FACULDADE DE TEOLOGIA
TESTEMUNHAS HOJE
CURSO LIVRE
EXEGESE BÍBLICA
CONCEITO GERAL DE EXEGESE BÍBLICA
INTRODUÇÃO
Comentando Exegese, o
professor Jesiel Paulino da Silva afirma que a mesma refere-se ao estudo
sistemático e crítico, mui especialmente histórico-literário, da Bíblia
conforme princípios hermenêuticos, com o propósito imediato de determinar, com
o máximo de precisão, mediante o emprego de certos recursos e instrumentos
técnicos, qual o sentido primitivo que o escritor original tencionou dar ao seu
texto, isto é, o que o texto quer dizer ou comunicar por si mesmo. É a
tentativa de escutar a Palavra conforme os destinatários originais devem tê-la
ouvido; descobrir qual era a intenção original da Bíblia”.
Exegese, sob uma perspectiva
de conceituação elementar, é também definida como comentário para
esclarecimento ou interpretação detalhada de um texto ou palavra -
especialmente da Bíblia, leis ou gramática.
A palavra exegese tem sua
origem no termo grego exegesis, que tanto pode significar narração, guiar,
dirigir, governar, descrição ou apresentação, como explicação e interpretação,
que, por sua vez, origina-se de exegeomai. Egeomai significa “conduzir” e ex,
respectivamente ek, expressa a idéia de “para fora”. Etimologicamente, o
significado proposto para exegese seria “conduzir para fora”.
Exegese é, portanto, a
exposição, a operação de interpretar. Enquanto a hermenêutica é a ciência da
interpretação, a exegese é a aplicação dessa ciência à Palavra de Deus. Para se
compreender bem a exegese, é necessário saber o que é hermenêutica, que vem do
grego hermeneutikê e significa “relativo à interpretação, que serve para
interpretar, hermenêutica. A palavra
está ligada a Hermes, nome que os gregos davam a Mercúrio, de uma palavra da
língua grega que significa interpretação, pela razão de ser ele o mensageiro e
intérprete dos deuses. Reverenciava-se debaixo deste nome como deus da
eloqüência, e em respeito a isto se representava na figura de um homem de cuja
boca saíam como pequenas cadeias que parava nas orelhas de outras figuras
humanas, que exprimiam aos ouvintes que ele encadeava pela força do discurso
(Dicionário da fábula Compré, F. Briguiet & Cia., Rio de Janeiro, p. 221).
Exegese e hermenêutica
Tênue é a linha limítrofe
entre a exegese e a hermenêutica. Haja vista que ambas possuem uma intrínseca
relação. Todavia, apesar dessa íntima relação, é necessário serem feitas as
devidas distinções entre exegese e hermenêutica.
O vocábulo hermenêutica se
origina da palavra grega Hermeneutike que por sua vez, é derivada do verbo
ermeneuein, que possui significado similar ao de exegese, isto é,
“interpretar”. Ordinariamente trata-se dos princípios que dita as regras gerais
ou específicas a serem aplicadas na busca e na determinação do sentido dos
textos. E, por sua vez, a exegese, como já fora supracitado, trata-se da
aplicação concreta de regras hermenêuticas; portanto, ela consiste na
explicação propriamente dita do texto.
A Hermenêutica pertence ao
grupo de estudos Bibliológicos, isto é, aos estudos centrados na Bíblia. Ela é
naturalmente a Filosofia Sacra, e precede imediatamente a Exegese. A
Hermenêutica e a Exegese se relacionam na mesma forma que a teoria se relaciona
com a prática, pois a exegese é a aplicação metodológica dos princípios
técnicos hermenêuticos.
Portanto, a hermenêutica é a
ciência da interpretação, e a exegese a extração dos pensamentos que assistiam
ao escritor sagrado quando este redigia determinada porção da Escritura. A
exegese como ciência da correta interpretação das Sagradas Escrituras possui
suas próprias leis de interpretação, que devem ser entendidas e
aplicadas corretamente para se descobrir o sentido exato de determinada
passagem bíblica.
O Exegeta
Os dicionários comumente
definem o termo “exegeta” como “aquele que se dedica a fazer exegese”.
Partindo de uma perspectiva
técnica de conceituação, e sabendo que exegese é uma ação de explicação
interpretativa, o “exegeta” pode ser conceituado como a pessoa que interpreta e
explica o sentido de um texto. Essa conceituação evidencia que todo aquele que
interpreta e explica um texto pode ser classificado como exegeta, todavia o
questionamento é se o indivíduo é um bom ou mau, exegeta. Por isso, melhor é
restringir e denominar como exegeta tão somente aquele que, em um sentido mais
profundo, possui a capacitação de conhecer bem o idioma e as circunstâncias dos
textos no seu contexto original. Porém, apesar de nem todos poderem ser
conceituados tecnicamente como exegetas, todos têm o direito de investigar e
interpretar por si mesmos a Palavra de Deus.
O Trabalho do Exegeta
Na exegese do Antigo
Testamento, o estudante encontrará os mais variados temas, os quais geralmente
se alternam em um mesmo livro e, até em um mesmo capítulo, não apresentando, na
maioria das vezes, uma seqüência cronológica dos fatos e temas, o que
dificulta, em alguns casos, seguir a linha de pensamento do autor.
Os mais variados gêneros
literários e as diferentes expressões lingüísticas, que encontramos nas
Escrituras, devem ser consideradas, se realmente queremos chegar ao verdadeiro
sentido das passagens em estudo. Notamos distintos aspectos narrados por
diferentes pessoas, com diferentes graus de cultura.
Sabemos que as expressões
detalhadas de uma profecia não se podem ler como se formassem parte de uma
narração poética; também teremos de dar uma atenção muito especial às figuras
literárias e às séries de simbolismo que certamente serão encontrados.
Vale ressaltar que nunca
deve ser olvidada pelo exegeta cristão a sua obrigatoriedade de conhecer alguns
aspectos da exegese sagrada, pois, é a partir desse conhecimento que o
intérprete adquire maiores chances de esclarecimento no que toca a alguns
textos da Sagrada Escritura. Por outro lado, os passos que iremos apresentar,
referentes ao trabalho do exegeta cristão, trarão, sem dúvida, uma visão bem
mais abrangente da responsabilidade do intérprete bíblico, sobretudo quando ele
estiver diante de certos textos complexos das Escrituras. De fato, a tarefa é
árdua, difícil e exige do exegeta cristão um rigoroso policiamento para que, de
forma alguma, ele seja surpreendido pelo subjetivismo na sua análise textual,
mas deve sempre primar pela objetividade e pelo bom senso na sua exegese, a fim
de evitar extremismos. Analisemos, pois, os instrumentos de trabalho do exegeta
cristão.
O objetivo da Exegese
A exegese tem como objetivo
o estudo cuidadoso e sistemático da Escritura para descobrir o significado
original que foi pretendido. A exegese é praticamente uma tarefa histórica. É a
tentativa de escutar a Palavra conforme os destinatários originais devem tê-la
ouvido; descobrir qual era a intenção original das palavras da Bíblia. Esta é a
tarefa que freqüentemente exige a ajuda do “perito”, aquela pessoa cujo
treinamento a ajudou a conhecer bem o idioma e as circunstâncias dos textos no
seu âmbito original. Não é necessário, no entanto, ser perito para fazer boa
exegese. Na realidade, todos são exegetas dalgum tipo. A única questão real é
se você vai ser um bom exegeta. Quantas vezes, por exemplo, você ouviu ou disse:
“O que Jesus queria dizer com aquilo foi...” “Lá naqueles tempos, tinham o
costume de ...”? São expressões exegéticas. São empregadas mais freqüentemente
para explicar as diferenças entre “eles” e “nós” – por que não edificamos
parapeitos em redor das nossas casas, por exemplo, ou para dar uma razão do
nosso uso de um texto de uma maneira nova ou diferente – por que o aperto da
mão freqüentemente tomou o lugar do “ósculo santo”. Até mesmo quando tais
idéias não são articuladas, são, na realidade, praticadas o tempo todo de um
modo que segue o bom-senso.
O problema com boa parte
disto, no entanto, é que tal exegese freqüentemente é seletiva demais, e que
freqüentemente as fontes consultadas não são escritas por “peritos
verdadeiros”. Ou seja: são fontes secundárias que também empregam outras fontes
secundárias, ao invés das fontes primárias. São necessárias umas poucas
palavras acerca de cada um destes problemas:
O problema real com a
exegese “seletiva” é que a pessoa freqüentemente atribuirá suas próprias idéias,
completamente estranhas, a um texto e, assim, fará da Palavra de Deus algo
diferente daquilo que Deus realmente disse. Por exemplo, um dos autores deste
livro recentemente recebeu uma carta de um evangélico conhecido, que argumentou
que o autor não deveria comparecer a uma conferência juntamente com outra
pessoa bem conhecida, cuja ortodoxia era algo suspeita. A razão bíblica dada para evitar a conferência foi 1
Tessalonicenses 5.22: “Abstende-vos de toda forma do mal”. Se, porém, nosso irmão
tivesse aprendido a ler a Bíblia
exegeticamente, não teria usado o texto dessa maneira. Ora, 1Ts 5.22 foi a
palavra final de Paulo num parágrafo aos Tessalonicenses a respeito das
expressões carismáticas na comunidade. “Não tratem as profecias com desprezo”, diz
Paulo. “Pelo contrário, testem tudo, e apeguem-se ao que é bom, mas evitem
todas as formas malignas”. “Evitar o mal” tem a ver com “profecias,” que, ao
serem testadas, revelam-se não serem do Espírito. Fazer este texto significar
alguma coisa que Deus não pretendeu é abusar do texto, não usá-lo. Para evitar
erros deste tipo, devemos, aprender a pensar exegeticamente, ou seja: começar
no passado, lá e então, e fazer assim com todos os textos.
