representada pelo Tractatus logico-philosophicus
(1922; Tratado lógico-filosófico), no
qual defendia um atomismo lógico. No nível lingüístico, as proposições
são os átomos, ou seja, os enunciados mais simples se podem fazer sobre o
mundo. Sua segunda fase foi marcada pelas Philosophische Untersuchungen (1953;
Pesquisas filosóficas), publicadas depois da morte do autor, que nelas adotou
pontos de vista diametralmente opostos aos anteriores. Nessa segunda obra, ele
sustentou que a linguagem é um instrumento que pode ser empregado para um
número indefinido de propósitos, uma instituição humana não sujeita a regras.
Os “jogos da linguagem” são usos lingüísticos e correspondem à função
pragmática e ativa da linguagem. As idéias de Wittgenstein nessa etapa foram
acompanhadas por pensadores como os ingleses John Austin e Gilbert Ryle, os
quais enfatizaram a função social da linguagem e a usaram como campo de
investigação para o estudo dos processos mentais do indivíduo.
A gramática
transformacional generativa do americano Noam Chomsky, que deu novo rumo às
teorias lingüísticas, por sua vez adotava pontos desenvolvidos por Austin e
Ryle. O enfoque mais positivista da filosofia analítica também permanece
latente em diversos pensadores, entre os quais outro americano, Willard Van
Orman Quine.
2.1. Filosofia Indiana
Ao contrário dos
gregos, os hindus desprezaram a física e a cosmologia em favor da ontologia e
podem ser considerados os verdadeiros fundadores da lógica e da metafísica.
Taranto narra a visita de um filósofo hindu a Sócrates, e o Timeu de Platão é
de nítida inspiração hinduísta.
Filosofia indiana é a denominação genérica que se dá ao conjunto de
concepções, teorias e sistemas desenvolvidos pelas civilizações do subcontinente
indiano. Três conceitos fundamentam o pensamento filosófico indiano: o eu, ou
alma (atman), as ações (karma), e a libertação (moksha). Exceto pelo charvaka
(materialismo radical), todas as filosofias indianas lidam com esses três
conceitos e suas inter-relações, embora isso não signifique que aceitem sua
validade objetiva precisamente da mesma maneira.
Dos três conceitos, o
karma, que representa a eficácia moral das ações humanas, parece ser o mais
tipicamente indiano. O conceito de atman corresponde, de certa maneira, ao
conceito ocidental do eu espiritual transcendental ou absoluto. O conceito de
moksha como o mais alto ideal igualmente aparece no pensamento ocidental,
especialmente durante a era cristã, embora talvez nunca tenha sido tão
importante quanto o é para a mente hindu. A maioria das filosofias indianas
aceita o moksha como algo possível, e a “impossibilidade do moksha”
(anirmoksha) é tida como uma falácia material que pode tornar viciosa uma
teoria filosófica.
2.2. Textos sagrados
Os escritos sagrados
da cultura hindu, sobretudo os Vedas (os mais antigos textos sagrados da
Índia), os Upanishads e o Mahabharata, há muito influenciam o pensamento
filosófico indiano.
Os hinos védicos, escrituras hindus datadas do segundo
milênio antes da era cristã, são os mais antigos registros remanescentes, na
Índia, do processo pelo qual a mente humana produz seus deuses, bem como do
processo psicológico da produção de mitos, que leva a profundos conceitos
cosmológicos.
Os Upanishads
(tratados filosóficos indianos) contêm uma das primeiras concepções da
realidade universal, onipresente e espiritual que conduzem ao monismo radical
(absoluto não-dualismo, ou unidade essencial da matéria e do espírito). Também
contêm antigas especulações dos filósofos indianos sobre a natureza, a vida, a
mente e o corpo humanos, além de ética e filosofia social.
2.3.Sistemas ortodoxos
Os sistemas clássicos, ou ortodoxos, chamados darsanas, discutem
questões como o status do indivíduo finito; a distinção, assim como a relação,
entre corpo, mente e indivíduo; a natureza do conhecimento e os tipos de
conhecimento válidos; a natureza e a origem da verdade; os tipos de entidades
que se pode dizer que existem; a relação entre realismo e idealismo; a questão
sobre se os universos ou as relações são básicos; e o importantíssimo problema
do moksha, ou libertação, sua natureza e os caminhos que a ela conduzem.
As várias filosofias
indianas apresentam, no entanto, tal diversidade de visões, teorias e sistemas,
que se torna quase impossível distinguir características comuns a todas. A
aceitação da autoridade dos Vedas caracteriza todos os sistemas ortodoxos
(astika): Nyaya, Vaisesika, Samkhya, Ioga, Purva Mimansa e Vedanta. Os sistemas
não-ortodoxos (nastika) entre eles o charvaka, o budismo e o jainismo, rejeitam
a autoridade védica. Mesmo entre os filósofos ortodoxos, porém, a fidelidade
aos Vedas limitou muito pouco a liberdade das especulações, e os Vedas podiam
ser citados para legitimar uma vasta diversidade de idéias, fossem monistas ou
atomistas.
Mimansa, ou Purva
Mimansa, é o sistema que fornece regras para a interpretação dos Vedas e
oferece uma justificativa filosófica para a observância do ritual védico. O
Vedanta forma a base da maioria das escolas modernas do hinduísmo e seus
principais textos são os Upanishads e o Bhagavad-Gita. Ao contrário do Mimansa,
é um sistema interessado na interpretação filosófica dos Vedas, mais que com
seus aspectos ritualísticos.
Em sânscrito, Vedanta
significa a “conclusão” (anta) dos Vedas. Como eram muitas as interpretações,
desenvolveram-se várias escolas de Vedanta que, no entanto, têm muitas crenças
em comum: transmigração do eu e o desejo de libertar-se do ciclo de
renascimentos (samsara); a autoridade dos Vedas como meio para essa libertação;
Brahma como motivo da existência do mundo; e o atman como agente de seus
próprios atos e, portanto, receptor das conseqüências da ação (phala). Todas as
escolas de Vedanta rejeitam tanto as filosofias heterodoxas do budismo e do
jainismo como as conclusões das outras escolas ortodoxas. Sua influência no
pensamento indiano é tão profunda que se pode dizer que, em qualquer de suas
formas, a filosofia hindu se tornou Vedanta.
A Nyaya examina
em profundidade o método de raciocínio conhecido como inferência.
Essa escola é importante por sua análise da lógica e da epistemologia. Já o
Vaisesika sobressai por suas tentativas de identificar, inventariar e
classificar as entidades da realidade que se apresentam à percepção humana. A
Samkhya adota um dualismo coerente entre as ordens da matéria e as do eu, ou
alma. Nessa escola, o conhecimento correto consiste na habilidade do eu de se
distinguir da matéria. A Ioga influenciou muitas outras escolas por sua
descrição da disciplina prática para realizar intuitivamente o conhecimento
metafísico proposto pelo sistema Samkhya, a que a Ioga está intimamente
relacionada.
Cada uma dessas
escolas de pensamento foi sistematizada por meio dos conjuntos de sutras. Ao
reunir um determinado número de aforismas, fórmulas ou regras breves e de fácil
memorização, os sutras resumem cada uma das doutrinas.
Filosofia indiana e
pensamento ocidental. Entre os temas considerados pelo pensamento indiano e
ignorados pelo ocidental estão a origem (utpatti) e a apreensão (jnapti) da
verdade (pramanya). Os problemas que os filósofos indianos na maioria
ignoraram, mas que ajudaram a dar forma à filosofia ocidental, incluem a
questão se o conhecimento surge da experiência ou da razão, além das distinções
entre o juízo analítico e sintético e entre verdades contingentes e
necessárias.
A filosofia indiana
começou a interessar o Ocidente no século XVIII, quando foi feita a tradução do
Bhagavad-Gita. No século seguinte, Anquetil-Duperron traduziu do persa, em
latim, cinqüenta dos Upanishads. Foi também no século XIX que a Índia
entrou em contato
com o pensamento
ocidental, especialmente com as filosofias empiristas, utilitaristas e
agnósticas da Grã-Bretanha. No fim do século, John Stuart Mill, Jeremy Bentham
e Herbert Spencer eram os pensadores mais influentes nas universidades
indianas.
As idéias
influenciadas pelo pensamento ocidental serviram para criar uma vertente de
orientação secular e racional, ao mesmo tempo em que estimularam movimentos
sociais e religiosos, entre os quais o movimento Brahmo (Brahma) Samaj, fundado
por Rammohan Ray. No fim do século XIX, o grande santo Ramakrishna Paramahamsa
de Calcutá renovou o interesse pelo misticismo, e muitos jovens racionalistas e
céticos se converteram à fé que ele representava. Ramakrishna pregava uma
diversidade essencial de caminhos que levam à mesma meta. Seus ensinamentos
ganharam forma intelectual no trabalho de Swami Vivekananda, seu famoso
discípulo.
2.4. Século XX
A primeira faculdade
de filosofia da Índia surgiu na Universidade de Calcutá, no início do século
XX, e o primeiro catedrático da matéria foi Sir Brajendranath Seal, acadêmico
versátil que dominava diversas disciplinas científicas e humanísticas. Sua
principal obra publicada é As ciências positivas dos antigos hindus, que
discorre sobre a história da ciência e relaciona os conceitos filosóficos hindus
a suas teorias científicas.
Em pouco tempo,
porém, os filósofos mais estudados nas universidades indianas passaram a ser os
alemães Kant e Hegel, e os sistemas filosóficos (com antigos foram avaliados à
luz do idealismo alemão). A noção hegeliana do espírito absoluto encontrou
ressonância na antiga noção vedanta de Brahma. O mais eminente estudioso hindu
hegeliano é Hiralal Haldar, que abordou o problema da relação da personalidade
humana com o absoluto, como se evidencia em seu livro Neo-hegelianismo. O
acadêmico kantiano que se tornou mais conhecido foi K. C. Bhattacharyya.
Alguns indianos que
viveram na primeira metade do século XX merecem menção por suas contribuições
originais ao pensamento filosófico. Sri Aurobindo, ativista político que mais
tarde se tornou yogin, vê a ioga como uma técnica não apenas de libertação
pessoal, mas também de cooperação com a necessidade cósmica de evolução que
levará o homem a um estado de consciência supramental. Rabindranath Tagore
caracterizou o absoluto como a pessoa suprema e colocou o amor acima do
conhecimento.
Para Mahatma Gandhi,
líder social e político, a unidade da existência, que ele chamou de “verdade”,
pode realizar-se pela prática da não-violência (ahimsa), em que a pessoa atinge
o limite máximo da humildade. Sob a influência do idealismo hegeliano e da
filosofia da mudança, de Henri Bergson, o poeta e filósofo Mohamed Iqbal
concebeu uma realidade criativa e essencialmente espiritual.
2.5. Filosofia Islâmica
O pensamento árabe
representou, em suas mais remotas origens, uma dinâmica projeção dos grandes
sistemas filosóficos gregos, ainda que vazado em língua semítica e fundamente
modificado sob a influência oriental. A dimensão desse fato torna-se imensa
quando se considera que o Ocidente deve aos filósofos árabes quase toda a
preservação, já em nível crítico, do platonismo e, sobretudo, do aristotelismo.
Filosofia islâmica é
o pensamento expresso em língua árabe e intimamente relacionado à religião
muçulmana que floresceu entre os séculos VII e XV. Excluem-se dessa denominação
as tendências modernas e contemporâneas da filosofia árabe, analisadas apenas
como floração do Oriente dentro e fora dos limites da Idade Média latina.
Na origem e, a rigor,
ao longo de toda a sua evolução, a filosofia árabe transmite ao mundo ocidental
os fundamentos de quase todo o pensamento filosófico do Renascimento, em
particular na Espanha e na Itália. Sem a contribuição dos comentadores árabes,
o Renascimento seria depositário apenas do monólogo cristão da Idade Média.
Seria correto dizer que os próprios pensadores medievais, em particular os
tomistas, pagaram pesado tributo a esses ousados “heréticos” orientais.
2.6. Seitas e escolas teológicas
Em seus primórdios, a
filosofia árabe foi principalmente uma filosofia de teólogos, que devem tudo às
crenças e tradições religiosas muçulmanas. Até o século IX, as especulações
filosóficas do mundo árabe restringiam-se às discussões teológicas das primeiras
seitas e escolas ascéticas, cuja suprema preocupação residia no exame de
questões éticas e morais. O primeiro
grande representante dessa
época e notável cultor da
reflexão moral de índole teórica foi Hasan al-Basri, que integrou o grupo
chamado Companheiros do Profeta, responsável pelo início da maioria das
discussões teológicas que logo se cristalizariam na constituição de seitas e
escolas teológicas, como as de Antioquia (século III), de Nasibim, em
comunidade de fala síria, e de Nasibim-Edessa, a principal delas, que floresceu
entre os séculos IV e V e reuniu os nestorianos condenados como heréticos pelo
Concílio de Éfeso (431). A esses nestorianos somaram-se depois outras seitas
igualmente heréticas, como as dos monofisistas (responsáveis pela introdução do
misticismo e dos ideais neoplatônicos), dos zoroastrista persas, dos pagãos de
Harran e até mesmo dos judeus.
Tais seitas e escolas
-- no interior das quais se destacavam os nomes de Alfarabi, Avicena, Avempace,
Abubaker e Averroés, os três últimos já na Espanha -- dedicaram-se inicialmente
a debates de questões como os atributos divinos e os conflitos entre a
predestinação e o livre-arbítrio. Contribuíram consideravelmente para a
concretização de uma reflexão filosófica que já se poderia dizer autônoma, cujo
expoente supremo foi Alkindi, que viveu no século IX. Toda essa estratificação
orgânica da filosofia árabe tornou-se possível, em grande parte, graças à
transmissão ao universo muçulmano de consideráveis vertentes dos sistemas
gregos, sobretudo o aristotelismo e o neoplatonismo, o que se deve à versão
síria do helenismo, à atividade filosófico-religiosa dos nestorianos, ao
misticismo dos teólogos monofisistas egípcios, e finalmente, às traduções
muçulmanas das versões sírias dos textos gregos.