Conforme logo notaremos, não
se começa uma exegese consultando os “peritos”. Mas quando for necessário
fazê-lo, devemos procurar usar as melhores fontes.
1 - HISTORICIDADE
1.1. História dos princípios
da Exegese bíblica
1.1.1. Qual a razão de uma visão
panorâmica da História?
Desde que Deus revelou as
Escrituras, tem havido diversos métodos de estudar a Palavra de Deus. Os
intérpretes mais ortodoxos têm encarecido a importância de uma interpretação
literal, outros têm empregado um método alegórico, e ainda outros têm examinado
letras e palavras tomadas individualmente como possuindo significado secreto
que precisa ser decifrado.
A partir de uma visão
histórica dessas práticas de interpretação, veremos que:
a)nosso
sistema de interpretação, não é o único que já existiu;
b)os
pressupostos de outros métodos, proporcionam uma perspectiva mais equilibrada e
uma capacidade para um diálogo mais significativo com os que crêem de modo
diferente;
c) pela
observação dos erros dos que nos precederam, podemos conscientizar-nos mais dos
possíveis perigos quando somos tentados de maneira semelhante.
1.2. Exegese judaica Antiga
Um estudo da história da
interpretação bíblica começa, em geral, com a obra de Esdras. Ao voltar do
exílio na Babilônia, o povo de Israel solicitou a Esdras que lhes lesse o
Pentateuco (Ne 8.8).
Durante o período do exílio,
os israelitas provavelmente tenham perdido sua compreensão do hebraico, a
maioria dos eruditos bíblicos supõe que Esdras e seus ajudantes
traduziam o texto
hebraico e o
liam em voz alta em
aramaico, acrescentando explicações para esclarecer o significado.
Os escribas que vieram a
seguir tiveram grande cuidado em copiar as Escrituras, crendo que cada letra do
texto era a Palavra de Deus inspirada. Esta profunda reverência pelo texto
escriturístico firma suas vantagens e desvantagens. Uma grande vantagem estava
em que os textos foram cuidadosamente preservados através dos séculos. Uma
grande desvantagem foi que os rabinos logo começaram a interpretar a Escritura
por outros métodos que não os meios pelos quais a comunicação é normalmente interpretada.
No tempo de Cristo, a
exegese judaica podia classificar-se em quatro tipos principais: literal,
midráshica, pesher, e alegórica.
O método literal de
interpretação, referido como peshat, servia de base para outros tipos de
interpretações. Richard Longenerker, entende que este tipo de comentário devia
ser conhecido por todos e uma vez que não havia disputas a seu respeito, não
era registrado.
A interpretação midráshica
incluía uma variedade de dispositivos hermenêuticos. O rabi Hillel é considerado
como o elaborador das normas básicas da exegese rabínica que acentuava a
comparação de idéias, palavras ou frases encontradas em mais de um texto, a
relação de princípios gerais com situações particulares, e a importância do
contexto na interpretação.
A interpretação pesher
existia particularmente entre as comunidades de Qumran. A comunidade acreditava
que tudo quanto os antigos profetas escreveram tinha significado profético
velado que devia ser iminentemente cumprido por intermédio de sua comunidade do
pacto.
A exegese alegórica
baseava-se na idéia de que o verdadeiro sentido jaz sob o significado literal
da Escritura. Filão (20 a.C. a 50 d.C.), acreditava que o significado literal
da Escritura representava um nível imaturo de compreensão; o significado
alegórico era para os maduros. Devia usar-se a interpretação alegórica nos
seguintes casos:
a)se o
significado literal diz algo indigno de Deus,
b)se a
declaração parece ser contraditória a outra declaração da Escritura;
c) se o
registro alega tratar-se de uma alegoria;
d)se
as expressões são dúplices ou se há emprego de palavras supérfluas;
e)se
há repetição de algo já conhecido;
f) se
uma expressão é variada;
g)se
se empregam sinônimos;
h)se
for possível um jogo de palavras;
i) se
houver algo anormal em número ou tempo (verbal);
j) se
há presença de símbolos.
1.3. O uso do Antigo
Testamento pelo Novo
Aproximadamente 10% do Novo
Testamento constitui-se de citações diretas, de paráfrases do Antigo Testamento
ou de alusões a ele. Dos trinta e nove livros do Antigo Testamento, apenas nove
não são expressamente mencionados no Novo.
1.4. O uso que Jesus faz do
Antigo Testamento
Podemos extrair diversas
conclusões gerais dum exame do uso que Jesus faz do Antigo Testamento.
Primeiro, ele foi uniforme no tratar as narrativas históricas como registros
fiéis do fato. As alusões a Abel, Noé, Abraão, Isaque, Jacó, e Davi, por
exemplo, parecem todas intencionais e foram entendidas como referências a
pessoas de carne e osso e a eventos históricos.
Segundo, quando Jesus fazia
aplicação do registro histórico, ele o extraía do significado normal do texto,
contrário ao sentido alegórico.
Terceiro Jesus denunciou o
modo como os dirigentes religiosos haviam desenvolvido métodos casuísticos que
punham à parte a própria Palavra de Deus que eles alegavam estar interpretando,
e no lugar dela colocavam suas próprias tradições (Mc 7.6-13; Mt 15.1-9).
Quarto, os escribas e
fariseus, por mais que quisessem acusar a Cristo de erro, nunca o acusaram de
usar qualquer Escritura de modo antinatural ou ilegítimo. Mesmo quando Jesus
repudiava diretamente os acréscimos e as interpretações errôneas dos fariseus
com relação ao Antigo Testamento (Mt 5.21-48), o registro bíblico diz-nos que
“estavam as multidões maravilhadas da sua doutrina; porque ele as ensinava como
quem tem autoridade, e não como os escribas” (Mt 7.28-29).
Quinto, quando Jesus, vez
por outra, usou um texto de um modo que nos parece antinatural, geralmente se
tratava de legítima expressão idiomática hebraica ou aramaica, ou padrão de
pensamento que não se traduz diretamente para nossa cultura e nosso tempo. Em
Mt 27.9-10 encontramos um exemplo disto. Conquanto a passagem não seja citação
direta de Jesus, ela esclarece que aquilo que seria considerado inexato por
nosso conjunto de normas culturais era praxe hermenêutica legítima e aceita
naquele tempo. Diz o texto: “Então se cumpriu o que foi dito por intermédio do
profeta Jeremias: Tomaram as trinta moedas de prata, preço em que foi estimado
aquele a quem alguns dos filhos de Israel avaliaram; e as deram pelo campo do
oleiro, assim como me ordenou o Senhor.” A citação é, em realidade, uma
compilação de Jeremias 32.6-9 e Zacarias 11.12-13. Para a nossa maneira de
pensar, combinar citações de dois homens diferentes com referência somente a um
é erro de referência. Contudo, na cultura judaica da época de Jesus esta era
uma praxe hermenêutica aceita, entendida pelo autor e igualmente pela
audiência. Procedimento comum era agrupar duas ou mais profecias e atribuídas
ao mais preeminente profeta do grupo (neste caso, Jeremias). Portanto, o que
parece erro interpretativo na realidade é aplicação hermenêutica legítima
quando considerada dentro do devido contexto.
1.5. O uso que os Apóstolos
fizeram do Antigo Testamento
Os apóstolos acompanharam
seu Senhor e consideraram o Antigo Testamento como a Palavra de Deus inspirada
(2Tm 3.16; 2Pe 1.21). Em cinqüenta e seis casos, pelo menos, há referência
explícita a Deus como o autor do
texto bíblico. À
semelhança de Cristo,
eles aceitaram a exatidão histórica do Antigo Testamento (At 7.9-50;
13.16-22; Hb 11).
Não obstante, essa
afirmação, surge perguntas a respeito do uso que fizeram do Antigo Testamento
os escritores do Novo. Tais como: Ao citar o Antigo Testamento, com freqüência
o Novo modifica o fraseado primitivo. Como se pode justificar hermeneuticamente
tal prática?
Três considerações são aqui
pertinentes. Primeira, diversas versões em hebraico, aramaico e grego do texto
bíblico circulavam na Palestina no tempo de Cristo, algumas das quais tinham
fraseado diferente das outras. Uma citação exata de uma dessas versões podia
não ter a mesma redação dos textos dos quais se fazem nossas presentes
traduções, não obstante ainda representem interpretação fiel do texto bíblico
disponível ao escritor do Novo Testamento.
Segunda, conforme observa
Wenham, “não era necessário que os escritores citassem passagens do Antigo
Testamento, palavra por palavra, a menos que alegassem estar citando ipsis
verbis, particularmente porque estavam escrevendo numa língua diferente dos
textos originais do Antigo Testamento”.
Terceira, na vida comum, não
estar preso à citação é, geralmente, sinal de que o autor tem domínio da
matéria; quanto mais seguro está o orador de entender o significado de um
autor, tanto menor o medo que ele tem de expor essas idéias em palavras que não
são exatamente as do autor. Por esses motivos, pois, o fato de que os
escritores do Novo Testamento às vezes parafrasearam ou citaram indiretamente o
Antigo não indica, de forma alguma, que usaram métodos interpretativos
ilegítimos.
A segunda pergunta às vezes
levantada é: O Novo Testamento parece usar partes do Antigo de modo
antinatural. Como se justifica hermeneuticamente esta prática?
A discussão de Paulo da
palavra descendente em Gálatas 3.16 amiúde é usada como exemplo do manuseio de
uma passagem do Antigo Testamento, manuseio antinatural e, portanto, ilegítimo.
A promessa fora feita a Abraão de que por meio dele todas as nações do mundo
seriam abençoadas (Gl 3.8). O versículo 16 diz: “Ora, as promessas foram feitas
a Abraão e ao seu
descendente. Não diz: E
aos descendentes, como se falando de muitos, porém como de um só: E ao teu
descendente, que é Cristo”. Alguns estudiosos têm suposto, neste caso, que
Paulo tomou emprestado de métodos rabínicos ilegítimos na tentativa de provar
seu ponto de vista, já que parece impossível que uma palavra pudesse ter,
simultaneamente, um referente singular e um plural.
Contudo, descendente pode
ter no singular um sentido coletivo. Paulo está dizendo que as promessas foram
feitas a Abraão e à sua descendência, mas o cumprimento de tais promessas, em
última análise, só se realiza em Cristo. Na cultura hebraica da época, a idéia
de uma figura representativa do grupo (um “complexo de pensamento no qual há
uma oscilação constante entre o indivíduo e o grupo - família, tribo ou nação -
ao qual ele pertence”) era até mais forte do que no sentido coletivo expresso
pela idéia de descendência. Havia freqüente oscilação entre o rei ou alguma
figura representativa dentro da nação, de um lado, e o remanescente eleito ou o
Messias, de outro. A natureza da relação não é exatamente traduzível para
categorias modernas, mas era a que Paulo e sua audiência entendiam prontamente.
Em conclusão, a vasta
maioria das referências do Novo Testamento ao Antigo interpretam-no
literalmente; isto é, interpretam-no de acordo com as normas comumente aceitas
para interpretar todos os tipos de comunicação - história como história, poesia
como poesia, e símbolos como símbolos. Não se faz tentativa de dividir a
mensagem em níveis literais e alegóricos. Os poucos exemplos em que os
escritores do Novo Testamento parecem interpretar o Antigo de modo antinatural
podem, geralmente, ser resolvidos à medida que entendemos mais plenamente os
métodos interpretativos dos tempos bíblicos. Assim, o próprio Novo Testamento
lança a base para o método histórico-gramatical da moderna hermenêutica
evangélica.
2 - ESCOLAS EXEGÉTICAS
2.1. Exegese Patrística
(100-600 d.C.)
A despeito da prática dos
apóstolos, uma escola de interpretação alegórica dominou a igreja nos séculos
que se sucederam. Esta alegorização derivou-se de um propósito digno - o desejo
de entender o Antigo Testamento como documento cristão. Contudo, o método
alegórico segundo praticado pelos pais da igreja muitas vezes negligenciou por
completo o entendimento de um texto e desenvolveu especulações que o próprio
autor nunca teria reconhecido. Uma vez abandonado o sentido que o autor tinha
em mente, conforme expresso por suas próprias palavras e sintaxe, não
permaneceu nenhum princípio regulador que governasse a exegese.
Quando falamos nos Pais
Apostólicos – Patrísticos, geralmente nos referimos a alguns autores cristãos
do fim do primeiro século e dos primeiros séculos posteriores, cujos escritos chegaram
até nós. Estes escritos – em sua grande maioria de natureza incidental (cartas,
homílias) – são de valor para nós porque, ao lado do Novo Testamento, são
fontes mais antigas que possuímos como testemunho de fé cristã.
Os autores do segundo século
que, acima de tudo, procuraram defender o cristianismo de acusações em voga na
época, de procedência grega e judaica são, em geral, conhecidos como os
apologistas. Para estes homens o cristianismo era a única verdadeira filosofia,
substituto perfeito para a filosofia dos gregos e a religião dos judeus, que
nada mais podiam fazer do que apresentar respostas insatisfatórias às perguntas
cruciais do homem.
A exegese patrística é
fortemente marcada por três escolas, as quais são: “Escola Alexandrina; Escola Antioquiana;
e a Escola Ocidental”.
2.2. Escola de Alexandria
No início do terceiro século
d.C., a interpretação bíblica foi influenciada especialmente pela escola
catequética de Alexandria. Esta cidade foi um importante local de aprendizado,
onde a religião judaica e a filosofia grega se encontraram e exerceram
influência uma sobre a outra. A filosofia Platônica ainda estava em curso nas
formas do Neoplatonismo e o Gnosticismo. E não é de se admirar que a famosa
escola catequética dessa cidade caísse sob o encanto da filosofia popular e se
acomodasse à sua interpretação da Bíblia. O método natural encontrado para
harmonizar religião e filosofia foi a interpretação alegórica, visto que:
a)Os
filósofos pagãos (Estóicos – seguidores do filósofo grego Zenon, que morreu em
265 a.C. Zenon ensinava que o mais alto
objetivo do ser humano é viver de acordo com a sua razão e praticar a virtude.
Esta consiste em dominar as paixões, em não sentir-se atraído pelo prazer e em
não se deixar vencer pelo sofrimento (At. 17.18-20), já haviam, por um longo
tempo, aplicado o método na interpretação de Homero e, assim, mostrado o
caminho;
b)Filo,
que também era um alexandrino, emprestou ao método o peso da sua autoridade,
reduziu-o a um sistema e aplicou-o até mesmo nas mais simples narrativas.
Os principais representantes
dessa escola foram Clemente de Alexandria e seu discípulo, Orígenes. Ambos
consideravam a Bíblia como Palavra inspirada de Deus, no sentido mais estrito,
e compartilhavam da opinião corrente de que regras especiais tinham de ser
aplicadas na interpretação das mensagens divinas. E, embora reconhecessem o
sentido literal da Bíblia, eram da opinião de que só a interpretação alegórica
contribuía para o conhecimento real. Clemente de Alexandria foi o primeiro a aplicar
o método alegórico à interpretação do Novo Testamento assim como à do Antigo.
Ele propôs o princípio de que toda Escritura deve ser entendida de forma
alegórica. Isso foi um passo à frente em relação a outros intérpretes cristãos,
e constitui a principal característica da posição de Clemente. De acordo com
ele, o sentido literal só poderia fornecer uma fé elementar, enquanto o sentido
alegórico conduziria a um conhecimento real. Seu discípulo, Orígenes, superou-o
em ciência e influência. Foi, sem dúvida, o maior teólogo de seu tempo. Mas seu
mérito principal está na sua obra sobre criticismo textual ao invés da
interpretação bíblica. “Como intérprete, ele ilustrou o tipo alexandrino de
exegese de forma mais sistemática e extensiva” (Gilbert). Em uma de suas obras,
forneceu uma teoria detalhada de interpretação. O princípio fundamental dessa
obra é, que o significado que o Espírito Santo dá é sempre simples e claro e
digno de Deus. Orígenes considerava a Bíblia como um meio para a salvação do
homem; e porque, de acordo com Platão, o homem consiste de três partes - corpo,
alma e espírito - aceitou um sentido tríplice, a saber, o literal, o moral e o
místico ou alegórico. Na sua práxis exegética, preferia desconsiderar o sentido
literal da Escritura, referia-se raramente ao sentido moral e usava
constantemente a alegoria - uma vez que só ela produziria o conhecimento real.
2.3. Escola de Antioquia da
Síria
A escola de Antioquia foi
provavelmente fundada por Doroteu e Lúcio próximo do fim do terceiro século,
embora Farrar considere Diodoro, o primeiro presbítero de Antioquia e depois do
ano 378, bispo de Tarso, como o real fundador da escola. O último escreveu um
tratado sobre os princípios da interpretação. Mas seu maior marco compreendia
dois dos seus ilustres discípulos, Teodoro de Mopsuéstia e João Crisóstomo. Esses dois homens diferiam
grandemente em cada aspecto. Teodoro sustentava visões preferivelmente liberais
a respeito da Bíblia, enquanto João a considerava como sendo, em cada parte, a
infalível Palavra de Deus. A exegese do primeiro era intelectual e dogmática; a
do último, mais espiritual e prática. Um era famoso como crítico e intérprete;
o outro, embora fosse hábil exegeta, ofuscou todos os seus contemporâneos como
um orador de púlpito. Por essa razão, Teodoro foi intitulado o Exegeta,
enquanto João foi chamado de Crisóstomo
(boca de ouro) pelo esplendor de sua eloqüência. Eles foram longe rumo ao
desenvolvimento da exegese verdadeiramente científica, reconhecendo, como o
fizeram, a necessidade de se determinar o sentido original da Bíblia, a fim de
usá-la proveitosamente. Não somente deram grande valor ao sentido literal da
Bíblia, mas, conscientemente, rejeitaram o método alegórico de interpretação.
No trabalho de exegese, Teodoro superou Crisóstomo. Ele tinha um interesse pelo
fator humano na Bíblia, mas, infelizmente, negava a inspiração divina de alguns
dos livros escriturísticos. Ao invés do método alegórico, ele defendia a
interpretação histórico-gramatical, na qual estava muito à frente do seu tempo.
Embora reconhecesse o elemento tipológico na Bíblia e tenha encontrado
passagens messiânicas em alguns dos Salmos, explicou a maioria deles do ponto
de vista histórico.
2.4. Escola Ocidental
Um tipo intermediário de
exegese surgiu no Ocidente. Ela abrigava alguns elementos da escola alegórica
de Alexandria, mas também reconhecia alguns dos princípios da escola Siríaca.