2.7. De Avicena e Algazali
Herdeiro das
tradições aristotélico-platônicas de Alkindi e, principalmente, de Alfarabi,
Avicena foi o mais ilustre dentre todos os muçulmanos orientais. Segundo ele, o
conhecimento forma-se a partir da realidade dos objetos conhecidos, desde a
consciência dos princípios primordiais até a revelação escatológica, passando
pelos princípios universais ou ideais. Sua sistematização da especulação
interior é de capital importância para a filosofia escolástica, que absorveu de
Avicena pelo menos três noções básicas: a da existência enquanto acidente que
se associa à essência; a que se relaciona ao conceito da unidade do intelecto
agente, constituída à custa da ascensão da potência no ato do entendimento; e a
da distinção entre a essência e a existência nos seres criados, equivalentes à
união destes em Deus. Além da contribuição de ordem metafísica, o avicenismo
proporcionou ainda significativas modificações no campo da lógica, em que
conciliou diversos aspectos dos modelos aristotélicos e estóicos.
Como os
predecessores, Avicena tentou harmonizar, em suas várias obras, as formas
abstratas da filosofia com as tradições religiosas do islamismo. Tal pretensão,
porém, falhou em muitos pontos, o que deu origem às críticas movidas contra ele
por Algazali, cujo ceticismo racionalista, particularmente visível em sua
Tahafut al-falasifa (Autodestruição dos filósofos), opõe-se tanto ao
aristotelismo avicenista quanto ao neoplatonismo dos demais filósofos árabes.
Em outras palavras, Algazali não admite racionalização helenizante das crenças
religiosas. Seu Deus é o Deus do homem religioso, e não o do intelectualismo
com vicenista.
2.8. Filosofia árabe na Espanha
Paralelamente às
doutrinas desenvolvidas por Avicena e Algazali, destacam-se aquelas que, a
partir do século XI, foram disseminadas pelos pensadores muçulmanos na Espanha,
onde sobressai o nome de Averroés, o maior dentre todos os filósofos árabes.
Antes dele, distinguiram-se o filósofo judeu Avicebron, Abubaker (autor de um curioso
romance filosófico) e, sobretudo, Avempace, que descreveu o itinerário seguido
pelo homem para reunir-se ao intelecto agente, substância una e comum a todos
os entendimentos possíveis. É essa, ainda que obscuramente expressa, a doutrina
da unidade do intelecto, cujo maior nome foi Averroés.
A obra de Averroés --
que, como seus predecessores, procurou conciliar filosofia e dogma --
representa a maturidade e a culminância da tradição aristotélica no pensamento
muçulmano da Idade Média latina. Esse trabalho teve grande influência sobre a
escolástica. Em essência, o averroísmo sustentava a eternidade do mundo, que,
por haver sido criado por Deus, não tinha na eternidade uma contradição. Esse
mundo criado e eterno teria surgido por emanação do primeiro princípio criador,
mas sua eternidade exige também a eternidade da matéria, na qual subsistiriam,
desde sempre e enquanto possibilidades, as formas extraídas por Deus para
formar as coisas, e não introduzidas na matéria. A essa eternidade da matéria
reagiram Tomás de Aquino e os antiaverroístas. A doutrina de Averroés, no
entanto, iria marcar ainda três outros momentos históricos: no princípio do
século XIII o averroísmo latino de Siger
de Brabante), no final desse mesmo século (por meio de Duns Scotus, Pietro
d'Abano, Marsílio de Pádua e outros) e na segunda metade do século XV (com os
averroístas da Universidade de Pádua). Ao século XV pertence também o último
valor expressivo da filosofia árabe, Aben-jaldun, de tendência neoplatônica.
3 - GRANDES MOVIMENTOS
FILOSÓFICOS
3.1. Atomismo
Entre as teorias dos
filósofos gregos sobre a composição da matéria, o atomismo foi aquela cujas
intuições mais se aproximaram das modernas concepções científicas.
Atomismo, no sentido
lato, é qualquer doutrina que explique fenômenos complexos em termos de
partículas indivisíveis. Enquanto as chamadas teorias holísticas explicam as
partes em relação ao todo, o atomismo se apresenta como uma teoria analítica,
pois considera as formas observáveis na natureza como um agregado de entidades
menores. Os objetos e relações do mundo real diferem, pois, dos objetos do
mundo que conhecemos com os nossos sentidos.
3.1.1. Atomismo clássico
A teoria atomista foi
desenvolvida no século V a.C. por Leucipo de Mileto e seu discípulo Demócrito
de Abdera. Com extraordinária simplicidade e rigor, Demócrito conciliou as
constantes mudanças postuladas por Heráclito com a unidade e imutabilidade do
ser propostas por Parmênides.
Segundo Demócrito, o
todo, a realidade, se compõe não só de partículas indivisíveis ou “átomos” de
natureza idêntica, respeitando nisso o ente de Parmênides em sua unidade, mas
também de vácuo, tese que entra em aberta contradição com a ontologia
parmenídea. Ambos, ente e não-ente ou vácuo, existem desde a eternidade em mútua
interação e, assim, deram origem ao movimento, o que justifica o pensamento de
Heráclito. Os átomos por si só apresentam as propriedades de tamanho, forma,
impenetrabilidade e movimento, dando lugar, por meio de choques entre si, a
corpos visíveis. Além disso, ao contrário dos corpos macroscópicos, os átomos
não podem interpenetrar-se nem dividir-se, sendo as mudanças observadas em
certos fenômenos químicos e físicos atribuídas pelos atomistas gregos a
associações e dissociações de átomos. Nesse sentido, o sabor salgado dos
alimentos era explicado pela disposição irregular de átomos grandes e
pontiagudos.
Filosoficamente, o
atomismo de Demócrito pode ser considerado como o ápice da filosofia da
natureza desenvolvida pelos pensadores jônios. O filósofo ateniense Epicuro,
criador do epicurismo, entre os séculos IV e III a.C. e o poeta romano
Lucrécio, dois séculos depois, enriqueceram o atomismo de Leucipo e Demócrito,
atribuindo aos átomos a propriedade do peso e postulando sua divisão em “partes
mínimas”, além de uma “espontaneidade interna”, no desvio ou declinação atômica
que rompia a trajetória vertical do movimento
dos átomos, o
que, em termos morais, explicava
a liberdade do indivíduo.
Desenvolvimentos
posteriores. A doutrina atomista teve pouca repercussão na Idade Média, devido
à predominância das idéias de Platão e Aristóteles. No século XVII, porém, essa
doutrina foi recuperada por diversos autores, como o francês Pierre Gassendi,
em sua interpretação mecanicista da realidade física, e pelo alemão Gottfried
Wilhelm Leibniz, que lhe deu um sentido mais metafísico em sua obra
Monadologia. Também os ingleses Robert Boyle e Isaac Newton aceitaram algumas
idéias da doutrina atomística, ao sustentarem que as variações macroscópicas se
deviam a mudanças ocorridas na escala submacroscópica. No século XX, com base
no modelo da teoria atômica, o inglês Bertrand Russell postulou o chamado
“atomismo lógico”, em que transpôs para a lógica os conceitos analíticos
subjacentes ao atomismo clássico.
Atomismo e teoria
atômica. Ao comparar-se o atomismo grego com a ciência atual, é necessário
destacar que o primeiro, dada a unidade de filosofia e ciência, pretendia tanto
solucionar os problemas da mutabilidade e pluralidade na natureza quanto
encontrar explicações para fenômenos específicos. Já a moderna teoria atômica
tem seu interesse centrado na relação entre as propriedades dos átomos e o
comportamento exibido por eles nos diversos fenômenos em que estão envolvidos.
Através do controle das reações nucleares, alcançou-se um novo nível, no qual
os átomos são descritos como constituídos por partículas elementares, as quais
podem transformar-se em energia e esta, por sua vez, em partículas.
3.2. Dialética
Desde os gregos até o
fim da Idade Média, a dialética esteve identificada com a lógica. Ao longo da
história, porém, enriqueceu muito seu significado, até tornar-se, com Hegel e
Marx, uma das categorias mais importantes do pensamento filosófico.
Com a mesma raiz da
palavra diálogo, dialética pode significar dualidade, mas também oposição de
razões, atitudes ou argumentos. A idéia de oposição, antítese ou contradição,
porém, embora essencial à noção de dialética, não esgota seu significado. Para
os filósofos gregos, era essencialmente um método lógico de perguntas e
respostas que permitia chegar à conclusão verdadeira. Modernamente, adquiriu
sentidos e inflexões diferentes e tornou-se uma espécie de pedra filosofal do
nosso tempo, uma maneira dinâmica de interpretar o mundo, os fatos históricos e
econômicos e as próprias idéias.
Em Sócrates, a
dialética inclui três momentos: a hipótese, definição prévia e provisória do
que se pretende conhecer; a ironia, interrogatório que leva o interlocutor a
reconhecer a ignorância do que pretendia saber; e a maiêutica, arte de dar à
luz as idéias adormecidas no espírito do interlocutor. Podia ser utilizada como
simples método de debate, ou para a avaliação sistemática de definições ou
ainda para investigação e classificação das relações entre conceitos gerais e
específicos.
Analisando os
diálogos de Platão, firmados no proceder dialético, nota-se o limitado alcance
do método, em que a conclusão é apenas uma repetição, termos diferentes, da
proposição inicial. Para Aristóteles, a dialética platônica é um método menor
quando confrontado com os da ciência.
Os pensadores
renascentistas e racionalistas, de modo geral, não tiveram grande apreço pela
dialética, que consideravam o método próprio das grandes summas teológicas
escolásticas. No fim do século XVIII, Kant a utilizou nesse sentido,
transferindo para o plano transcendental a eficácia da dialética.
Dialética hegeliana.
Na primeira metade do século XIX, Hegel fez da dialética um fator essencial de
seu sistema, mas não a concebeu como método ou uso da razão, e sim como um
momento da própria realidade. Para ele, a dialética consiste na contínua
tendência dos conceitos a se transformarem em sua própria negação, como
resultado do conflito entre seus aspectos contraditórios internos, o que dá
origem a outros conceitos.
Em Hegel, a dialética
é, portanto, a estrutura do real que, entendido como processo, envolve três
momentos: o da identidade, do ser em si (tese); o da negação, do ser para si
(antítese); e o da negação da negação, do ser em si e para si (síntese). O
momento propriamente dialético do processo é o da negação, implícito no
anterior, da finitude do dado. O processo, porém, só é dialético porque não se
detém na negação, que o imobilizaria. Pela negação da negação, alcança nova
posição, ou positividade, que contém os momentos anteriores e os supera, na
totalização ou síntese. Assim, a dialética se converte na manifestação da
mudança contínua da realidade e do vir-a-ser do espírito absoluto
-- eixo do
sistema hegeliano – na história.
Materialismo
dialético. A idéia de dialética é central também na teoria de Marx que,
diferentemente de Hegel, não a vê como uma dinâmica especulativa, traduzida no
âmbito das idéias ou conceitos, mas como instrumento que permite a compreensão
adequada dos fenômenos históricos, sociais e econômicos reais. Dando conteúdo
concreto à formulação abstrata de Hegel, Marx entende a contradição como mola
do processo histórico, tensão que o propulsiona e o faz progredir, em constante
mudança e transição.
3.3. Empirismo
Na história do
pensamento, o racionalismo fundou-se sobre a crença na capacidade do intelecto
humano para compreender a realidade. Incorreu, todavia, em excessos metafísicos
que fizeram dele um sistema filosófico fechado. Diante disso, surgiria na
Inglaterra o empirismo, segundo o qual nenhuma certeza é possível, nenhuma
verdade é absoluta, já que não existem idéias inatas e o pensamento só existe
como fruto da experiência sensível.
Empirismo é a
doutrina que reconhece a experiência como única fonte válida de conhecimento,
em oposição à crença racionalista, que se baseia, em grande medida, na razão. O
empirismo deu início a uma nova e transcendental etapa na história da
filosofia, tornando possível o surgimento da moderna metodologia científica. Do
ponto de vista psicológico, identifica-se com “sensualismo” ou “sensismo”, pelo
menos em seus representantes mais radicais. Comparado ao positivismo, designa
principalmente o método, enquanto o positivismo designa a doutrina a que esse
método conduz. Em termos estritamente gnosiológicos, o que o caracteriza e
define é a afirmação de que a validade das proposições depende exclusivamente
da experiência sensível. Na perspectiva metafísica, identifica-se o empirismo
com a doutrina que nega qualquer outra espécie de realidade além da que se
atinge pelos sentidos.
3.3.1. Caracterização
Nem sempre é fácil
distinguir empirismo e ceticismo. Considerado o fato de que o empirismo não
participa da dúvida universal, muitos entendem válida sua conceituação como
forma expressiva de dogmatismo. Todavia a dificuldade de caracterizá-lo decorre
do número elevado de suas ramificações. O fenomenismo de David Hume e o
imaterialismo de George Berkeley são duas de suas ramificações mais
significativas, às quais convém ainda acrescentar o próprio positivismo. Apesar
dessas diversificações, alguns autores pretendem caracterizá-lo mediante seis
afirmações básicas, algumas delas essencialmente expressivas de suas formas
mais radicais. São elas:
1)não há idéias inatas,
nem conceitos abstratos;
2)o conhecimento se
reduz a impressões sensíveis e a idéias definidas como cópias enfraquecidas das
impressões sensoriais;
3)as qualidades
sensíveis são subjetivas;
4)as relações entre as
idéias reduzem-se a associações;
5)5) os primeiros
princípios, e em particular o da causalidade, reduzem-se a associações de
idéias convertidas e generalizadas sob forma
de associações habituais;
6)o conhecimento é
limitado aos fenômenos e toda a metafísica, conceituada em seus termos
convencionais, é impossível.
3.3.2. Histórico
O empirismo revelou-se
na filosofia grega sob a forma sensualista, citando-se como seus representantes
Heráclito, Protágoras e Epicuro. Na Idade Média seu mais significativo adepto
foi Guilherme de Occam; expressou-se então por meio do nominalismo, cuja tese
central é a não-existência de conceitos abstratos e universais, mas apenas de
termos ou nomes cujo sentido seria o de designar indivíduos revelados pela
experiência.
O empirismo moderno
tem como seus principais representantes John Locke, Thomas Hobbes, George
Berkeley e David Hume. Mas não se esgota aí o movimento. Sem dúvida, Jeremy
Bentham, John Stuart Mill (em que o empirismo se converte em associacionismo) e
Herbert Spencer podem ser citados como figuras representativas do fenomenismo
nos domínios da ética, da lógica e da filosofia da natureza.
Esse empirismo
enfrentou uma série de dificuldades, sendo a principal e mais profunda a que
Immanuel Kant reconheceu, ao proceder, em sua Kritik der reinem Vernunft (1781;
Crítica da razão pura), à distinção entre a experiência enquanto passo inicial
do conhecimento e enquanto dado absoluto do conhecimento.
O significado do
empirismo pode ser examinado considerando a validade de suas afirmações
centrais. Tais afirmações são:
1)a rejeição da tese
das idéias inatas;
2)a negação das idéias
abstratas;
3)a rejeição do
princípio da causalidade e, por decorrência e generalização, dos primeiros
princípios da razão. A argumentação contra o inatismo foi esgotada por Locke.
Negadas as idéias inatas enquanto idéias explicitadas, elas não poderiam deixar
de estar presentes nas crianças e nos selvagens. A possibilidade de sua
preexistência, meramente virtualizada ou implícita, desde logo é prejudicada,
por se revelar contraditória com a conceituação da consciência tal como a
formulou Descartes e tal como a admitiu Locke. A argumentação contra a validade
da teoria da abstração é da autoria de Berkeley. Hume considera-a definitiva e
irrespondível.
Segundo Berkeley, não
se poderia conceber isoladamente qualidades que não podem existir em separado, como
cor e superfície. Nenhuma condição existe para se pensar em cor, senão em
termos de extensão ou superfície; a vinculação de uma à outra é essencial. De
resto esse foi um dos caminhos explorados por Edmund Husserl, em função da
técnica das variações imaginárias, para atingir o reino das essências. Ainda
segundo Berkeley, qualquer representação será individual. Não se representa o
homem, mas Pedro ou José. O triângulo conceituado nunca deixará de ser
isósceles ou escaleno.
A crítica ao
princípio da causalidade foi feita por Hume e constitui um dos pontos centrais
de sua contribuição à epistemologia. A causalidade, entendida como poder de
determinação e como relação necessária, é recusada. Nenhuma fundamentação
sensorial se lhe poderia oferecer. Apenas se admitem seqüências de eventos
reforçadas em termos de hábitos. Aceita e ampliada sua validade, a crítica
invalida todos os chamados primeiros princípios. Precisamente assim procederam
Stuart Mill, Spencer e, mais modernamente, L. Rougier, Charles Serrus e todo o
Círculo de Viena.
3.4. Epicurismo
Os princípios
enunciados por Epicuro e praticados pela comunidade epicurista resumem-se em
evitar a dor e procurar os prazeres moderados, para alcançar a sabedoria e a
felicidade. Cultivar a amizade, satisfazer as necessidades imediatas, manter-se
longe da vida pública e rejeitar o medo da morte e dos deuses são algumas das
fórmulas práticas recomendadas por Epicuro para atingir a ataraxia, estado que
consiste em conservar o espírito imperturbável diante das vicissitudes da vida.
Epicuro nasceu na
ilha grega de Samos, no ano 341 a.C., e desde muito jovem interessou-se pela
filosofia. Assistiu às lições do filósofo platônico Pânfilo, em Samos, e às de
Nausífanes, discípulo de Demócrito, em Teos. Aos 18 anos viajou para Atenas,
onde provavelmente ouviu os ensinamentos de Xenócrates, sucessor de Platão na
Academia. Após diversas viagens, ensinou em Mitilene e em Lâmpsaco e amadureceu
suas concepções filosóficas. Em 306 a.C. voltou a Atenas e comprou uma
propriedade que se tornou conhecida como Jardim, onde formou uma comunidade em
que conviveu com amigos e discípulos, entre os quais Metrodoro, Polieno e a
hetaira Temista, até o fim de seus dias.
Segundo Diógenes
Laércio, principal fonte de informações sobre Epicuro, o mestre desenvolveu sua
filosofia em mais de 300 volumes, mas esse legado escrito se perdeu. Epicuro
elaborou estudos sobre física, astronomia, meteorologia, psicologia, teologia e
ética, mas do que escreveu só se conhecem três cartas e uma coleção de sentenças
morais e aforismos. A física epicurista inspirou-se na doutrina de Demócrito e
propõe um universo, infinito e vazio, que contém corpos constituídos de átomos,
elementos indivisíveis que se acham em constante movimento. Contrapõe ao
determinismo de Demócrito a tese segundo a qual esses átomos experimentam em
seu movimento um desvio (clinamen) espontâneo, que explica a maior ou menor
densidade da matéria que forma os corpos a partir das colisões e rejeições
entre os átomos. Segundo Epicuro, a alma é uma entidade física, distribuída por
todo o corpo. Quando o indivíduo morre, ela se desintegra nos átomos que a
constituem. A percepção sensorial, por meio da alma, é a única fonte de
conhecimento e, por isso, os epicuristas recomendavam o estudo da natureza para
alcançar a sabedoria.
Para chegar à
ataraxia, o homem deve perder o medo da morte. Como corpo e alma são entidades
materiais, não existem sensações boas ou más depois da morte; assim, o temor da
morte não se justifica. Epicuro aceitava a existência dos deuses, mas
acreditava que eles estavam muito afastados do mundo humano para preocupar-se
com este. Logo, o homem não tem porque temer os deuses, embora possa imitar sua
existência serena e beatífica.
De seus estudos
científicos, Epicuro derivou uma filosofia essencialmente moral. À semelhança
de outras correntes filosóficas da época, como o estoicismo e o ceticismo, suas
concepções vieram ao encontro das necessidades espirituais de seus
contemporâneos, preocupados com a desintegração da polis (cidade) grega. O
prazer sensorial converteu-se na única via de acesso à ataraxia. Esse prazer,
porém, não consiste numa busca ativa da sensualidade e do gozo corporal
desenfreado, como interpretaram erroneamente outras escolas filosóficas e
também o cristianismo, mas baseia-se no afastamento das dores físicas e das
perturbações da alma. O maior prazer, segundo Epicuro, é comer quando se tem
fome e beber quando se tem sede. O “tetrafármaco”, receita do mestre para a
vida tranqüila, tem o seguinte teor: “O bem é fácil de conseguir, o mal é fácil
de suportar, a morte não deve ser temida, os deuses não são temíveis.”
No ano 270 a.C.,
Epicuro morreu e tornou-se objeto de culto para os epicuristas, o que
contribuiu para aumentar a coesão da seita e para conservar e propagar a
doutrina. O epicurismo foi a primeira filosofia grega difundida em Roma, não
apenas entre os humildes, mas também entre figuras importantes como Pisão,
Cássio, Pompônio Ático e outros. O epicurismo romano contou com autores como
Lucrécio e se manteve vivo até o princípio do século IV da era cristã, como
poderoso rival do cristianismo.
3.5. Epistemologia
As questões relativas
à possibilidade e à validade do conhecimento, cruciais na filosofia de todos os
tempos, ganharam renovado interesse na sociedade moderna, voltada para o saber
científico e tecnológico. Quanto maior a importância da ciência, maior a
necessidade de dotá-la de sólidos fundamentos teóricos e critérios de verdade.
Epistemologia,
gnosiologia ou teoria do conhecimento é a parte da filosofia cujo objeto é o
estudo reflexivo e crítico da origem, natureza, limites e validade do
conhecimento humano. A reflexão epistemológica incide, pois, sobre duas áreas
principais: a natureza ou essência do conhecimento e a questão de suas
possibilidades ou seu valor.
3.5.1. O problema do conhecimento
Os filósofos antigos
e medievais abordaram em muitas ocasiões e de formas diversas o problema do
conhecimento, mas foi a partir dos racionalistas e empiristas que o tema ganhou
importância no pensamento filosófico. Conhecimento é o processo que ocorre
quando um sujeito (o sujeito que conhece) apreende um objeto (o objeto do
conhecimento). Esses dois pólos, sujeito e objeto, estão sempre presentes na
relação de conhecimento. O papel que se atribui a um ou outro varia
substancialmente, conforme a posição filosófica a partir da qual se considera
essa relação. Assim, enquanto os filósofos realistas admitem a primazia do
objeto, ou seja, sua existência independente
do sujeito, os
filósofos idealistas defendem a
primazia do sujeito, isto é, o objeto só existe no entendimento do sujeito. Em
alguns casos, o subjetivismo transforma-se num solipsismo, isto é, na afirmação
da impossibilidade do sujeito sair de si para poder conhecer o objeto. O
sujeito só pode apreender as propriedades do objeto ao se transcender, ou seja,
sair de si mesmo. O objeto, pelo contrário, permanece em sua condição e não se
altera, não é modificado pelo sujeito. É este quem sofre modificação pelo
objeto, modificação que é o próprio ato do conhecimento. Se o sujeito
representa para si o objeto tal como é, o conhecimento será verdadeiro. No caso
contrário, o sujeito terá um conhecimento falso do objeto.
3.5.2. Formas de conhecimento
Existem duas formas
básicas de conhecimento: o sensível e o inteligível. O primeiro é o
conhecimento que se adquire por meio dos sentidos e atinge o objeto em sua
materialidade e individualidade. O conhecimento inteligível, ao qual se chega
pelos mecanismos da razão, atinge tipos gerais e leis necessárias e não o
individual e concreto. Alguns pensadores admitem a intuição como forma de
apreensão imediata do objeto. Nessa linha, sobretudo a partir da obra do
filósofo alemão Immanuel Kant, fala-se de conhecimento a priori, isto é, o
conhecimento que não tem origem na experiência, e de conhecimento a posteriori,
que procede da experiência.
3.5.3. Doutrinas sobre o conhecimento
Diante da
possibilidade do conhecimento, existem duas posições extremas e antagônicas: o
ceticismo, que defende a impossibilidade de conhecer o real, e o dogmatismo,
que sustenta que em todos os casos é possível conhecer as coisas tais como são.
Entre essas posições extremas encontram-se os céticos moderados e dogmáticos
moderados. Os céticos moderados afirmam a existência de limites ao conhecimento,
impostos pela constituição psicológica do sujeito e pelos condicionamentos de
seu meio, o que os leva a defender ocasionalmente posições probabilistas,
fundamentadas na dúvida. Os dogmáticos moderados defendem a possibilidade do
conhecimento, desde que se cumpram algumas condições.
Quanto aos
fundamentos do saber, confrontam-se as posições empirista e a racionalista.
Para os filósofos de orientação empirista, a base do conhecimento se encontra
na realidade sensível. No extremo oposto, os racionalistas defendem o caráter
real das entidades conceituais. Modernamente, o racionalismo identifica
realidade e racionalidade, o que elimina toda idéia que subordine o saber à
experiência sensível.
O primeiro grande
filósofo a abordar o estudo do conhecimento de maneira sistemática foi o
francês René Descartes, no século XVII. Descartes tencionou descobrir um
fundamento do conhecimento independente de limites e hipóteses. Para ele,
conhecer é partir de uma proposição evidente, que se apóia numa intuição primária.
Formulou tal proposição na célebre sentença “penso, logo existo”.
Kant negou que a
realidade possa ser explicada somente pelos conceitos e se propôs determinar os
limites e capacidades da razão. Embora existam efetivamente juízos sintéticos a
priori, que são a condição necessária a toda compreensão da natureza, o âmbito
do conhecimento limita-se, no pensamento de Kant, ao reino da experiência.
Para o empirismo, que
influiu significativamente nas primeiras formulações de Kant, a realidade
sensível é o fundamento para o conhecimento não só de todas as entidades que
possam impressionar nossos sentidos, mas também das entidades não sensíveis, as
idéias. Segundo John Locke, representante moderado do empirismo inglês, as
impressões da sensibilidade formam apenas a base primária do conhecimento.
David Hume e alguns autores neopositivistas posteriores consideraram, ao
contrário, que as noções das ciências não são empíricas nem conceituais, mas
formais e, portanto, vazias de conhecimento.
Para alguns empiristas,
existem outras experiências além da sensível, como a experiência histórica, a
experiência intelectual etc. Para os precursores dessa formulação, Friedrich
Nietzsche e Wilhelm Dilthey, que dificilmente poderiam ser considerados
empiristas, o termo “experiência” é entendido em sentido mais amplo. Dentro
dessa linha do empirismo, os autores mais representativos são o alemão Martin
Heidegger e o francês Jean-Paul Sartre, que defenderam posturas
existencialistas; os americanos John Dewey e William James, de orientação
pragmática; e o espanhol José Ortega y Gasset, que manteve a postura por ele
chamada raciovitalismo, na qual
vida e razão constituem os
dois pólos da concepção do mundo.
3.5.4. Conhecimento científico
A epistemologia foi
entendida tradicionalmente como teoria do conhecimento em geral. No século XX,
no entanto, os filósofos se interessaram principalmente por construir uma
filosofia da ciência, na suposição de que, ao formular teorias adequadas ao
conhecimento científico, poderiam avançar pela mesma via na solução de
problemas gnosiológicos mais gerais.