Seu aspecto mais característico, no entanto, se encontra no fato de ter
promovido outro elemento, o qual não tinha se feito valer até aquele tempo, a
saber a autoridade da tradição e da Igreja na interpretação da Bíblia. O valor
normativo foi atribuído ao ensino da Igreja no campo da exegese. Este tipo de
exegese foi representado por Hilário e Ambrósio; mas especialmente por Jerônimo
e Agostinho. A fama de Jerônimo é baseada mais na sua tradução da Vulgata do
que nas suas interpretações da Bíblia.
Ele tinha familiaridade com o hebraico e com o grego, mas sua obra no campo
exegético consiste, primariamente, de um grande número de notas lingüísticas,
históricas e arqueológicas. Agostinho se diferenciava de Jerônimo no fato de
seu conhecimento das línguas originais ser bem deficiente. Isso é o mesmo que
dizer que ele não foi, primariamente, um exegeta. Ele foi grande em sistematizar
as verdades da Bíblia, mas não na interpretação
da Escritura. Seus princípios Hermenêuticos, os quais trabalhou em seu
“De Doctrina Chrisriana”, eram melhores do que sua exegese. Ele advogava que um
intérprete deveria ser filológica, crítica e historicamente equipado para sua
tarefa e, acima de tudo, tivesse amor pelo seu autor. Enfatizou a necessidade
de se ter consideração pelo sentido
literal e de basear o alegórico sobre ele; mas, ao mesmo tempo, entregou-se livremente
à interpretação alegórica. Além disso, em casos onde o sentido da Escritura era
duvidoso, opinou decididamente pela regula fidei, pela qual tencionava uma
declaração de fé sucinta da Igreja. Infelizmente, Agostinho também adotou um
sentido quádruplo da Escritura: histórico, etiológico, analógico e alegórico.
Foi, particularmente, nesse aspecto que ele influenciou a interpretação na
Idade Média.
2.5. Exegese Medieval
(600-1500 d.C.)
Durante a Idade Média,
muitos, até mesmo do clero, viviam em profunda ignorância quanto à Bíblia. E os
que conheciam era devido apenas à tradução
da Vulgata e aos escritos dos Pais. A Bíblia era, geralmente,
considerada como um livro cheio de mistérios, os quais só poderiam ser
entendidos de uma forma mística. Nesse período, o sentido quádruplo da Escritura
(literal, tropológico, alegórico e analógico) era geralmente aceito, e o
princípio de que a interpretação da
Bíblia tinha de se adaptar à tradição e
à doutrina da Igreja tornou-se estabelecido. Reproduzir os ensinos dos Pais e
descobrir os ensinos da Igreja na Bíblia eram considerados o ápice da
sabedoria. A regra de São Benedito foi sabiamente aplicada nos monastérios, e
decretado que as Escrituras deveriam ser lidas e, com elas, como
explicação final, a exposição dos Pais.
Hugo de São Vítor chegou a dizer:
“Aprenda primeiro as coisas em que você deve crer e, então, vá à Bíblia para
encontrá-las. Nem um único princípio hermenêutico foi desenvolvido nessa época,
e a exegese estava de mãos e pés atados pela tradição oral e pela autoridade da
Igreja”.
2.6. O Período da Reforma
A Renascença foi de grande
importância para o desenvolvimento dos princípios sadios da Hermenêutica. Nos
séculos XIV e XV, a ignorância densa prevaleceu quanto ao conteúdo da Bíblia.
Houve doutores de divindade que nunca a haviam lido inteira. E a tradução de
Jerônimo era a única forma pela qual a
Bíblia era conhecida. A Renascença chamou a atenção para a necessidade de se
voltar ao original. Reuchlin publicou uma Gramática Hebraica e um Léxicon
Hebraico; e Erasmo publicou a primeira edição crítica do Novo Testamento em
Grego.
Os Reformadores criam na
Bíblia como sendo a Palavra Inspirada de Deus. Mas, por mais estrita que fosse
sua concepção de inspiração,
concebiam-na como orgânica ao invés de mecânica. Em certos particulares,
revelaram até mesmo uma liberdade notável ao lidar com as Escrituras. Ao mesmo
tempo, consideravam a Bíblia como a autoridade suprema e como coorte final de
apelo em disputas teológicas. Em oposição à infalibilidade da Igreja, colocaram
a infalibilidade da Palavra. Sua posição é perfeitamente evidenciada na
declaração de que a Igreja não determina o que as Escrituras ensinam, mas as
Escrituras determinam o que a Igreja deve ensinar. O caráter essencial da sua
exegese era o resultado de dois princípios fundamentais: (1) a Escritura é a
intérprete da Escritura; e (2) todo o entendimento e exposição da Escritura
deve estar em conformidade com a analogia da fé.
2.7. Lutero (1483-1546 d.C.)
Ele prestou à nação
germânica um grande serviço ao traduzir a Bíblia para o alemão vernáculo.
Também se engajou no trabalho de exposição, embora somente em uma extensão
limitada. Suas regras hermenêuticas eram muito melhores do que a sua exegese.
Embora não desejasse reconhecer nada além do sentido literal e falasse desdenhosamente
da interpretação alegórica não se afastou inteiramente do método desprezado.
Defendeu o direito do julgamento particular; enfatizou a necessidade de se
levar em consideração o contexto e as circunstâncias históricas; requeria fé e
discernimento espiritual ao intérprete; e desejava encontrar Cristo em toda
parte da Escritura.
2.8. Melanchthon
Foi a mão direita de Lutero
e seu superior em ciência. Seu grande talento e conhecimento extensivo, também
de grego e hebraico, foram bem adaptados para transformá-lo em um intérprete
admirável. Em sua obra exegética, avançou os princípios sadios de que (a) as
Escrituras devem ser entendidas gramaticalmente antes de serem entendidas
teologicamente; e (b) as Escrituras têm apenas um sentido claro e simples.
2.9. Calvino (1509-1564
d.C.)
Foi, por consenso, o maior
exegeta da Reforma. Suas exposições cobrem quase todos os livros da Bíblia, e
seu valor ainda é reconhecido. Os princípios fundamentais de Lutero e
Melanchthon também foram os seus, e ele os superou ao ajustar sua prática com
sua teoria. Viu, no método alegórico, um artifício de Satanás para obscurecer o
sentido da Escritura. Acreditava firmemente no significado simbólico de muito
do que se encontra no Antigo Testamento, mas não compartilhava da mesma opinião
de Lutero de que Cristo deveria ser encontrado em toda parte da Escritura. Além
disso, reduziu o número de Salmos que poderiam ser reconhecidos como
messiânicos. Insistiu no fato de que os profetas deveriam ser interpretados à
luz das circunstâncias históricas. Como ele via, a excelência primeira de um
expositor consistia de uma brevidade lúcida. Além disso, considerava que “a
primeira função de um intérprete é deixar o autor dizer o que ele diz, ao invés
de atribuir a ele o que pensamos que ele deveria dizer”.
2.10. Católicos Romanos
Não fizeram nenhum avanço
exegético durante o período da Reforma. Não admitiam o direito do julgamento
particular e defendiam, em oposição aos protestantes, a posição de que a Bíblia
deve ser interpretada em harmonia com a tradição. O Concílio de Trento
enfatizou (a) que a autoridade da tradição eclesiástica devia ser mantida, (b)
que a autoridade suprema tinha de ser atribuída à Vulgata, e (c) que era
necessário conformar a interpretação de alguém à autoridade da Igreja e do
consenso unânime dos Pais. Onde esses princípios prevalecem, o desenvolvimento
exegético chega, inevitavelmente, a uma parada repentina.
2.11. Exegese de Pós-Reforma
(1550-1800)
2.11.1. Confessionalismo
O Concílio de Trento
reuniu-se em várias ocasiões de 1545 a 1563 e elaborou uma lista de decretos
expondo os dogmas da igreja católica romana e criticando o protestantismo. Os
protestantes reagiram com o desenvolvimento de credos que definam sua posição.
A certa altura, quase todas as cidades importantes tinham seu credo predileto,
com a predominância de amargas controvérsias teológicas. Os métodos
hermenêuticos durante este período amiúde eram deficientes porque a exegese se
tornou uma criada da dogmática, e muitas vezes degenerou-se em mera escolha de
texto para comprovação. Ao descrever os teólogos daquela época, Farrar diz que
eles liam “a Bíblia à luz do fulgor antinatural do ódio teológico”.
2.12. Pietismo
O pietismo surgiu como
reação à exegese dogmática e muitas vezes amarga do período confessional.
Philipp Jakob Spener (1635- 1705) é considerado o líder do reavivamento
pietista. Num folheto intitulado Anseios Piedosos ele pedia o fim da
controvérsia inútil, o retorno ao interesse cristão mútuo e às boas obras;
melhor conhecimento da Bíblia por parte dos cristãos, e melhor preparo
espiritual para os ministros.
A. H. Francke tipificou
muitas das características pedidas pelo folheto de Spener. Além de ser erudito,
lingüista e exegeta, ele foi ativo na
formação de muitas
instituições destinadas ao
cuidado dos
desamparados e dos enfermos.
Além disso, envolveu-se na organização do trabalho missionário para a Índia.