A elaboração de uma
epistemologia desse tipo constituiu a preocupação principal dos autores do
Círculo de Viena, que foram o germe de todo o movimento do empirismo ou
positivismo lógico. Esses pensadores tentaram construir um sistema unitário de
saber e conhecimento, para o que se requeria a unificação da linguagem e da
metodologia das diferentes ciências. A linguagem única deveria ser
intersubjetiva -- o que exige a utilização de convenções formais e de uma
semântica comum -- e universal, ou seja, qualquer proposição deveria poder ser
traduzida para ela.
O alemão Rudolf
Carnap e o austríaco Otto Neurath, pertencentes ao Círculo de Viena,
consideraram que a física era essa linguagem, razão pela qual sua teoria
denomina-se fisicalismo. O fisicalismo foi entendido mais adiante como um
sistema de propriedades e relações observáveis das coisas, o que equivale a
dizer que todos os enunciados sobre quaisquer fatos podem ser traduzidos em
enunciados sobre estados ou processos do mundo físico. Evidentemente,
existem alguns conceitos, como essência
ou enteléquia, que não podem ser transpostos para o mundo físico e, portanto,
não são admissíveis na ciência. Ser real significa sempre ver-se numa relação
com a realidade dada. As proposições metafísicas careceriam, assim, de
significado.
É possível, no
entanto, formular a hipótese da existência de uma realidade independente de
nossa experiência e indicar critérios para sua transposição para a realidade
sensível, já que uma afirmação de existência implica enunciados perceptivos.
Não existe possibilidade de decisão a respeito de uma realidade ou idealidade
absolutas. Isso seria, segundo palavras de Carnap, um pseudoproblema. Todas as
formas epistemológicas da tradição filosófica inspiradas em posições
metafísicas -- o idealismo e o realismo metafísico, o fenomenalismo, o
solipsismo etc. -- estariam assim fora do âmbito do conhecimento empírico, uma
vez que tentam responder a uma pergunta impossível.
3.5.5. Estética
O significado da
beleza e a natureza da arte têm sido objeto da reflexão de numerosos autores
desde as origens do pensamento filosófico, mas somente a partir do século
XVIII, com a obra de Kant, a estética começou a configurar-se como disciplina
filosófica independente.
Ciência da criação
artística, do belo, ou filosofia da arte, a estética tem como temas principais
a gênese da criação artística e da obra poética, a análise da linguagem
artística, a conceituação dos valores estéticos, as relações entre forma e
conteúdo, a função da arte na vida humana e a influência da técnica na
expressão artística. Os primeiros teóricos da estética foram os gregos, mas
como “ciência do belo” a palavra aparece pela primeira vez no título da obra do
filósofo alemão Alexander Gottlieb Baumgarten, Æesthetica (1750-1758). A partir
dessa obra, o conceito de estética restringiu-se progressivamente até chegar a
referir-se à reflexão e à pesquisa sobre os problemas da criação e da percepção
estética.
3.5.6. Antiguidade clássica
A arte, objeto mais
geral da estética, tem sido considerada de maneira distinta segundo as épocas e
os filósofos que dela se ocuparam. Na antiguidade, o problema do belo foi
tratado por Platão, Aristóteles e Plotino. No diálogo Hípias maior, Platão
procura definir o belo em si, a idéia geral ou universal da beleza. No Banquete
e no Fedro, o problema da beleza é proposto em função do problema do amor. Por
meio de imagens sensíveis, da cópia ou imitação da Idéia, e no delírio erótico,
somos possuídos pelo deus, o que leva à reminiscência e à visão da realidade
absoluta da beleza inteligível.
Na República, Platão
sacrifica a estética à ética: critica os poetas que atribuem aos deuses
fraquezas e paixões próprias dos mortais e acrescenta a essa crítica outra de
ordem metafísica: a arte não passa de imitação da aparência, ou seja, é cópia
de um objeto sensível, que, por sua vez, já é cópia, e imperfeita, da Idéia.
Assim, a arte produz apenas a ilusão da realidade.
Nas reflexões de
Aristóteles sobre a arte (imitação da natureza e da vida, mimesis), dominam as
idéias de limite, ordem e simetria. Sua Poética
aplica esses princípios à
poesia, à comédia, à epopéia e afirma que “o Belo tem por condição certa a
grandeza e a ordem”. Plotino, seguindo a inspiração platônica, indaga nas
Enéadas se a beleza dos seres consiste na simetria e na medida, pois tais
critérios convêm apenas à beleza física, plástica, indevidamente confundida com
a beleza intelectual e moral. O próprio ser físico, sensível, só é belo na
medida que é formado por uma idéia que ordena e combina as múltiplas partes de
que o ser é feito.
3.6. Kant
Na Crítica do juízo
(ou da faculdade de julgar), que examina os juízos estéticos, ao referir-se aos
objetos belos da natureza e da arte, Kant concebe o juízo estético como
resultado do livre jogo do intelecto e da imaginação e não como produto do
intelecto, ou seja, da capacidade humana de formar conceitos, nem como produto
de intuição sensível. O juízo estético provém do prazer que se alcança no
objeto como tal. Exprime uma satisfação diferente daquela que é proporcionada
pelo agradável, pelo bem e pelo útil.
O belo, diz Kant, “é
o que agrada universalmente, sem relação com qualquer conceito”. A satisfação
só é estética, porém, quando gratuita e desligada de qualquer fim subjetivo
(interesse) ou objetivo (conceito). O belo existe enquanto fim em si mesmo:
agrada pela forma, mas não depende da atração sensível nem do conceito de
utilidade ou de perfeição. No juízo estético verifica-se o acordo, a harmonia
ou a síntese entre a sensibilidade e a inteligência, o particular e o geral.
O prazer
estético é universalizável, porque as faculdades que
implica estão presentes em todos os espíritos. Esse senso comum estético é a
condição necessária da comunicabilidade universal do conhecimento, que deve ser
presumida em toda lógica e em todo princípio de conhecimento.
Quanto às origens da
arte, Kant diz que a imaginação é compelida a criar (causalidade livre) o que
não encontra na natureza. A arte é, pois, a produção da beleza não pela
necessidade natural, mas pela liberdade humana. Kant propõe uma classificação
das “belas-artes” em artes da palavra (eloqüência e poesia), figurativas
(escultura, arquitetura e pintura), e as que produzem um “belo jogo de
sensações”, como a música. Todas se encontram na arte dramática e, de modo
especial, na ópera.
3.7. Hegel
O objeto da estética,
segundo Hegel, é o belo artístico, criado pelo homem. A raiz da arte está na
necessidade que tem o homem de objetivar seu espírito, transformando o mundo e
se transformando. Não se trata de imitar a natureza, mas de transformá-la, a
fim de que, pela arte, possa o homem exprimir a consciência que tem de si
mesmo. O valor ou o significado da arte é proporcional ao grau de adequação
entre a idéia e a forma, proporção que
permite a divisão e classificação das artes. Sua evolução consiste na
sucessão das formas nas quais o homem exprime suas idéias a respeito de Deus,
do mundo e de si próprio.
As diferentes formas
de arte correspondem às diferentes
maneiras de apreender e conceber a idéia e às diversas
modalidades de incorporação do conceito à realidade. A propósito, Hegel
distingue três dessas modalidades, a que correspondem, metafísica e
historicamente, as três formas fundamentais da arte: arte simbólica, arte
clássica e arte romântica. Para Hegel, a história da arte, do ponto de vista da
filosofia, mostra que a arte simbólica está à procura do ideal, a arte clássica
o atinge e a romântica o ultrapassa.
A evolução da arte
reproduz a dialética da idéia infinita, que se nega ou aliena no finito, para
negar a negação na síntese do finito e do infinito. A esse processo
correspondem graus crescentes de interiorização do espírito, desde a
arquitetura, arte do espaço vazio, mero receptáculo do divino, até a poesia,
arte puramente interior ou subjetiva.
3.8. Benedetto Croce
Os princípios
estéticos de Hegel, desprezados na Alemanha durante toda a segunda metade do
século XIX, foram preservados na Itália por Francesco De Sanctis. Seu sucessor
é Croce, cuja estética, baseada no conceito da expressão individual, exerceu
profunda influência no mundo inteiro. Segundo Croce, qualquer ato artístico é
meio de expressão e esta é a origem do lirismo. Só enquanto lirismo as obras de
arte são arte e têm valor estético. Uma das conseqüências dessa estética como
ciência da expressão é a abolição das fronteiras entre todas as artes e entre
todos os gêneros literários.
3.9. Marxismo
A estética marxista,
apenas esboçada na obra de Marx e Engels, é tributária da estética hegeliana,
em que encontra sua justificação, e parece ter achado sua formulação mais
completa na obra do dramaturgo e encenador Bertolt Brecht. A tese do
“distanciamento” (Entfremdung), de Brecht, implica uma ruptura com a concepção
clássica da arte como catarse. O espectador toma consciência dos problemas que
lhe são apresentados na cena e é convocado a decidir e optar, colaborando na
tarefa de libertação do homem: seria esta a razão de ser da obra de arte.
Os filósofos do Instituto
de Pesquisas Sociais, mais conhecido como Escola de Frankfurt, constituíram o
núcleo de uma linha original de pensamento estético de inspiração marxista,
desenvolvido principalmente por Walter Benjamin e Theodor Adorno. Benjamin
analisou o papel da obra de arte na época da reprodução mecânica e Adorno
formulou o conceito de “indústria cultural” para designar o tratamento de
mercadoria aplicado aos bens culturais na sociedade contemporânea.
3.10. Estoicismo
A necessidade de um
guia moral na época de transição da Grécia clássica para a helênica explica por
que o estoicismo ganhou rapidamente adeptos no mundo antigo e também porque
renasceu todas as vezes que os valores de uma sociedade entraram em crise
profunda.
O estoicismo foi
criado pelo cipriota Zenão de Cício por volta do ano 300 a.C. O termo tem
origem em Stoà poikilé, espécie de pórtico adornado com quadros de várias
cores, onde Zenão se reunia com seus discípulos. Cleantes e Crisipo, entre os
discípulos oriundos da Anatólia, tiveram papel relevante na escola estóica.
Os estóicos se
vangloriavam da coerência de seu sistema filosófico. Afirmavam que o universo
pode ser reduzido a uma explicação racional e que ele próprio é uma estrutura
racionalmente organizada. A capacidade do homem de pensar, projetar e falar
(logos) está plenamente incorporada ao universo. A natureza cósmica -- ou Deus,
pois os termos são sinônimos para o estoicismo -- e o homem se relacionam um
com o outro, intimamente, como agentes racionais. O homem pode alcançar a
sabedoria se harmonizar sua racionalidade com a natureza. Lógica e filosofia
natural estão, portanto, em íntima e essencial relação. Na história do
estoicismo, apontam-se três períodos básicos: antigo, helenístico-romano e
imperial romano.
3.10.1. Período antigo
A doutrina ética,
como forma de ajudar o indivíduo a aceitar a adversidade, representou o
principal apelo do estoicismo nesse período. O homem deve viver de acordo com a
razão e ser indiferente a desejos e paixões. A verdadeira felicidade não está
no sucesso material, mas na busca da virtude. Alegrias e infortúnios devem ser
igualmente aceitos, porque seguem o ritmo natural do universo. Os mais
importantes filósofos desse período são Zenão, Cleantes e Crisipo.
Com assimilação de
elementos ecléticos e adaptações adequadas, o estoicismo adquiriu uma nova
função, como sistema ético sobre o qual a república romana pretendia
assentar-se. Destacaram-se no período Panécio de Rodes, Posidônio de Apaméia e
Cícero. O homem político, segundo Cícero, só atinge a virtude suprema se sua
atuação estiver voltada para o bem de seu povo.
3.10.2. Período imperial romano
O império oferecia a
pax romana, mas, ao mesmo tempo, o fastio e a dissolução dos princípios morais
da sociedade. Musônio Rufo, Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio criaram os
alicerces teóricos que deveriam dignificar o poder imperial. Alguns preceitos
de sua poderosa doutrina moral foram adotados pela igreja cristã.
3.11. Estruturalismo
A abordagem
estruturalista dos fenômenos se baseia em duas relações principais de oposição:
a primeira delas se dá entre o histórico e o atemporal; a outra, entre o
voluntário e o contingente.
Corrente de
pensamento que se caracteriza pela oposição à compartimentação do conhecimento
em capítulos heterogêneos, o estruturalismo surgiu no começo do século XX e foi
incorporado ao método de diversas disciplinas humanísticas, como a lingüística,
sistemas. O antropólogo funcionalista Bronislaw Malinowski expressou com
clareza a abordagem estruturalista da antropologia: uma cultura se estuda tal
como é numa determinada época, e não segundo seu desenvolvimento ou sua
evolução histórica. O funcionalismo foi decerto uma reação contra o
evolucionismo e afirmava o primado da ação recíproca entre os diversos
elementos e instituições de dada sociedade, mas o estruturalismo veio enfatizar
ainda mais a concepção de sociedade como
todo indivisível.
Como método
científico, o estruturalismo estuda seu objeto, trate-se de cultura, linguagem,
psiquismo humano ou outro qualquer, como um sistema em que os elementos
constituintes mantêm entre si relações estruturais. Ao tomar este ou aquele
objeto, o estruturalismo se propõe transcender a organização primária dos
fatos, observável na pesquisa, para descrever a hierarquia e os nexos
existentes entre os elementos de cada nível, para depois chegar a um modelo
teórico do objeto. A abordagem estruturalista
foi aplicada a várias disciplinas. Destacaram-se Ferdinand de Saussure e
Leonard Bloomfield na lingüística; Claude Lévi-Strauss na antropologia; Jean
Piaget na psicologia e Louis Althusser na filosofia.
O termo “estrutura”,
do qual provém o conceito de estruturalismo, designa um conjunto de elementos
solidários entre si, ou cujas partes são funções umas das outras. Cada um dos
componentes se acha relacionado com os demais e com a totalidade. Daí pode-se
dizer que uma estrutura se compõe mais propriamente de membros que de partes, é
mais um todo que uma soma. Os membros desse todo se acham entrelaçados de tal
forma que não existe independência de
uns em relação aos outros, mas antes uma interpenetração. Exemplos de
estruturas seriam, pois, os organismos biológicos, as coletividades humanas, as
formas do psiquismo, as configurações de objetos em determinado contexto etc.
O estruturalismo foi
entendido também como o corpo teórico que marcou o início da decadência das
ideologias nas ciências sociais, já que a abordagem estrutural excluiria a
praxis (a ação, a prática), que o marxismo, por exemplo, estabelece como
critério supremo de verdade. É a estrutura (do latim struere, construir) que
explica os processos. Em contraposição, Althusser pretendeu conferir forma
estrutural ao marxismo, afirmando que o pensamento é uma “produção”, espécie de
“prática teórica” exercida não apenas por sujeitos individuais, mas na qual
intervêm fatores sociais e históricos.
Em toda estrutura se
distinguem três características básicas:
1)sistema ou
totalidade;
2)leis de transformação
que conservam ou enriquecem o sistema;
3)e auto-regulação, pois as transformações se
efetuam sem que na estrutura intervenham elementos exteriores. Uma vez
descoberta a estrutura, deve ser possível sua “formalização”. Cabe ressaltar
que a formalização é uma criação teórica e que a estrutura é anterior ao modelo
teórico e independe dele.
Quanto ao caráter de totalidade
que a estrutura reveste, todos os estruturalistas concordam em que as leis que
afetam os elementos de um sistema não se reduzem a associações cumulativas, mas
se formam por composição, isto é, conferem ao todo propriedades de conjunto
distintas dos atributos dos elementos. As leis de composição das totalidades
estruturadas são estruturantes por natureza e é precisamente essa atividade
estruturante que assegura a existência de um sistema de transformações. Um
sistema, mesmo do ponto de vista exclusivamente sincrônico (plano temporal
concreto, em oposição ao enfoque diacrônico, ou estudo histórico), não é
imutável, pois aceita ou rejeita inovações em função das necessidades impostas
pelas uniões e oposições existentes no próprio sistema.
Entende-se a
auto-regulação das estruturas como sua capacidade de ajustar-se a fim de
garantir a conservação. Nesse sentido a estrutura se fecha sobre si mesma,
embora possa integrar, como subestrutura, uma estrutura mais ampla. A
modificação das fronteiras gerais não dá lugar à abolição das fronteiras já
existentes, pois o que se produz é uma confederação e não uma anexação. As leis
da subestrutura não sofrem alteração, mas se conservam, de modo que a mudança
representa um enriquecimento.
3.12. Existencialismo
O existencialismo
surgiu numa Europa dilacerada por interesses antagônicos, onde o homem se
sentia ameaçado em sua individualidade e em sua realidade concreta. Daí sua
ênfase na solidão do indivíduo, na impossibilidade de encontrar a verdade por
meio de uma decisão intelectual e no caráter irremediavelmente pessoal e
subjetivo da vida humana.
Denomina-se
existencialismo uma série de doutrinas filosóficas que, mesmo diferindo
radicalmente em muitos pontos, coincidem na idéia de que é a existência do ser
humano, como ser livre, que define sua essência, e não a essência ou natureza
humana que determina sua existência.
3.12.1. Existencialismo na filosofia
Embora represente uma
corrente específica do pensamento moderno, o existencialismo não deixa de ser
uma tendência que se faz sentir ao longo de toda a história da filosofia. Assim
sucede, por exemplo, com o imperativo socrático “conhece-te a ti mesmo”; com a
angustiada exclamação de Pascal, situando o homem entre o ser e o nada; ou com
a formulação do idealista alemão Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling,
segundo o qual a existência humana não pode ser reduzida à razão.
Se Hegel abraça o
conceito da necessidade incoercível, afirmando que a liberdade é a consciência
da necessidade, o dinamarquês Soren Kierkegaard, profundamente religioso e
considerado o pai do existencialismo, interpreta a existência em termos de
possibilidade. A existência humana é, para todas as formas de existencialismo,
a projeção do futuro sobre a base das possibilidades que o constituem.
Para alguns
pensadores dessa corrente - os alemães Martin Heidegger e Karl Jaspers, por
exemplo - as possibilidades existenciais, na medida em que ancoradas no
passado, conduzem todo projeto de futuro para o passado. Para outros, como o
francês Jean-Paul Sartre, as
possibilidades de escolha existencial são infinitas e equivalentes, e a
opção entre elas é, pois, indiferente. Outros, enfim, como o italiano Nicola
Abbagnano e o francês Maurice Merleau-Ponty, consideram que as possibilidades
existenciais são limitadas pelas circunstâncias, mas nem determinam a escolha
nem fazem com que ela seja indiferente. Sejam quais forem suas posições
particulares, todos os existencialistas afirmam, porém, que a escolha entre as
diferentes possibilidades implica riscos, renúncia e limitação, salvo o francês
Gabriel Marcel, principal representante do existencialismo cristão, que acha
possível a transcendência do homem mediante seu encontro com Deus na fé.
3.12.2. Traços fundamentais do existencialismo
Embora não seja possível
dar uma definição precisa do existencialismo - pois não existe um
existencialismo único - ainda assim há uma série de traços que ajudam a
descrever a índole e o espírito desse movimento filosófico. O existencialismo
introduz a experiência pessoal na reflexão filosófica. Opondo-se à tradição de
que o filósofo deve manter certa distância entre ele próprio, como sujeito
pensante, e o objeto que examina, o
existencialista submerge apaixonadamente no objeto que contempla, a ponto de
tornar sua filosofia basicamente autobiográfica (Kierkegaard).
Os temas de reflexão
do existencialista giram em torno do homem e da realidade humana (homem,
liberdade, realidade individual, existência cotidiana). Heidegger, ao que
parece, é o filósofo mais alheio a essa perspectiva, pois para ele o problema
fundamental da filosofia é o ontológico, isto é, o problema do ser e,
assim, o
problema do homem fica subordinado
a esse problema. Ao descrever o existente que é o homem, Heidegger observa que
sua essência consiste em existir, pois esta é a determinação fundamental do que
ele chama Dasein (das in-der-Welt-Sein, “o estar-no-mundo”). O homem não é para
os existencialistas um mero objeto. É um sujeito-no-mundo e aberto para este.
Em termos sartrianos, o homem cria a si mesmo.
A liberdade é também
um tema básico para os existencialistas. Mas esta não é para eles uma liberdade
acadêmica, como pressuposto do ato moral, mas sim a liberdade que permite a
escolha e, portanto, a realização do indivíduo. Na Europa oprimida pelo nazismo
e pelas ditaduras totalitárias, o existencialismo significou a reafirmação da
liberdade política e cultural do indivíduo. Historicamente milita a favor do
existencialismo a dura batalha que travou contra a ditadura da razão
formalizada, já antes denunciada por Max Weber.
Tema impossível de
ser posto de lado, a morte é também objeto de atenção para os existencialistas.
O homem vive para morrer; cada um morre só. Para Heidegger, a morte é a última
possibilidade do homem; para Sartre, o fim de todas as possibilidades; para
todos os existencialistas, a suprema realidade transcendente. O
ser-para-a-morte é o verdadeiro destino e objetivo da existência humana.
O tempo transcorre
unicamente entre o nascimento e a morte; é a experiência que o indivíduo tem de
sua limitação, de sua finitude. Assim, seria uma extrapolação arbitrária
representar o tempo que precede o começo da existência e continua correndo
depois que esta acabou.
A consciência é
sempre consciência de alguma coisa. O dado básico do eu é a intencionalidade da
consciência. A consciência é do mundo, mas não se acha no mundo como as coisas.
Se a consciência é consciência de algo, ela própria não pode ser esse algo. É
inerente à consciência a negação da identidade entre consciência e algo. A
consciência se aproxima do ser, pois é consciência dele, mas se reconhece ao
mesmo tempo distanciada do ser. À distância entre o ser e a consciência Sartre
chama “nada”.
3.13. Fenomenologia
O conhecimento da
realidade essencial dos fenômenos e a possibilidade desse conhecimento foi
preocupação constante da filosofia até princípios do século XX, quando a
fenomenologia deixou de olhar para os elementos exteriores que cercam os
fenômenos e passou a considerá-los em si mesmos, por seu reflexo na
consciência, como única maneira de apreendê-los.
Fenomenologia é o
estudo dos fenômenos em si mesmos, independentemente dos condicionamentos
exteriores a eles, cuja finalidade é apreender sua essência, estrutura de sua
significação. É também um método de redução, pelo qual o conhecimento factual e
as suposições racionais sobre os fenômenos como objeto, e a experiência do eu,
são postas de lado, para que a intuição pura da essência do fenômeno possa ser
rigorosamente analisada. É o estudo dos fenômenos, distinto do estudo do ser, ou
ontologia.
Na história da
filosofia, a fenomenologia tem três significados especiais. Na segunda metade
do século XVIII, era sinônimo
de “teoria das
aparências”, expressão cunhada pelo filósofo Jean-Henri Lambert para
distinguir a aparência das coisas do que elas são em si mesmas. Com Hegel, em
Phänomenologie des Geistes (1807; Fenomenologia do espírito), é uma espécie de
lógica do conteúdo e uma introdução à filosofia, história das fases sucessivas,
das aproximações e das oposições pelas quais o espírito se eleva da sensação
individual à razão universal, ou, para usar sua fórmula: “é a ciência da
experiência que faz a consciência”. Foi com Husserl que a palavra ganhou, nas
primeiras décadas do século XX, o significado de que hoje se reveste, de estudo
dos fenômenos em si mesmos, que visa à evidência primordial, e de denominação
de um movimento que influiu de modo significativo no pensamento filosófico
dessa época.
A fenomenologia
husserliana é uma meditação sobre o conhecimento. Considera que aquilo que é
dado à consciência é o fenômeno (objeto do conhecimento imediato). Esse
fenômeno só aparece numa consciência; portanto, é a essa consciência que é
preciso interrogar, deixando de lado tudo o que lhe é exterior. A consciência,
para Husserl, só pode ser entendida como intencional, isto é, não está fechada
em si mesma, mas define-se como uma certa maneira de perceber o mundo e seus
objetos. Mostrar os diversos aspectos pelos quais a consciência percebe esses
objetos e sob os quais eles lhe aparecem, o que a sua presença supõe, constitui
o estudo e o objetivo essencial da fenomenologia.
Para Husserl,
portanto, a tarefa da filosofia é a pesquisa, exame e descrição do fenômeno,
como conteúdo da consciência. Trata-se de uma mudança radical de sentido na
orientação filosófica, antes voltada para as coisas, para o mundo exterior, e
que com ele passou a interessar-se pela consciência, pelo mundo interior.
Assim, por exemplo, se alguém vê as folhas de uma palmeira serem agitadas pelo
vento, essa experiência é, toda ela, um fenômeno interior, que se passa
essencialmente dentro da consciência. Os objetos exteriores são apenas
condições para que se crie a percepção, a vivência desse fenômeno interior. A
fenomenologia se prende, por meio da atitude reflexiva, nesses fenômenos ou
estados da consciência e prescinde da realidade exterior das coisas, ou como
diz Husserl, coloca-se entre parênteses. É o que ele chama de epokhé, ou seja,
o ato de liberar a atenção do exterior para que ela se detenha na análise da vivência
ou experiência pura.
A fenomenologia é,
portanto, uma descrição daquilo que se mostra por si mesmo, de acordo com o
“princípio dos princípios”: toda intuição primordial é fonte legítima de
conhecimento. Situa-se como anterior a toda crença e juízo e despreza todo e
qualquer pressuposto: mundo natural, senso comum, proposição científica ou
experiência psicológica.
Essa mudança de
orientação teve grande importância para a filosofia, pois a eximiu de cuidar da
explicação do mundo e das coisas. A ciência é que explica o mundo e seus
aspectos acessíveis à nossa experiência. Ao voltar-se para o conteúdo ou para o
fenômeno existente na consciência, a fenomenologia encontrou um objeto que a
capacita a transformar-se em ciência autêntica, como pretendia seu fundador.
Esse conteúdo é antes suscetível de descrição do que de medida. Fazer tal
descrição é a tarefa dessa filosofia.
Os críticos da obra
de Husserl dividem-se em dois grupos principais. De um lado estão os que, como
os neokantianos, concordam em que a fenomenologia se realizou como perspectiva
ontológica; do outro, os que sustentam que ela significou apenas uma tomada de
posição epistemológica, como Nicolaio Hartman. Em outras palavras, os que
admitem ser ela uma perspectiva do ser, e os que a consideram apenas como uma
investigação do conhecer.
Em seus primeiros
escritos, Husserl não põe em dúvida a existência dos objetos independentemente
dos atos mentais. Mais tarde, introduz a noção problemática de uma redução
transcendental fenomênica, mediante a qual se descobre o ego (o eu)
transcendental, diferente do ego fenomênico da consciência ordinária. Em
conseqüência, Husserl passa de um realismo primitivo a uma modalidade de
idealismo kantiano. Sua influência foi muito profunda, em especial entre os existencialistas
(Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre, Maurice Merleau-Ponty) que, apesar de se
considerarem fenomenologistas, preocupavam-se mais com a ação do que com o
conhecimento.
Em psicologia,
fenomenologia é um método de descrição e análise desenvolvido a partir da
fenomenologia filosófica, aplicado à percepção subjetiva dos fenômenos e à
consciência, em especial nos campos da psicologia da Gestalt, análise
existencial e psiquiátrica.
3.14. Idealismo
Na linguagem
cotidiana, o termo idealismo se emprega para designar o apreço por valores e
ideais.
Filosoficamente, no
entanto, refere-se ao conjunto de doutrinas que, por caminhos diversos, afirmam
a precedência da consciência sobre o ser, ou da realidade ideal sobre a
realidade material.