O pietismo fez
significativas contribuições para o estudo da Escritura, mas não ficou imune às
críticas. Nos seus mais sublimes momentos os pietistas uniram um profundo
desejo de entender a Palavra de Deus e apropriar-se dela para suas vidas com
uma excelente apreciação da interpretação histórico-gramatical. Contudo, muitos
pietistas mais recentes; descartaram a base de interpretação
histórico-gramatical, e passaram a depender de uma “luz interior” ou de “uma
unção do Santo”. Essas manifestações, baseadas em impressões subjetivas e
reflexões piedosas, muitas vezes resultaram em interpretações contraditórias e
que pouca relação tinham com o significado do autor.
2.13. Racionalismo
O racionalismo, posição
filosófica que aceita a razão como a única autoridade que determina as opções
ou curso de ação de alguém, surgiu como importante modo de pensar durante este
período e cedo devia causar profundo efeito sobre a teologia e a hermenêutica.
Durante vários séculos
antes, a igreja havia acentuado a racionalidade da fé. Considerava a revelação
superior à razão como meio de entender a verdade, mas a verdade da revelação
foi tida como inerentemente razoável.
Lutero estabeleceu distinção
entre o uso magisterial e o ministerial da razão. Por uso ministerial da razão
ele se referia ao emprego da razão humana para ajudar-nos a compreender e a
obedecer mais plenamente à Palavra de Deus. Por uso magisterial da razão ele se
referia ao emprego da razão humana como juiz sobre a Palavra de Deus. Lutero
afirmava claramente a primeira e rejeitava a segunda.
Durante o período que se
seguiu à Reforma, o uso magisterial da razão começou a emergir mais plenamente
como nunca antes. Surgiu o empirismo, crença de que o único conhecimento válido
que podemos possuir é o obtido através dos cinco sentidos, e aliou-se ao
racionalismo. A associação do racionalismo com o empirismo significava que: (1)
muitos pensadores de nomeada estavam alegando que a razão, e não
a revelação, devia
orientar nosso pensamento e
ações; e (2) que a razão seria usada para julgar que partes da revelação eram
consideradas aceitáveis (que chegaram a incluir somente aquelas partes sujeitas
às leis naturais e à verificação empírica).
2.14. Exegese Moderna (1800
até ao Presente)
2.14.1. Liberalismo
O racionalismo filosófico
lançou a base do liberalismo teológico. Ao passo que nos séculos anteriores a
revelação havia determinado o que a razão devia pensar, no final do século XIX
a razão determinava que partes da revelação (se houvesse alguma) deviam ser
aceitas como verdadeiras. Onde nos séculos anteriores a autoria divina da
Escritura fora acentuada, agora o foco era sua autoria humana. Alguns autores
diziam que várias partes da Escritura possuíam diversos graus de inspiração, e
podia ser que os graus inferiores (como detalhes históricos) contivessem erros.
Outros escritores, como Schleirmacher, foram além, negando totalmente o caráter
sobrenatural da inspiração. Muitos já não mencionavam a inspiração como o
processo pelo qual Deus guiou os autores humanos a um produto escriturístico
que fosse a sua verdade. Pelo contrário, a inspiração referia-se à capacidade
da Bíblia (produzida humanamente) de inspirar experiência religiosa.
Também aplicou-se à Bíblia
um naturalismo consumado. Os racionalistas alegavam que tudo o que não
estivesse conforme à “mentalidade instruída” devia ser rejeitado. Isto incluía
doutrinas como a depravação humana, o inferno, o nascimento virginal, e, com
freqüência, até a expiação vicária de Cristo. Os milagres e outros exemplos de
intervenção divina eram regularmente explicados de forma satisfatória como
exemplos de pensamento pré-crítico. Sofrendo a influência do pensamento de
Darwin e de Hegel, a Bíblia chegou a ser vista como um registro do
desenvolvimento evolucionista da consciência religiosa de Israel (e mais tarde
da igreja), e não como uma revelação do próprio Deus ao homem. Cada um desses
pressupostos influenciou profundamente a credibilidade que os intérpretes davam
ao texto bíblico, e, desse modo, teve importantes implicações para os métodos
interpretativos. Era freqüente a mudança do próprio foco interpretativo: A
pergunta dos eruditos já não era “Que é que Deus diz no texto?”, e, sim “Que é
que o texto me diz a respeito do desenvolvimento da consciência religiosa deste
primitivo culto hebraico?”
2.15. Neo-ortodoxia
A neo-ortodoxia é um
fenômeno do século XX. Ocupa, em alguns aspectos, uma posição intermediária
entre os pontos de vista liberal e ortodoxo. Rompe com a opinião liberal de que
a Escritura é tão-só produto do aprofundamento da consciência religiosa do
homem, mas detém-se antes de chegar à perspectiva ortodoxa da revelação.
Os que se encontram dentro
dos círculos neo-ortodoxos geralmente crêem que a Escritura é o testemunho do
homem à revelação que Deus faz de si próprio. Sustentam que Deus não se revela
em palavras, mas apenas por sua presença. Quando alguém lê as palavras da
Escritura e reage com fé à presença divina, ocorre a revelação. A revelação não
é considerada como algo ocorrido num ponto histórico, o qual agora nos é
transmitido nos textos bíblicos, mas uma experiência presente que deve fazer-se
acompanhar de uma reação existencial pessoal.
As posições neo-ortodoxas
sobre diversos problemas diferem das ortodoxas tradicionais. A infalibilidade
ou inerrância não tem lugar no vocabulário neo-ortodoxo. A Escritura é vista
como um compêndio de sistemas teológicos às vezes conflitantes acompanhados por
diversos erros fatuais. As histórias bíblicas da interação entre o sobrenatural
e o natural são vistas como mitos - não no mesmo sentido dos mitos pagãos, mas
no sentido de que não ensinam história literal. Os “mitos” bíblicos (como a
criação, a queda, a ressurreição) visam a apresentar verdades teológicas na
forma de incidentes históricos. Na interpretação neo-ortodoxa, a queda, por
exemplo, “informa-nos que o homem, inevitavelmente, corrompe sua natureza
moral”. A encarnação e a cruz mostram-nos que o homem não pode realizar sua
própria salvação, mas que ela “deve vir do além como ato da graça de Deus”.
A principal tarefa do
intérprete é, pois, despir o mito de seus envoltórios históricos a fim de
descobrir a verdade existencial que ele contém.
3 - EXEGESE GRAMATICAL
No estudo do texto, o
intérprete pode proceder da seguinte maneira. Começar com a sentença, com a expressão do pensamento
do escritor como uma unidade e, então, descer aos particulares, à interpretação
das palavras isoladas e dos conceitos. Três coisas pedem consideração aqui.
3.1. A Etimologia das
Palavras
O significado etimológico
das palavras merece atenção em primeiro lugar, porque precede todos os outros
significados. Como regra, não é aconselhável que o intérprete deva entregar-se
muito às investigações etimológicas. Esse trabalho é extremamente difícil e
pode, ordinariamente, ser deixado para especialistas. Ao mesmo tempo, é
aconselhável que o expositor da Escritura note a etimologia estabelecida de uma
palavra, uma vez que isso pode ajudar a determinar seu significado real e pode
iluminá-lo de uma maneira surpreendente. Tomemos as palavras hebraicas kopher,
kippurim e kapporeth, traduzidas respectivamente por “resgate”, “redenções” ou
“expiações” e “propiciatório”. Todas elas são derivadas da raiz kaphar, que
significa “cobrir” e contém a idéia de uma redenção ou expiação realizada por
uma certa cobertura. O pecado ou o pecador é coberto pelo sangue expiatório de
Cristo, que foi tipificado pelo sangue dos sacrifícios do Antigo Testamento.
Ou, pegue a palavra ekklesia do Novo Testamento, derivada de ek e kalein. Ela é
uma designação da Igreja, tanto na Septuaginta quanto no Novo Testamento, e
aponta para o fato de que essa consiste de um povo “chamado”, isto é, separado do
mundo em devoção especial a Deus.
3.2. Uso corrente das
palavras
Para interpretar
corretamente a Bíblia, o intérprete deve ter conhecimento dos significados que
as palavras adquiriram no curso do tempo e do sentido em que os
autores bíblicos as usaram. Pode-se pensar que isso deve ser facilmente
feito por meio da consulta a alguns bons léxicos, que geralmente dão os
significados originais e derivados das palavras e geralmente designam em que
sentido elas devem ser usadas em passagens particulares. Na maioria dos casos,
isso se aplica perfeitamente. Ao mesmo tempo, é necessário manter em mente que
os léxicos não são absolutamente infalíveis e menos ainda quando descem aos
particulares. Eles simplesmente incorporam os resultados das obras exegéticas dos
vários intérpretes que confiaram o julgamento discriminatório do lexicógrafo e,
freqüentemente, revelam uma diferença de opinião.
Se o intérprete tem alguma
razão para duvidar do significado de uma palavra, como apresentado no Léxico,
ele terá de investigar por si mesmo.
a) A
maioria das palavras tem muitos significados, alguns literais e outros
figurados;
b) O
estudo comparativo de palavras análogas em outras línguas requer uma
discriminação cuidadosa e nem sempre ajuda a fixar o significado exato de uma
palavra, uma vez que palavras correspondentes em Línguas diferentes nem sempre
têm, exatamente, o mesmo significado original e derivativo;
c) No
estudo das palavras do Novo Testamento, é imperativo que a avaliação do koiné
escrito e também do falado, seja considerada;
d) Não
é sempre seguro concluir o significado de uma palavra do Novo Testamento a
partir do seu significado no grego clássico, uma vez que o Cristianismo
acrescentou um novo conteúdo a muitas palavras.