Em sentido amplo, o
idealismo constitui uma das duas correntes filosóficas básicas. Contrapõe-se ao
materialismo, para o qual toda realidade tem sempre caráter material ou
corporal. Seu traço característico é tomar como ponto de partida para a
reflexão filosófica o “eu”, encarado sob o aspecto de alma, espírito ou mente.
A maneira de entender tais conceitos determina diferentes correntes idealistas.
A teoria das idéias
de Platão é historicamente o primeiro dos idealismos. Para ele, o ser em sua
pureza e perfeição não está na realidade, que é o reino das aparências. Os
objetos captados pelos sentidos são cópia imperfeita das idéias puras. A
verdadeira realidade está no mundo das idéias, das formas inteligíveis,
acessíveis apenas à razão.
O termo idealismo, na
verdade, surgiu apenas no século XVII para designar o platonismo, seus
derivados medievais -- doutrina dos universais -- e alguns aspectos das
filosofias de Descartes e John Locke. Embora o primeiro fosse racionalista e o
segundo empirista, ambos apontaram, em momentos de sua reflexão metodológica, a
possibilidade de que o homem só pudesse conhecer “idéias”, objetos subjetivos e
exclusivos da mente humana. Caberia, assim, pôr em dúvida a própria existência
de um mundo sensível.
Para o idealista inglês George Berkeley, a única
existência dos objetos
é a idéia
que se tem deles: “existir é ser
percebido”. As coisas só existem como objetos da consciência. A existência do
mundo como realidade coerente e regular estaria garantida por Deus, mente
suprema onde tudo se produz e ordena.
No idealismo
transcendental de Kant, a experiência sensorial só se torna inteligível por
meio de estruturas conceituais preexistentes no espírito humano. Assim, a
realidade é apreendida por formas de sensibilidade, como as noções de espaço e
tempo, e certas categorias universais do entendimento, como a unidade, a
totalidade, a causalidade etc. A partir da filosofia de Kant, desenvolveu-se o
idealismo metafísico alemão, em que Johann Gottlieb Fichte identificou o
espírito universal com o eu, e Friedrich Schelling elaborou uma forma de
idealismo próximo do panteísmo religioso.
Hegel formulou um
sistema filosófico que representa uma síntese do idealismo alemão e é comumente
chamada de idealismo absoluto. As formas de pensar seriam também as formas do
ser: “o que é racional é real e o que é real, é racional”. O espírito se
realiza a si mesmo, no mundo externo, num processo dialético de superação de
contradições, integrado por três fases: tese, antítese ou negação, e síntese,
ou negação da negação. Os sucessivos processos dialéticos conduziriam o
espírito à perfeição.
Todas as doutrinas
idealistas coincidem num postulado básico: a existência de uma realidade última
-- quer se chame espírito, Deus ou energia vital -- que transcende o mundo físico
e lhe dá sua razão de ser.
3.15. Marxismo
Fruto de décadas de
colaboração entre Karl Marx e Friedrich Engels, o marxismo influenciou os mais
diversos setores da atividade humana ao longo do século XX, desde a política e
a prática sindical até a análise e interpretação de fatos sociais, morais,
artísticos, históricos e econômicos, e se tornou doutrina oficial dos países de
regime comunista.
Marxismo é o conjunto
das idéias filosóficas, econômicas, políticas e sociais que Marx e Engels
elaboraram e que mais tarde foram desenvolvidas por seguidores. Interpreta a
vida social conforme a dinâmica da luta de classes e prevê a transformação das
sociedades de acordo com as leis do desenvolvimento histórico de seu sistema
produtivo.
Os pontos de partida
do marxismo são a dialética de G. W. F. Hegel, a filosofia materialista de
Ludwig Feuerbach e dos enciclopedistas franceses e as teorias econômicas dos
ingleses Adam Smith e David Ricardo. Mais do que uma filosofia, o marxismo é a
crítica radical da filosofia, principalmente do sistema filosófico idealista de
Hegel. Enquanto para Hegel a realidade se faz filosofia, para Marx a filosofia
precisa incidir sobre a realidade. O núcleo do pensamento de Marx é sua
interpretação do homem, que começa com a necessidade humana. A história se
inicia com o próprio homem que, na busca da satisfação de necessidades, luta
contra a natureza. À medida que luta, o homem se descobre como ser produtivo e
passa a ter consciência de si e do mundo. Percebe então que “a história é o processo
de criação do homem pelo trabalho humano”.
As duas vertentes do
marxismo são o materialismo dialético, para o qual a natureza, a vida e a
consciência se constituem de matéria em movimento e evolução permanente, e o
materialismo histórico, para o qual o fato econômico é base e causa
determinante dos fenômenos históricos e sociais, inclusive as instituições
jurídicas e políticas, a moralidade, a religião e as artes.
A teoria marxista
desenvolve-se em quatro níveis de análise -- filosófico, econômico, político e
sociológico -- em torno da idéia central de mudança. Em suas Thesen über
Feuerbach (1845, publicadas em 1888; Teses sobre Feuerbach), Marx escreveu:
“Até o momento, os filósofos apenas interpretaram o mundo; o fundamental agora
é transformá-lo.” Para transformar o mundo é necessário vincular o pensamento à
prática revolucionária. Interpretada por diversos seguidores, a teoria
tornou-se uma ideologia que se estendeu a regiões de todo o mundo e foi
acrescida de características nacionais. Surgiram assim versões como as dos
partidos comunistas francês e italiano, o marxismo-leninismo na União
Soviética, as experiências no leste europeu, o maoísmo na China e Albânia e as
interpretações da Coréia do Norte, de Cuba e dos partidos únicos africanos, em
que se mistura até com ritos tribais.
3.15.1. Materialismo dialético
De uma perspectiva
idealista, Hegel, filósofo alemão do século XIX, englobava a natureza, a
história e o espírito no processo dialético de movimento das idéias,
determinado pela oposição de elementos contrários (tese e antítese) que
progridem em direção a formas mais aperfeiçoadas (síntese). Assim, no devir da
história, o processo dialético impulsiona o desenvolvimento da idéia absoluta
pela sucessão de momentos de afirmação (tese), de negação (antítese) e de
negação da negação (síntese).
Marx adotou a
dialética hegeliana e substituiu o devir das idéias, ou do espírito humano,
pelo progresso material e econômico. Em Zur Kritik der Politischen Ökonomie
(1859; Contribuição à crítica da economia política), resume o que mais tarde
foi chamado materialismo dialético: “Não é a consciência do homem que determina
seu ser, mas o ser social que determina sua consciência”. Pelo método
dialético, sustentou que o capitalismo industrial (afirmação) engendra o
proletariado (negação) e essa contradição é superada, no futuro, pela negação
da negação, isto é, pela sociedade sem classes.
Outra chave do
marxismo está no pensamento do filósofo alemão Ludwig Feuerbach. Discípulo de
Hegel, Feuerbach inverteu na dialética os lugares ocupados pela idéia e pela
matéria e formulou a teoria da alienação do homem, entendendo Deus como ilusão
humana ditada por necessidades da realidade material. Marx detectou certa
inconsistência no materialismo de Feuerbach, pois este considerava o homem como
ser puramente biológico. Tomando uma noção criada por Moses Hess, também
hegeliano, Marx definiu o homem em sua relação com a natureza e a sociedade,
isto é, em sua dimensão econômica e produtiva, e viu no estado, na propriedade
e no capital a fonte da alienação humana. Para Marx, as relações materiais de
produção de uma sociedade determinam a alienação política, religiosa e
ideológica, como conseqüências inequívocas das condições de dominação
econômica.
3.15.2. Materialismo histórico
Também chamado
concepção materialista da história, o materialismo histórico é a aplicação do
marxismo ao estudo da evolução histórica das sociedades humanas. Essa evolução
se explica pela análise dos acontecimentos materiais, essencialmente econômicos
e tecnológicos. Na atividade econômica e social, os homens estabelecem relações
necessárias e independentes de sua vontade. São as relações de produção, que
correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas
(trabalho humano, instrumentos, máquinas). O conjunto das relações de produção
forma a infra-estrutura econômica da sociedade, base material sobre a qual se
eleva uma superestrutura política, jurídica e ideológica, o que engloba as
idéias morais, estéticas e religiosas. Assim, o modo de produção dos bens
materiais condiciona a vida social, política e intelectual que, por sua vez,
interage com a base material. Para contrabalançar o determinismo econômico da
teoria, Marx afirmou a existência de uma constante interação e interdependência
entre a infra-estrutura e a superestrutura, embora, em última instância, os
fatores econômicos sejam os determinantes.
No curso de seu desenvolvimento, as forças produtivas da sociedade
entram em contradição com as relações de produção existentes e estas
convertem-se em obstáculos à continuidade do processo produtivo. Inicia-se
então uma era de revolução social que afeta a fundo a estrutura ideológica, de
modo que os homens adquirem consciência do conflito de que participam.
As relações
capitalistas de produção seriam a forma final de antagonismo no processo
histórico. O modo de produção do capitalismo industrial conduz de modo
inevitável à superação da propriedade privada, não só pela rebelião dos
oprimidos como pela própria evolução do sistema, em que a progressiva
acumulação de capital determina a necessidade de novas relações de produção
baseadas na propriedade coletiva dos meios de produção. Superado o regime de
propriedade privada, o homem venceria a alienação econômica e, em seguida,
todas as outras formas de alienação de si mesmo.
No decorrer do
processo histórico, as relações econômicas evoluíram segundo uma contínua luta
dialética entre os proprietários dos meios de produção e os trabalhadores
espoliados e explorados. No primeiro capítulo do Manifest der Kommunistischen
Partei (1848; Manifesto comunista), Marx e Engels afirmam que a “história de
todas as sociedades do passado é a história da luta de classes”. Segundo o
materialismo histórico, o comunismo primitivo seria a tese oposta à antítese
expressa pelas sociedades de classe (escravistas, feudais e capitalistas). A
sociedade sem classes, alcançada mediante a práxis (isto é, a teoria posta em
prática) revolucionária, seria a síntese final das organizações sociais.
3.15.3. Crítica do sistema capitalista
Marx rejeitou o
idealismo dos socialistas utópicos, sobretudo Charles Fourier e Henri de
Saint-Simon, que criticaram o capitalismo de um ponto de vista humanitário e
defenderam a mudança gradual para um regime social baseado na propriedade e no
trabalho coletivos. Marx formulou então a doutrina do socialismo científico, em
que a crítica à estrutura econômica do capitalismo permite reconhecer as leis
dialéticas de sua evolução e decomposição.
Para Marx, o trabalho
é a essência do homem, pois é o meio pelo qual ele se relaciona com a natureza
e a transforma em bens a que se confere valor. A desqualificação moral do
capitalismo ocorre por ser um modo de produção que converte a força de trabalho
em mercadoria e, desse modo, aliena o trabalhador como ser humano.
Marx concordou com os
economistas clássicos britânicos, para quem o trabalho é a medida de todas as
coisas. A força de trabalho do operário, vendida ao capitalista, incorpora-se a
um produto que se vende no mercado por um valor superior a seu custo de
produção. A diferença entre o valor final do produto e o custo de produção
constitui a mais-valia, o excedente ou valor acrescentado pelo trabalho. O
custo de produção é a soma do valor dos meios de produção (maquinaria e
matérias-primas) e do valor da força de trabalho, este expresso em bens
indispensáveis à subsistência do operário e sua família. A mais-valia,
portanto, converte-se em lucro para o capitalista.
Marx distingue dois
tipos de mais-valia, a absoluta e a relativa, que se definem pela maneira como
são aumentadas. A mais-valia absoluta aumenta proporcionalmente ao aumento do
número de horas da jornada de trabalho, conservando-se constante o salário. O
valor produzido pelo trabalho nesse tempo adicional corresponde à mais-valia
absoluta. Assim, lucro do capital, isto é, a mais-valia absoluta, e sua
acumulação. A mais-valia relativa aumenta com o aumento da produtividade, com a
racionalização do processo produtivo e com o aperfeiçoamento tecnológico. O
trabalhador passa a produzir mais no mesmo tempo de trabalho, e isso aumenta
relativamente a mais-valia.
A obtenção de
mais-valia conduz à acumulação do capital expressa na concentração fabril e
empresarial e no progresso tecnológico incorporado à maquinaria das grandes
indústrias. O uso de máquinas cada vez mais produtivas elimina periodicamente
parte da força de trabalho. Os operários dispensados engrossam o “exército
industrial de reserva” (os desempregados) em situação de concorrência que
favorece a redução dos salários e a pauperização da classe operária.
A formação de cartéis
e monopólios, em conseqüência da concentração de capital, diminui o número de
capitalistas e provoca uma crise de superprodução, manifestação típica das
contradições do capitalismo, já que, em busca de lucro máximo, o capitalista
adota novos instrumentos de trabalho que geram produção maior do que o mercado
é capaz de absorver. As crises periódicas fazem aumentar o desemprego,
proletarizam as classes intermediárias e empobrecem a classe operária. O
sistema capitalista desaparecerá em conseqüência das próprias contradições e da
oposição entre o caráter coletivo da produção e o caráter privado da
apropriação. A ação revolucionária dos oprimidos, ou seja, da classe operária,
deve incidir sobre o sistema capitalista. A tomada do poder por essa classe
implicaria a instauração de um estado
socialista transitório, a ditadura do proletariado, que se dissolveria após
cumprir sua missão de organizar o sistema coletivista e liquidar as antigas
classes sociais. Depois dessa fase se chegaria finalmente ao comunismo,
sociedade sem classes e sem exploração do homem pelo homem.
3.15.4. Revisionismo e marxismo-leninismo
No final do século
XIX, o marxismo passou a atrair cada vez mais o movimento operário mundial,
embora o anarquismo e o pensamento social-cristão mantivessem sua influência. O
desenvolvimento industrial em alguns países, porém, contribuiu para melhorar o
padrão de vida da classe trabalhadora, ao contrário das previsões de Marx, e
reforçou os sistemas políticos social-democratas.
Nas primeiras décadas
do século XX, os alemães Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo ratificaram o
caráter revolucionário do marxismo e adaptaram a doutrina às novas condições do
capitalismo. Na mesma direção seguiu Lenin, personagem decisivo da revolução
russa de 1917. Sua contribuição originou o marxismo-leninismo, com novas
abordagens da doutrina e do movimento comunista, como a análise do
imperialismo, a possibilidade da revolução em países não industrializados, a
participação do campesinato na ação revolucionária e a organização do partido
comunista como vanguarda da classe operária.
O marxismo-leninismo
foi interpretado de maneiras diversas após a morte de Lenin. Nikolai Ivanovitch
Bukharin preconizou uma concepção revisionista e
Trotski desenvolveu os
aspectosquanto mais horas o operário trabalhar, maior será o
revolucionários da doutrina. Stalin simplificou os postulados do
marxismo-leninismo, formulou a teoria do socialismo em um só país, contra a
tese trotskista, que preconizava a internacionalização da revolução, e defendeu
a possibilidade de um desenvolvimento auto-suficiente da economia soviética,
sem relação com o mundo capitalista.
A partir do
marxismo-leninismo, o líder comunista chinês Mao Zedong elaborou uma doutrina
original, o maoísmo, adaptada ao desenvolvimento da revolução na China e às
características milenares da cultura chinesa: é maoísta, por exemplo, o
princípio segundo o qual os estudantes jamais devem ser orientados para a
competição, mas exclusivamente para a cooperação.
O marxismo teve
teóricos de grande expressão no mundo das idéias, como Antonio Gramsci, György
Lukács, Theodor W. Adorno, Karl Korsch e Louis Althusser. Depois da segunda
guerra mundial, surgiram interpretações não dogmáticas do marxismo, com a incorporação de filosofias como as de Edmund
Husserl e Martin Heidegger e de idéias de teóricos de outras áreas, como
Sigmund Freud. Economistas, historiadores antropólogos, sociólogos, psicólogos,
estudiosos da moral e das artes, incorporaram a metodologia marxista sem
necessariamente aderir à filosofia política e à prática revolucionária do
marxismo.
A queda dos regimes
comunistas nos países do leste europeu e a dissolução da União Soviética
levaram ao questionamento dos postulados doutrinários marxistas. Permaneceram,
porém, o respeito e a admiração pelo rigor científico, originalidade, coerência
interna e abrangência da obra de Marx e Engels.
3.16. Materialismo
A crescente
sofisticação do conhecimento levou o homem a duvidar da milenar explicação mágica
do mundo e a tentar compreendê-lo com teorias que, baseadas na experiência
objetiva, abrangessem desde a natureza e a origem da vida e do universo até a
relação do próprio ser humano com essa realidade. Essas teorias dividiram-se de
modo esquemático em duas grandes tendências: materialismo e idealismo.
Materialismo é toda
concepção filosófica que aponta a matéria como substância primeira e última de
qualquer ser, coisa ou fenômeno do universo. Para os materialistas, a única
realidade é a matéria em movimento, que, por sua riqueza e complexidade, pode
compor tanto a pedra quanto os extremamente variados reinos animal e vegetal, e
produzir efeitos surpreendentes como a luz, o som, a emoção e a consciência. O
materialismo contrapõe-se ao idealismo, cujo elemento primordial é a idéia, o
pensamento ou o espírito.
3.16.1. Evolução histórica
Tales de Mileto e
outros filósofos pré-socráticos, já no século VI a.C., argumentavam que a
filosofia devia explicar os fenômenos pela observação da realidade e não pelos
mitos religiosos. Todos os fenômenos da natureza consistiriam em transformações
do mesmo princípio material, sem intervenção divina. Empédocles apontou a
existência de quatro elementos substanciais: a terra, a água, o fogo e o ar.
A tradição materialista
na filosofia ocidental, porém, começou com Demócrito, no século V a.C., que
afirmou que tudo que existe compõe-se de átomos (partículas invisíveis de
matéria) em constante movimento no espaço vazio. Esses átomos se associam ou se
separam de acordo com seu formato. Conhecida como atomismo, a teoria explicou
as mudanças nas coisas como conseqüência de mudanças na configuração de átomos
imutáveis. A diversidade quantitativa dos átomos (forma, dimensão e ordem)
determinaria os diferentes fenômenos da natureza.
Epicuro, o mais
influente dos materialistas gregos, confirmou a teoria de Demócrito, mas
atribuiu aos átomos a propriedade de se desviarem de suas rotas, o que
explicaria o encontro entre eles. Com essa hipótese, Epicuro procurou
demonstrar que a origem do movimento está na própria natureza, é inerente a ela
e prescinde de intervenção divina.
Na sistematização que
fez do conhecimento da época, Aristóteles pretendeu conciliar as vertentes
materialista e idealista da filosofia grega. Seu pensamento representou um
compromisso entre a ciência e a teologia a tal ponto que foi utilizado, no
final da Idade Média, como instrumento de defesa da fé cristã.
3.16.2. Desenvolvimento posterior
Ao longo da Idade
Média, o idealismo platônico e depois o aristotelismo dominaram o pensamento
ocidental. Com o Renascimento, e sob a influência do progresso das ciências
naturais e da técnica, o materialismo ressurgiu em suas diversas concepções.
Nos séculos XVI e XVII, na Inglaterra, Francis Bacon defendeu o materialismo naturalista;
Thomas Hobbes criou um sistema materialista baseado nas concepções de
Descartes; e Locke investigou a origem, a essência e o alcance das idéias por
meio das quais o conhecimento se constitui. Na França, Descartes lançou os
fundamentos do materialismo mecanicista com sua teoria dualista, que separa
radicalmente espírito e matéria. Na Itália, Tommaso Campanella e Giordano Bruno
defenderam o pampsiquismo, segundo o qual toda matéria tem um ímpeto interior
que adquire qualidade anímica ou consciente. A integração dos átomos em
moléculas gigantes e matéria viva propicia o surgimento da memória e, no homem,
a consciência.
A idéia atingiu plena
maturidade com Spinoza, filósofo judeu-holandês que assegurou que matéria e
alma constituem os aspectos externo e interno de uma mesma coisa, a natureza,
que se confunde com Deus. No século XVIII, as teorias materialistas
mecanicistas mais consistentes surgiram na França com os iluministas, sobretudo
Condillac e Diderot. No século XIX, com os avanços científicos em diversas
áreas, em particular a teoria evolucionista de Darwin, as concepções
materialistas tiveram grande impulso. Destaca-se o epifenomenismo, defendido
pelo britânico Thomas Huxley, que sustentou que os processos mentais prescindem
de relevância causal e só os processos físicos dão causa a outros.
Em meados do século
XX, Karl Popper, filósofo britânico de origem austríaca, distinguiu quatro
tendências materialistas na
filosofia ocidental: o epifenomenismo de Huxley, a teoria da
identidade, o pampsiquismo e o materialismo ou fisicalismo radical. A figura
principal da teoria da identidade é o filósofo alemão Herbert Feigl, para quem
os processos mentais não passam de processos físicos. O pampsiquismo
espinozista foi retomado pelo britânico Conrad Hal Waddington e o alemão
Berhard Rensch. O materialismo radical foi representado pelo americano Willard
von Ormar Quine, que sustentou a inexistência dos processos conscientes e
mentais. O problema da dualidade entre o corpo e o espírito desaparece, uma vez
que só a matéria existe. Logo, no homem, só o corpo existe.
Na era contemporânea,
o novo saber científico que inclui a teoria da relatividade e a mecânica
ondulatória parecia ameaçar a base do materialismo, mas outras descobertas no
domínio da bioquímica, da física e da psicologia fisiológica, assim como
tecnologias, como a informática tornou mais plausíveis as concepções do
materialismo e levaram ao ressurgimento do interesse em torno de suas teorias
centrais. A física constatou, por exemplo, que a matéria é formada não de
átomos, mas de elétrons, prótons, mésons e outras partículas subatômicas e que
não há distinção entre matéria e energia. O fisicalismo, portanto, admite que
matéria é tudo aquilo que a física afirma que existe.
O progresso na tecnologia
de computadores, que substituem o homem em muitas atividades intelectuais
rotineiras como o cálculo, renovou a discussão sobre a natureza da inteligência
e levou a reiteradas tentativas de criar inteligência artificial, que
substituiria a mente humana e provaria que, como o cérebro, ela se compõe de
matéria.
3.16.3. Positivismo
Ao surgir no século
XIX, quando as descobertas científicas e os avanços técnicos faziam crer que o
homem podia dominar a natureza, o positivismo opôs às abstrações da teologia e
da metafísica o método experimental e objetivo da ciência.
Ideologia e movimento
filosófico fundado por Auguste Comte, o positivismo tem como base teórica os
três pontos seguintes:
1)todo conhecimento do
mundo material decorre dos dados “positivos” da experiência, e é somente a eles
que o investigador deve ater-se;
2)existe um âmbito
puramente formal, no qual se relacionam as idéias, que é o da lógica pura e da
matemática; e
3)todo conhecimento
dito “transcendente” -- metafísica, teologia e especulação acrítica -- que se
situa além de qualquer possibilidade de verificação prática, deve ser
descartado. A evolução posterior do positivismo passou por diversas etapas e
reelaborações, entre as quais cabe destacar o positivismo crítico e o
neopositivismo ou positivismo lógico, e exerceu influência notável no
desenvolvimento da filosofia analítica em meados do século XX.
No aspecto crítico,
como o positivismo repudia toda especulação em torno da natureza da realidade
que afirme uma ordem transcendental não-suscetível de demonstração pelos dados
da experiência, sua ética é secular e terrena, e coincide essencialmente com o
utilitarismo britânico -- sobre o qual influiu de maneira decisiva -- que se
pode resumir na célebre frase de Jeremy Bentham: “A maior felicidade possível
para o maior número possível de pessoas.”
3.16.4. Positivismo de Comte
A doutrina filosófica
do positivismo tem raízes ideológicas em diversos movimentos que tiveram lugar
no século XVIII, como o empirismo radical de David Hume, que concedia primazia
absoluta à experiência no processo do conhecimento, e o Iluminismo, com sua
crença no progresso da humanidade por meio da razão. O positivismo é produto
direto de sua época. Com a revolução industrial já plenamente realizada, em
pleno florescimento das ciências experimentais, que conquistavam
progressivamente mais e mais espaço, em detrimento da especulação racionalista,
Comte tentou a síntese dos conhecimentos positivos de seu tempo. Era recente e
estrondoso o triunfo da física, da química e de algumas idéias biológicas. Com
intenção de reforma social, o pensamento de Comte pretendeu ser um comentário
geral sobre os últimos resultados das ciências positivas.
Ao contrário do que
afirmaram alguns divulgadores, Comte nunca se inclinou a favor de um empirismo
radical. Pelo contrário, situava o positivismo entre o empirismo -- a pura
experiência direta do fato -- e o racionalismo, que ele chamava também de
misticismo. O saber científico depende tanto de dados empíricos como de
elaboração racional. O real não é dado
diretamente, pela simples sensação, ou mera apreensão da realidade pelos
sentidos, que precisam ser
complementados por ação do intelecto. O espírito reage, reelabora os dados dos
sentidos e os organiza segundo uma hipótese de trabalho e cria uma imagem de
mundo formada por elementos empíricos e racionais.
No pensamento social
de Comte manifesta-se a influência de seu mestre, Saint-Simon, teórico do
socialismo utópico, que preconizava uma reforma da sociedade. Comte se propôs a
dois objetivos básicos: a elaboração de uma sociologia -- disciplina criada por
ele e à qual pensou dar o nome de “física social” -- sobre a base exclusiva do
estudo científico dos dados da experiência, e a reorganização das ciências de
acordo com o mesmo critério.
A doutrina de Comte,
exposta no Cours de philosophie positive (1830-1842; Curso de filosofia
positiva), baseou-se na chamada lei dos três estados ou etapas do
desenvolvimento intelectual da humanidade. O primeiro estágio é o teológico, no
qual o homem explica os fenômenos da natureza mediante o recurso a entes
sobrenaturais ou divindades, e cuja fase superior é o monoteísmo. No segundo
estágio, o metafísico, não se interpreta o mundo sensível em função de seres
exteriores a ele, mas apela-se para forças ou conceitos imanentes e abstratos
(formas, idéias, potências, princípios). Por último, no estado positivo, o
homem se limita a descrever os fenômenos e a estabelecer “as relações
constantes de semelhança e sucessão entre eles”. Nesse estágio, que é o da filosofia
positiva, não se pretende achar as causas ou a essência das coisas, mas
descobrir as leis que as regem, já que a filosofia está “destinada por sua
natureza não a descobrir, mas a organizar”. O objetivo básico da filosofia
positiva é, pois, a ordenação e a classificação das ciências. Comte estabeleceu
uma pirâmide de seis ciências puras, na base da qual se encontrava a matemática
-- única ciência que não pressupõe as demais -- seguida da astronomia, física,
química, biologia e sociologia. Todas seriam regidas pelo mesmo método
descritivo, e cada uma delas utilizaria os dados proporcionados pelas
precedentes. Comte estabelecia assim o princípio da unidade da ciência.
No Discours sur
l'ensemble du positivisme (1848; Discurso sobre o conjunto do positivismo),
Comte incumbiu-se de relacionar os diversos sentidos da palavra “positivo”:
relativo, orgânico, preciso, certo, útil, real. No mesmo ensaio, parte dessas
características do positivo para chegar a uma significação moral e social mais
ampla, de reorganização da sociedade, com predomínio do coração e dos
sentimentos sobre a razão e a atividade, cujo ápice é a religião da humanidade.
O positivismo contém assim uma teoria da ciência, uma doutrina de reforma
social e uma religião.