Mas, por mais difícil que
essa tarefa seja, isso não pode deter o intérprete. Se necessário, ele deve
fazer, por si mesmo, um estudo completo de uma palavra. E o único modo pelo
qual ele pode fazer isso é pelo método indutivo. Será sua incumbência:
a)apurar,
com a ajuda das concordâncias grega e hebraica, onde a palavra é encontrada;
b)determinar
o significado da palavra em cada uma das conexões em que ocorre;
c) fazer
isso por meio das ajudas internas em vez das externas. Na busca de tal estudo,
os vários significados de uma palavra irão, gradualmente, se tornar aparentes.
No entanto, o intérprete deve tomar cuidado com as conclusões precipitadas, e nunca basear sua indução
somente numa parte dos dados disponíveis.
3.3. Uso de palavras
sinônimas
As palavras sinônimas são
aquelas que têm o mesmo significado, ou concordam em um ou mais de seus
significados, embora possam diferir em outros. Elas, freqüentemente, concordam
em seus significados fundamentais, mas expressam diferentes nuanças. O uso de
sinônimos contribui para a beleza da linguagem tanto quanto capacita um autor a
variar suas expressões.
As línguas em que a Bíblia
foi escrita são também ricas em expressões sinônimas e antônimas. É de se
lamentar que essas não tenham sido retidas, a uma grande extensão, nas
traduções. Em alguns casos, isso foi completamente impossível, mas, em outros,
poderia ter sido feito. Mas, embora algumas das mais refinadas distinções
tenham sido perdidas na tradução, o intérprete nunca pode perdê-las de vista.
Ele deve atentar para todas as idéias relacionadas da Bíblia e perceber
rapidamente o que elas têm em comum e em que diferem. Essa é a condição sine
qua non de um conhecimento distintivo da revelação bíblica.
Vejamos alguns exemplos: Em
Is 53.2, três palavras são usadas para expressar a ausência da glória externa na
vida do Servo do Senhor. Lemos: “Não tinha aparência nem formosura; olhamo-lo,
mas nenhuma beleza havia que nos agradasse” (Am. Rev.) A primeira palavra (tho
’ar) significa “forma”, com a idéia adicional de beleza e, conseqüentemente,
refere-se à forma da beleza corporal. Compare com 1Sm 16.18. A segunda (hadar)
designa um ornamento, e, quando aplicada a Deus, descreve majestade.
Ela refere-se ao modo como o
Senhor apareceu entre os homens e não à sua forma física. Ele se manifestou em
um estado de humilhação. E a terceira (mar ’eh, de ra ’ah, “ver”)
refere-se, algumas vezes, a uma
aparência externa que é a expressão da, e conseqüentemente em harmonia com, a
natureza essencial íntima do ser. O significado do profeta parece ser que a
aparência externa do Senhor não era exatamente a que os judeus esperavam de um
Messias.
O Novo Testamento fornece um
belo exemplo em João 21.15-17. Quando o Senhor ressurreto indagou pelo amor do
Pedro caído, usou duas palavras, a saber, agapao e phileo. A distinção entre as
duas é feita por Trench nas seguintes palavras: “A primeira expressa um afeto
mais racional de escolha e seleção, a partir do fato de se ver no objeto desse
afeto algo que é digno de consideração; ou ainda, a partir de um senso de que
isso é devido à pessoa então considerada, como um benfeitor ou semelhante;
enquanto a segunda, sem ser necessariamente um afeto irracional, dá menos
explicação de si mesmo a si mesmo; é mais instintivo, mais de sentimentos ou
afeições naturais, implica mais paixão”. A primeira, baseada em admiração e
respeito, é um amor controlado pela vontade e tem um caráter duradouro;
enquanto que a última, baseada na afeição, é um amor mais impulsivo e propenso
a perder seu fervor. Então, quando o Senhor colocou primeiramente a questão a Pedro,
“tu me amas?”, ele usou a primeira palavra, agapao. Mas Pedro não ousou
responder afirmativamente à questão, se ele amava ao Senhor com um amor
permanente que alcança seus maiores triunfos nos momentos de tentação. Assim,
em resposta, ele usou a segunda palavra, phileo. O Senhor repetiu a questão, e
Pedro novamente respondeu da mesma forma. Então o Salvador desceu até o nível
de Pedro e, em sua terceira questão, usou a segunda palavra, como se ele
duvidasse até mesmo do philein de Pedro. Não é de se admirar que Pedro se
entristecesse e fizesse um apelo à onisciência do Senhor.
As palavras sinônimas têm
sempre um significado geral como também um distintivo especial; e o expositor
não deve prosseguir no princípio de que sempre que essas palavras são usadas, o
significado distintivo deve ser enfatizado porque, assim, ele estará sujeito a
se encontrar enredado em todos os tipos de interpretações fantasiosas. O
contexto em que a palavra é usada, os atributos atribuídos a ela e os adjuntos
somados a ela devem determinar qual o sentido em que deve ser entendida, se o
geral ou o especial.
3.4. O significado das
palavras em seu contexto
No estudo das palavras
isoladas, a questão mais importante não é quanto ao significado etimológico,
nem mesmo quanto aos vários significados que adquiriram gradualmente. A questão
essencial é quanto ao seu sentido particular no contexto em que ocorre. O
intérprete deve determinar se a palavra é usada em seu significado geral ou em
um de seus significados especiais, se é usada no sentido literal ou figurado.
No estudo das palavras em seu contexto, o intérprete deve proceder segundo os
seguintes princípios:
3.4.1. “A linguagem da
Escritura deve ser interpretada de acordo com seu significado gramatical; e o
sentido de qualquer expressão, proposição ou declaração deve ser determinado
pelas palavras usadas”.
Em última análise, nossa
teologia encontra seu fundamento sólido apenas no sentido gramatical da
Escritura. O conhecimento teológico será falho na proporção do seu desvio do significado
claro da Bíblia. Embora esse princípio seja perfeitamente óbvio, é
repetidamente violado por aqueles que colocam suas idéias preconcebidas para
sustentar a interpretação da Bíblia. Pela exegese forçada, eles tentam ajustar
o sentido da Escritura às suas opiniões ou teorias preferidas.
3.4.2. Uma palavra pode ter
apenas um significado fixo no contexto em que ocorre.
O desejo de parecer original
e profundo e de surpreender as pessoas comuns por meio de exposições
fantásticas, as quais elas nunca haviam ouvido, parece, algumas vezes, tentar
os intérpretes a se desviarem desse princípio simples de interpretação. Seu
perigo e tolice podem ser ilustrados em alguns poucos exemplos.
3.4.2.1. A palavra grega
sarks pode designar
a)a
parte sólida de um corpo, exceto os ossos (1Co 15.39; Lc 24.39);
b)toda
a substância do corpo, quando é sinônimo de soma (At 2.26; Ef 2.15; 5.29);
c) a
natureza animal (sensual) do homem (Jo 1.13; 1Co 10.18);
d)a
natureza humana enquanto dominada pelo pecado, lugar e veículo dos desejos
pecaminosos (Rm 7.25; 8.4- 9; G1 5.16, 17). Se um intérprete atribuísse todos
esses significados à palavra como encontrada em Jo 6.53, ele iria, assim,
atribuir pecado, em um sentido ético, a Cristo, a quem a Bíblia representa como
aquele sem pecado.
3.4.2.2. A palavra hebraica
nakar significa
a)não
saber, ser ignorante;
b)contemplar,
olhar para algo como sendo estranho ou como pouco conhecido;
c) saber,
ser familiarizado com. O primeiro e terceiro significados são opostos. Daqui, é
perfeitamente óbvio que se um expositor tivesse de combinar esses vários
significados na interpretação de uma única passagem como Gn 42.8, o contraste
que este versículo contém se perderia e o resultado seria puro absurdo.
3.4.3. Casos em que vários
significados de numa palavra são unidos de tal forma que resultam numa unidade
maior que não se choca com o princípio precedente.
a)Algumas
veles uma palavra é usada em seu sentido mais geral afim de incluir seus
significados especiais, embora esses não sejam enfatizados.
Quando Jesus disse aos
discípulos em João 20.21: “Paz seja convosco”, ele queria dizer paz no sentido
mais amplo - paz com Deus, paz de consciência, paz entre eles mesmos, etc. E
quando Isaías diz em 53.4; “Certamente, ele tomou sobre si as nossas dores”
(literalmente, enfermidades), ele certamente se refere às doenças espirituais,
das quais o Servo do Senhor libertaria seu povo. Mas Mateus 8.17 nos diz que
essa palavra foi cumprida no ministério de cura do Salvador. A palavra de
Isaías é, conseqüentemente, tida como não somente significando que o Servo do
Senhor libertou seu povo das doenças espirituais, isto é, do pecado, mas também
das enfermidades físicas resultantes.
b)Há,
também, casos em que um significado especial de uma palavra inclui outra, o que
não se choca com o propósito e contexto da passagem em que se encontra.
Sob tais circunstâncias, é
perfeitamente legítimo unir os dois. Quando João Batista diz “Eis o cordeiro de
Deus que tira o pecado do mundo”, ele usa a palavra (airo) que significa (1)
assumir e (2) levar embora. Nessa passagem, o último significado predomina
claramente, mas inclui naturalmente o outro. Jesus não poderia conquistar o
pecado sem assumi-lo sobre si mesmo.
c) Às
vezes, um autor usa uma palavra num sentido sugestivo para indicar muito mais
do que ela realmente expressa.