Uma segunda fase na
vida do criador da doutrina positivista inicia-se com o predomínio dos
propósitos práticos em detrimento dos teóricos ou filosóficos, fase da qual é
bem representativo o seu Système de politique positive (1851-1854; Sistema de
política positiva). Constitui-se então a chamada “religião da humanidade”, com
ídolos, novo fetichismo, sociolatria, sociocracia, sacerdotes, catecismo, tudo
confessadamente muito próximo do catolicismo. Assim, o positivismo assume a
condição de um credo baseado na ciência, que não exclui a abertura de templos e
a prática de culto. Os aspectos religiosos do positivismo se encontram tratados
em Le Cathécisme positiviste (1852; O catecismo positivista).
3.17. Ortodoxos e heterodoxos
Os adeptos do
positivismo dividiram-se em dois grupos antagônicos: os ortodoxos, que
acompanharam Comte em sua fase religiosa; e os heterodoxos, que se mantiveram
fiéis somente à primeira fase, de cunho científico e filosófico. Na França,
Émile Littré, autor de Fragments de philosophie positive et de sociologie contemporaine
(1876; Fragmentos de filosofia positiva e sociologia contemporânea), líder dos
heterodoxos, considerou a segunda fase de Comte como um retrocesso, que entrava
em conflito com a primeira e a renegava. Pierre Laffitte, ortodoxo, foi o
continuador da pregação e sacerdote máximo da religião da humanidade.
Embora muito
criticadas porque excluíam elementos próprios da investigação científica, como
o método hipotético-dedutivo, as teorias de Comte tiveram grande número de
seguidores. Assim, por exemplo, o utilitarismo britânico, cujo principal
representante foi John Stuart Mill, e o pragmatismo americano sofreram decisiva
influência da doutrina positivista. Foi, entretanto, o chamado positivismo
crítico, centrado na teoria da ciência, que inspirou o desenvolvimento
posterior da doutrina.
3.18. Positivismo crítico e positivismo lógico
Com o nome de
positivismo crítico se conhecem as teorias enunciadas pelo pensador alemão
Richard
Avenarius, que chamou
seu sistema de empiriocriticismo, e o austríaco Ernst Mach. Ambos sustentavam
que todo conhecimento consiste unicamente na organização conceitual e na
elaboração dos dados da experiência proporcionados pelos sentidos, isto é,
pelas sensações. Negavam, assim, não só conceitos especulativos, como o de substância,
mas também hipóteses científicas, como o espaço absoluto, postulado por Newton.
As leis do
positivismo crítico, junto com as formulações lógicas de pensadores como o
alemão Gottlob Frege, o britânico Bertrand Russell e o austríaco Ludwig
Wittgenstein, autor do fundamental Tractatus logico-philosophicus, deram lugar
ao positivismo lógico, também chamado neopositivismo. Seu núcleo fundamental
foi o Círculo de Viena, integrado entre outros pelos alemães Moritz Schlick e
Rudolf Carnap e o austríaco Otto Neurath, cujas teorias foram expressas no
manifesto Wissenschaftliche Weltauffassung: Der Wiener Kreis (Concepção
científica do mundo: o círculo de Viena). Nele sustentavam que a lógica, como
ciência formal da representação simbólica, é autônoma em relação às ciências
empíricas, e que só estas podiam proporcionar informações sobre a realidade. O
objeto da análise filosófica seria estabelecer a verificação lógica das
proposições da ciência e eliminar aquelas pseudoproposições com sentido
aparente, mas baseadas em enunciados metafísicos não-demonstráveis. A validade
de um enunciado não-contraditório e suscetível de verificação experimental
seria objeto exclusivo das ciências empíricas.
O positivismo lógico
foi duramente criticado por pensadores como o austríaco Karl Popper, que
considerou que o critério positivo de verificação impedia a elaboração de
hipóteses, fundamentais para a ciência. Muitas das idéias dos positivistas
lógicos, entretanto, continuaram em discussão. Suas análises sobre o
significado das proposições e as relações entre as ciências formais e as
empíricas foram, de qualquer forma, fundamentais para a evolução posterior da
filosofia analítica.
3.19. Positivismo no Brasil
A história do
positivismo no Brasil tem importância especial para a evolução das idéias no
país. Foi sob o patrocínio do positivismo que, em grande parte, se fez a
preparação teórica da implantação da república. Vários dos mais destacados
propagandistas republicanos eram positivistas e, nos primeiros anos que se
seguiram à queda do império, ocuparam posição de relevo na administração
pública. Foi importante a influência intelectual e política de Benjamin
Constant, positivista e republicano. A divisa Ordem e Progresso, da bandeira
nacional, inspirou-se no conceito elaborado por Comte de uma sociedade
exemplar, que teria “o amor como princípio, a ordem como base e o progresso
como fim”.
A ação do positivismo
no Brasil lançou-se contra a posição filosófica de base espiritualista, então a
única existente. Nesse combate, estava o positivismo ao lado do materialismo e
do evolucionismo, que tinham lugar destacado entre os pensadores da época. A
influência positivista, que foi preponderante nessa fase de renovação das
idéias filosóficas no Brasil,
começou a estender-se, a princípio, por meio de brasileiros que estudaram na
França, alguns discípulos do próprio Comte. Depois, alargou seu campo em
virtude de teses que diversos professores defenderam em escolas superiores,
como a de Luís Pereira Barreto, As três filosofias (1874-1876).
O centro principal de
irradiação da doutrina foi a cidade de Recife, por intermédio da chamada
“escola de Recife”, cujo iniciador, Tobias Barreto, tomaria posteriormente
outros caminhos no domínio do pensamento. O mesmo ocorreu com outros dois
vultos eminentes do grupo, Sílvio Romero e Clóvis Beviláqua. A conversão de
Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes, que desenvolveram grande atividade no
setor do apostolado, foi importante para a expansão da doutrina no Rio de
Janeiro. Nessa cidade foi instalada a igreja e o Apostolado Positivista no
Brasil, em 1881. No Brasil, o positivismo passou de ciência a doutrina de
influência geral, acolhida por limitado número de estudiosos, como Ivan Lins,
mas sem a força dinâmica que o caracterizava nas últimas décadas do século XIX.
3.20. Racionalismo
O desenvolvimento do método matemático, considerado como instrumento
puramente teórico e dedutivo, que prescinde de dados empíricos, e sua aplicação
às ciências físicas conduziram, no século XVII, a uma crescente fé na capacidade
do intelecto humano para isolar a essência no real e ao surgimento de uma série
de sistemas metafísicos fundados na convicção de que a razão constitui o
instrumento fundamental para a compreensão do mundo, cuja ordem interna,
aliás, teria um caráter racional. Essa era a idéia central comum ao conjunto de
doutrinas conhecidas tradicionalmente como racionalismo, e cuja primeira
manifestação aparece na obra de René Descartes.
O termo racionalismo
pode aludir a diferentes posições filosóficas. Primeiro, a que sustenta a
primazia, ou o primado da razão, da capacidade de pensar, de raciocinar, em
relação ao sentimento e à vontade. Tal forma ou modalidade de racionalismo
seria mais propriamente chamada intelectualismo, pressupondo uma hirarquia de
valores entre as faculdades psíquicas. Em segundo lugar, racionalismo significa
a posição segundo a qual só a razão é capaz de propiciar o conhecimento
adequado do real. Por fim, o racionalismo ontológico ou metafísico consiste em
considerar a razão como essência do real, tanto natural quanto histórico.
Respectivamente, essas posições correspondem ao racionalismo
psicológico, racionalismo gnoseológico ou epistemológico e racionalismo
metafísico. Em comum, existe a convicção de que a razão constitui o instrumento
fundamental para compreensão do mundo, cuja ordem interna seria também
racional. O sentido filosófico de razão, todavia, não pode ser fixado apenas a
partir da linguagem corrente. O termo grego que a designa desde o nascimento da
filosofia grega, logos, indica, embora não deixe de se referir à noção de
cálculo, o discurso coerente, compreensível e universalmente válido.
Caracteriza, além do discurso, o que ele revela, os princípios daquilo que “é”
verdadeiramente. Em contraposição, os sofistas defenderam um pensamento “desse
mundo”, o da consciência comum.
3.20.1.Racionalismo psicológico
O intelectualismo
sustenta que as duas faculdades especificamente humanas são a vontade e a
inteligência ou razão. A inteligência é vista como a mais importante sob a
alegação de que a vontade ou a capacidade de querer, de decidir, é faculdade
cega, cujas operações dependem da inteligência que, por definição, é a
capacidade de iluminar e de ver. As filosofias intelectualistas opõem-se às
filosofias voluntaristas e sensualistas.
3.20.2. Racionalismo epistemológico
Posição filosófica
que afirma a razão como única faculdade de propiciar o conhecimento adequado da
realidade. A razão, por iluminar o real e perceber as conexões e relações que o
constituem, é a capacidade de apreender ou de ver as coisas em suas
articulações ou interdependência em que se encontram umas com as outras. Ao
partir do pressuposto de que o pensamento coincide com o ser, a filosofia
ocidental, desde suas origens, percebe que há concordância entre a estrutura da
razão e a estrutura análoga do real, pois, caso houvesse total desacordo entre
a razão e a realidade, o real seria incognoscível e nada se poderia dizer a
respeito.
3.20.3. Racionalismo metafísico
O racionalismo
gnosiológico ou epistemológico é inseparável do racionalismo ontológico ou
metafísico, que enfoca a questão do ser, pois o ser está implicado no
pensamento do ser. Declarar que o real tem esta ou aquela estrutura implica em
admitir, por parte da razão, enquanto faculdade cognitiva do ser humano, a
capacidade de apreender o real e de revelar a sua estrutura. O conhecimento, ao
se distinguir da produção e da criação de objetos, implica a possibilidade de
reproduzir o real no pensamento, sem alterá-lo ou modificá-lo.
3.20.4. Racionalismo clássico e tendências posteriores
Dois elementos
marcariam o desenvolvimento da filosofia racionalista clássica no século XVII.
De um lado, a confiança na capacidade do pensamento matemático, símbolo da
autonomia da razão, para interpretar adequadamente o mundo; de outro, a
necessidade de conferir ao conhecimento racional uma fundamentação metafísica
que garantisse sua certeza. Ambas as questões conformaram a idéia basilar do
Discours de la méthode (1637; Discurso sobre o método) de Descartes, texto central
do racionalismo tanto metafísico quanto epistemológico.
Para Descartes, a
realidade física coincide com o pensamento e pode ser traduzida por fórmulas e
equações matemáticas. Descartes estava convicto também de que todo conhecimento
procede de idéias inatas -- postas na mente por Deus -- que correspondem aos
fundamentos racionais da realidade. A razão cartesiana, por julgar-se capaz de
apreender a totalidade do real mediante “longas cadeias de razões”, é a razão
lógico-matemática e não a razão vital e, muito menos, a razão histórica e
dialética.
O racionalismo
clássico ou metafísico, no entanto,
cujos paradigmas seriam o citado
Descartes,
Spinoza e Leibniz,
não se limitava a assinalar a primazia da razão como instrumento do saber, mas
entendia a totalidade do real como estrutura racional criada por Deus, o qual
era concebido como “grande geômetra do mundo”.
Spinoza é o mais
radical dos cartesianos. Ao negar a diferença entre res cogitans -- substância
pensante -- e res extensa -- objetos corpóreos -- e afirmar a existência de uma
única substância estabeleceu um sistema metafísico aproximado do panteísmo.
Reduziu as duas substâncias, res cogitans e res extensa, a uma só -- da qual o
pensamento e a extensão seriam atributos.
Leibniz, o último
grande sucessor de Descartes, baseou sua doutrina na “harmonia preestabelecida”
da realidade por obra da vontade divina. Distinguiu as verdades de fato --
contingentes e particulares -- das verdades de razão -- necessárias e
universais --, porém considerou as primeiras redutíveis às segundas. Desse
modo, se conhecêssemos as coisas em seu conceito, como Deus as conhece,
poder-se-ia prever os acontecimentos, uma vez que a estrutura do real é
racional ou inteligível. Assim sendo, o método da ciência não poderia ser o da
indução, mas a dedução.
Sob uma perspectiva
contrária, os empiristas britânicos refutaram a existência das idéias inatas e
postularam que a mente é uma tabula rasa ou página em branco, cujo material
provém da experiência. A oposição tradicional entre racionalismo e empirismo,
no entanto, está longe de ser absoluta, pois filósofos empiristas como John
Locke e, com maior dose de ceticismo, David Hume, embora insistissem em que
todo conhecimento deve provir de uma “sensação”, não negaram o papel da razão
como organizadora dos dados dos sentidos. O próprio fato de haver toda esta
controvérsia em torno da problemática suscitada por Descartes revela a
importância crucial das teses racionalistas.
O racionalismo
cartesiano e o empirismo inglês desembocaram no Iluminismo do século XVIII. A
razão e a experiência de que resulta o conhecimento científico do mundo e da
sociedade bem como a possibilidade de transformá-los são instâncias em nome das
quais se passou a criticar todos os valores do mundo medieval.
A nova interpretação
dada à teoria do conhecimento pelo filósofo alemão Immanuel Kant, ao
desenvolver seu idealismo crítico, representou uma tentativa de superar a
controvérsia entre as propostas racionalistas e empiristas extremas.
Entendido como
posição filosófica que sustenta a racionalidade do mundo natural e do mundo
humano, o racionalismo corresponde a uma exigência fundamental da ciência:
discursos lógicos, verificáveis, que pretendem apreender e enunciar a
racionalidade ou inteligibilidade do real. Ao postular a identidade do
pensamento e do ser, o racionalismo sustenta que a razão é a unidade não só do
pensamento consigo mesmo, mas a unidade do mundo e do espírito, o fundamento
substancial tanto da consciência quanto do exterior e da natureza, pressuposto
que assegura a possibilidade do conhecimento e da ação humana coerente. Para
além de seus possíveis elementos dogmáticos, a filosofia racionalista, ao
ressaltar o problema da fundamentação
do conhecimento como base da especulação filosófica, marcou
os rumos do pensamento ocidental.
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