Isso é especialmente feito
na sinédoque, quando uma parte representa o todo. Quando o Salvador ensina seus
discípulos a orarem: “Dá-nos o pão de cada dia”, a palavra “pão” representa as
necessidades da vida em geral. E, quando a Lei diz: “Não matarás”, ela proíbe,
de acordo com a interpretação de Jesus, não meramente o assassinato, mas a
raiva, o ódio e a implacabilidade também.
O intérprete, no entanto,
deve ser cuidadoso em não combinar arbitrariamente os vários significados de
uma palavra. Ele pode encontrar casos em que dois ou mais significados de uma
palavra aparentemente se adaptam bem de forma semelhante, e ser tentado a tomar
a estrada fácil de combiná-las. Mas isso não é uma boa exegese. Muenscher
defende que, em tais casos, o significado que exibe o sentido mais completo e
fértil deve ser escolhido. No entanto, é melhor suspender o julgamento até que
estudos adicionais garantam a escolha definitiva.
3.4.4. Se uma palavra é
usada na mesma conexão mais do que uma vez, a suposição natural é de que ela
tem o mesmo significado em toda parte.
Um autor não usaria
ordinariamente a mesma palavra em dois ou três diferentes sentidos em uma única
passagem. Porém, há algumas exceções à regra. O caráter da expressão do
contexto faz com que seja suficientemente claro o fato de que a palavra não tem
o mesmo sentido em ambos os casos. Os seguintes exemplos serão suficientes para
ilustrar isso: Mt 8.22, “deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos”;
Rm 9.6, “porque nem todos os de Israel são, de fato, israelitas”; 2 Co 5.21,
“Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que, nele,
fossemos feitos justiça de Deus”.
3.4.5. Auxílio interno para
a explicação de palavras
É natural que surja a
questão quanto ao modo pelo qual um intérprete pode descobrir melhor o
significado de uma palavra em uma certa conexão. Consultar um Léxico padrão ou
alguns bons Comentários, nem sempre pode ser suficiente, quando assim for, ele
terá de recorrer ao uso de auxílio interno. Os seguintes são os mais
importantes:
3.4.5.1. As definições ou
explicações que os próprios autores dão às suas palavras constituem um dos mais
eficientes auxílios.
Ninguém melhor do que o
autor sabe que sentido particular ele vinculou a uma palavra. Os seguintes
exemplos podem servir para ilustrar isso: Gn 24.2, “Disse Abraão ao seu mais
antigo servo da casa”, ao que é adicionado como definição, “que governava tudo
o que possuía”. Hb 5.14, “Mas o alimento sólido é para os adultos” (ou perfeitos),
o que é explicado pelas seguintes palavras, “para aqueles que, pela prática,
têm as suas faculdades exercitadas para discernir não somente o bem, mas também
o mal”.
3.4.5.2. As passagens
paralelas também constituem um auxílio importante
Essas são divididas em duas
classes, a saber, verbal e real. “Quando a mesma palavra ocorre em contextos
similares, ou em referência ao mesmo assunto geral, o paralelo é chamado
verbal... Paralelos reais são aquelas passagens similares nas quais a
semelhança ou identidade consiste não de palavras ou frases, mas de fatos,
assuntos, sentimentos ou doutrinas”. Por ora, estamos interessados apenas nos
paralelos verbais, que podem servir para explicar uma palavra obscura ou
desconhecida.
Ao ilustrar o uso de
passagens paralelas, faremos a distinção entre as que são assim chamadas de
forma própria e imprópria.
a)Paralelos
de palavras propriamente assim chamadas.
Em C1 1.16, lemos: “pois,
nele (Cristo), foram criadas todas as coisas”. À vista do fato de que a obra
criadora aqui é atribuída a Cristo, alguns arriscam a opinião de que a
expressão “todas as coisas” (panta) refere-se a toda a nova criação, embora o
contexto favoreça a idéia de universo. A questão agora levantada é se há
qualquer passagem na qual a obra da criação é atribuída a Cristo, e a
possibilidade de uma referência à nova criação é excluída. Tal passagem é
encontrada em 1Co 8.6, onde a frase ta panta é usada para todas as coisas
criadas, e a obra criadora é atribuída igualmente ao Pai e ao Filho. Em Is 9.6,
o profeta diz: “Porque um menino nos nasceu... e o seu nome será...Deus Forte
(El gibbor)”. Em Is 10.21, a mesma frase
é usada em um contexto no qual só pode referir-se à Deidade. João 9.39 contém a
declaração: “Eu vim a este mundo para juízo, a fim de que os que não vêem
vejam, e os que vêem se tornem cegos”. A palavra krima (juízo) denota geral e
completamente um juízo de condenação. Mas a frase final, nesse caso, parecia
demandar um significado mais amplo do juízo em geral, e a questão surge se a
palavra é sempre usada nesse sentido. Rm 11.33 responde a essa questão, pois
1á, a mesma palavra, indubitavelmente, tem um significado geral.
b)Paralelos
de palavras ou frases impropriamente assim chamadas.
Esses podem ser chamados de
paralelos impróprios uma vez que não contêm as mesmas palavras, mas, sim,
expressões ou palavras sinônimas. Os casos em que uma expressão é mais completa
em uma passagem do que em outra também podem ser assim classificados. Em 2Sm
8.18, lemos: “...Os filhos de Davi, porém, eram seus cohanim” (geralmente
traduzido por sacerdotes). Gesenius afirma que a palavra sempre significa
sacerdotes, enquanto Fuerst afirma que ela pode significar príncipes. A última
opinião é originada da passagem paralela em 1 Cr 18.17, onde, em uma e
numeração similar à de 2Sm 8, lemos: “ - Os filhos de Davi, porém, eram os
primeiros ao lado do rei [príncipes] (ri’shonim)”. Mt 8.24 diz: “E eis que
sobreveio no mar uma grande seismos”. Esta palavra significa realmente
terremoto, mas a relação aqui parece apontar para um significado diferente.
Isso é confirmado pelas passagens paralelas, Mc 4.37 e Lc 8.23, onde a palavra
lailaps é usada, significando vendaval ou um vento tempestuoso.
3.5. O uso figurado das
palavras
3.5.1. Principais tropos
usados na Escritura
Na relação presente, não
estamos preocupados com as figuras de sintaxe ou de pensamento, mas com as
figuras de linguagem que são comumente chamadas de tropos, nas quais uma
palavra ou expressão é usada em um sentido diferente daquele que lhe é próprio.
Os principais tropos são a metáfora, a metonímia e a sinédoque.
a)A
metáfora pode ser chamada de comparação não expressa. Ela é uma figura de
linguagem na qual um objeto é assemelhado a outro afirmando ser o outro, ou
falando dele como se fosse o outro. As metáforas ocorrem freqüentemente na
Bíblia. No Sl 18.2, seis delas são encontradas em um único versículo. Jesus
usou essa figura de linguagem quando disse aos fariseus: “Ide dizer a essa
raposa”, Lc 13.32. Há dois tipos de metáforas na Bíblia que se referem ao Ser
Divino e merecem atenção especial: (1) antropopatismo e (2) antropomorfismo. No
primeiro, as emoções humanas, paixões e desejos são atribuídos a Deus. Cf. Gn 6.6; Dt 13.17; Ef
4.30. No último, os membros do corpo e as atividades físicas são atribuídas a
ele. Cf. Êx 15.16; SL 34.16; Lm 3.56; Zc 14.4; Tg 5.4. Indubitavelmente, há,
também, uma grande quantidade de metáforas na descrição do céu como uma cidade
com ruas de ouro e portões de pérolas, no qual a árvore da vida produz seus
frutos de mês a mês; e na representação do tormento eterno como um verme que
não morre, um fogo que não se extingue, e uma labareda de tormento subindo para
sempre;
b)As
metonímias também são numerosas na Bíblia. Essa figura, assim como a sinédoque,
é baseada em relações em vez de em semelhanças. No caso da metonímia, essa
relação é mais mental do que física. Ela indica relações como causa e efeito,
progenitor e posteridade, sujeito e atributo, sinal e objeto assinalado. Paulo
diz em 1Ts 5.19, “Não apagueis o Espírito”, quando se refere às manifestações
especiais do Espírito. E quando na parábola do rico e Lázaro, Abraão diz, “Eles
têm Moisés e os profetas”, Lc 16.29, ele naturalmente queria dizer seus
escritos. Em Is 22.22, “a chave da casa de Davi” transmite a idéia de controle
sobre a casa real. A circuncisão é chamada de aliança em At 7.8, porque era um
sinal da aliança;
c) A
sinédoque assemelha-se, de alguma forma, à metonímia, mas a relação na qual é
encontrada é mais física do que mental. Nessa figura, há uma certa identidade entre
o que é expresso e o que se quis dizer. Uma parte é expressa pelo todo ou o
todo por uma parte; um gênero pela espécie, ou uma espécie por um gênero; um
indivíduo pela classe ou uma classe pelo indivíduo; um plural pelo singular ou
um singular pelo plural. Se diz que Jefté foi sepultado “nas cidades de
Gileade” (Jz 12.7 - na edição revista e corrigida), quando, naturalmente, se
queria dizer uma cidade apenas. Quando o profeta disse em Dn 12.2: “Muitos dos
que dormem no pó da terra ressuscitarão”, ele certamente não pretendia ensinar
uma ressurreição parcial. E quando Lucas nos informa em At 27.37 que havia no
navio “duzentas e setenta e seis almas” (na edição revista e corrigida), ele
não quis sugerir que havia espíritos desencarnados a bordo.
3.5.2. Auxílio interno para
se determinar qual o sentido pretendido, o figurado ou literal
É da maior importância, para
o intérprete, saber se uma palavra foi usada no sentido literal ou figurado. Os
judeus, e até mesmo os discípulos, muitas vezes se enganaram seriamente por
interpretar literalmente o que Jesus queria dizer de forma figurada. Cf Jo
4.11, 32; 6.52; Mt 16.6-12. Não compreender o que Senhor falou figurativamente
quando disse “Isto (é) o meu corpo” tornou-se até mesmo em uma fonte de divisão
nas Igrejas da Reforma. Portanto, é de extrema importância que o intérprete
tenha segurança nesse assunto. As seguintes considerações podem ajudá-lo
materialmente a resolver essa questão.
a)Há
certos escritos nos quais o uso da linguagem figurada é, a priori, impossível.
Entre esses estão as leis e todos os tipos de instrumentos legais, escritos
históricos e obras estritamente filosóficas e científicas e as Confissões.
Esses almejam, primeiramente, a clareza e a precisão, e a beleza fica em
segundo plano;
b)Há
uma velha regra Hermenêutica, freqüentemente repetida, de que as palavras devem
ser entendidas no seu sentido literal a não ser que a interpretação literal
envolva uma contradição evidente ou um absurdo. Deve-se observar, no entanto,
que na prática isso se torna meramente um apelo ao julgamento racional de cada homem. O que
parece ser absurdo ou improvável para alguém pode ser considerado como
perfeitamente simples e lógico para outro;
c) O
meio mais importante de se determinar se uma palavra foi usada literal ou figurativamente
em uma certa relação é encontrado no auxílio interno ao qual já nos referimos.
O intérprete deve considerar estritamente o contexto imediato, os adjuntos de
uma palavra, o caráter do sujeito e dos predicados atribuídos a ele, o
paralelismo, se presente, e as passagens paralelas.
3.6. A interpretação do
pensamento
A explicação do pensamento é
algumas vezes chamada de “interpretação lógica”. Ela procede da suposição de
que a linguagem da Bíblia é, como qualquer outra linguagem, um produto do espírito
humano, desenvolvida sob direção providencial. Os temas que pedem consideração
aqui são:
3.6.1. Expressões
idiomáticas especiais e figuras de pensamento
Cada língua tem certas
expressões características, chamadas idiomatismos. A língua hebraica não é
exceção à regra e algumas das suas expressões idiomáticas foram transportadas
para o Novo Testamento. Há um uso freqüente de hendíades. A hendiade exprime
uma idéia por meio de dois substantivos. No hebraico essa construção é comum,
mas utilizando verbos. Assim, em hebraico, 1Sm 2.3 lê-se: “Não multipliqueis,
falareis”. Isso evidentemente significa, não multipliqueis palavras. Na sua
defesa diante do Sinédrio, Paulo diz: “...no tocante à esperança e à
ressurreição dos mortos sou julgado” (At 23.6). O sentido é: “por causa da
esperança da ressurreição...”. O argumento de Moisés em objeção à sua comissão
foi de que ele não era um “homem de palavras” (que é como está em hebraico),
isto é, um homem eloqüente (Êx 4.10). Em 1Ts 1.3, Paulo fala “da firmeza da vossa
esperança”, quando queria dizer sua esperança firme, esperança caracterizada
pela paciência.
Há também vários tipos de
figuras de pensamento que merecem atenção especial.
a)Algumas
figuras promovem uma representação viva da verdade
Comparação. Quão viva é a
figura da completa destruição no Sl 2.9: “...e as despedaçarás como um vaso de
oleiro”; e a da completa solidão em Is 1.8: “A filha de Sião é deixada como
choça na vinha”. Cf também Sl 102.6; Ct 2.9.
Alegoria, que é meramente
uma metáfora estendida e deve ser interpretada pelos mesmos princípios gerais.
Encontramos exemplos no Sl 80.8-15 e em Jo 10.1-18. Terry faz a seguinte
distinção entre a alegoria e a parábola: “A alegoria é um uso figurado e
aplicação de algum fato presumível ou história, ao passo que a parábola é, ela
mesma, o fato presumível ou a história. A parábola usa palavras em seu sentido
literal e sua narrativa nunca ultrapassa os limites do que poderia ter sido
fato real. A alegoria continuamente usa as palavras em um sentido metafórico e
sua narrativa, embora presumível em si mesma, é manifestamente fictícia”.
b)Outras
figuras promovem brevidade de expressão. Elas são o resultado de uma rapidez e
energia do pensamento do autor, que denota um desejo de omitir todas as
palavras supérfluas.
Elipse, que consiste na
omissão de uma palavra ou palavras necessárias para se completar a construção
de uma sentença, mas não requeridas para o entendimento desta. Moisés ora,
“Volta-te, Senhor! Até quando?” (tu nos desampararás?) As sentenças curtas,
abruptas, revelam a emoção do poeta. Para outros exemplos, cf. 1Co 6.13; 2Co
5.13; Êx 32.32; Gn 3.22.
Braquilogia, também uma
forma de discurso concisa ou abreviada, consiste especialmente na não repetição
ou omissão de uma palavra, quando sua repetição ou uso seria necessário para
completar a construção gramatical. Nessa figura, a omissão não é tão evidente
quanto na elipse. Assim Paulo diz em Rm 11.18: “Não te glories contra os ramos;
porém se te gloriares, sabe que não és tu que sustentas a raiz, mas a raiz
(sustenta) a ti”. Note também 1Jo 5.9: “Se admitimos o testemunho dos homens, o
testemunho de Deus é maior”.
Zeugma, que consiste de dois
substantivos construídos com um verbo, embora apenas um - geralmente o primeiro
– se ajuste ao verbo. Assim, lemos literalmente em 1Co 3.2: “Leite vos dei a
beber, não vos dei alimento sólido”. E em Lc 1.64 lemos
a respeito de Zacarias: “E sua boca foi imediatamente aberta, e sua língua”
(que é como está no grego. A ARA acrescentou “desimpedida”). Ao fornecer as palavras
que faltam, o intérprete deve tomar muito cuidado a fim de não mudar o sentido
do que foi escrito.
c) Outras
figuras almejam suavizar uma expressão. Elas são explicadas pela delicadeza de
sentimento ou modéstia do autor.
O eufemismo consiste em substituir
uma palavra que expressa mais acuradamente o que se queria dizer por outra
menos ofensiva. “Com estas palavras adormeceu” (At 7.60).
A litote afirma algo pela
negação do oposto. Assim, o salmista canta: “coração compungido e contrito não
o desprezarás, ó Deus” (Sl 51.17). E Isaías diz: “Não esmagará a cana quebrada,
nem apagará a torcida que fumega” (Is 42.3).
A meiose é intimamente
relacionada à litote. Algumas autoridades associam as duas; outros consideram a
litote como uma espécie de meiose. Ela é uma figura de linguagem na qual menos
é dito do que se queria dizer. Cf
1Ts 2.15; 2Ts 3.2; Hb 13.17.
d)Finalmente,
há figuras que dão mais ênfase a uma expressão, ou a fortalecem. Elas podem ser
o resultado de uma indignação justa ou de uma imaginação viva.
1)A ironia contém censura ou escárnio
disfarçado de louvor ou elogio. Cf Jó 12.2; 1Rs 22.15; 1Co 4.6. Há casos na
Bíblia em que a ironia se transforma em sarcasmo. Cf. 1Sm 26.15; 1Rs 18.27; 1Co 4.8;
2)A
epizêuxis fortalece uma expressão pela simples repetição de uma palavra (Gn
22.11; 2Sm 16.7; Is 40.1);
3) A hipérbole ocorre
freqüentemente e consiste de um exagero retórico (Gn 22.17; Dt 1.28; 2Cr 28.4).
3.6.2. Ordem das palavras em
uma sentença
Na sentença verbal hebraica,
a ordem regular é essa: predicado, sujeito, objeto. Se em uma sentença o objeto
se encontra em primeiro lugar, ou o sujeito for colocado no
começo ou no
fim, é altamente provável que
eles sejam enfáticos. O primeiro lugar é o mais importante da sentença, mas a
palavra enfática pode também ocupar o último lugar. Harper dá as seguintes
variações da ordem usual:
a)objeto,
predicado, sujeito, o qual enfatiza o objeto (1Rs 14.11);
b)objeto,
sujeito, predicado, o qual, semelhantemente, enfatiza o objeto (Gn 37.16);
c) sujeito,
objeto, predicado, o qual enfatiza o sujeito (Gn 17.9);
d)predicado,
objeto, sujeito, o qual também enfatiza o sujeito (1Sm 15.33).
3.6.3. Curso do pensamento
em uma seção inteira
Não é suficiente que o
intérprete fixe sua atenção nas orações e sentenças separadas; ele deve se
familiarizar com o pensamento geral do escritor ou orador. Um único exemplo
pode servir para ilustrar a dificuldade que temos em mente. Em João 3,
Nicodemos aborda Jesus com as palavras: “Rabi, sabemos que és Mestre vindo da
parte de Deus; porque ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não
estiver com ele”. De que modo a resposta de Jesus no v.3 é relacionada a essas palavras? No versículo
4, Nicodemos declara que não entende Jesus. O Senhor responde sua questão nos
versículos 5-8? O fariseu repete sua questão no versículo 9 e Jesus expressa,
no versículo 10, surpresa quanto à sua ignorância. Por que ele, agora, chama a
atenção para o fato de que sabe do que fala: da incredulidade dos judeus,
incluindo Nicodemos; e da sua vinda do céu e de sua exaltação futura na cruz
para a salvação dos crentes? Os versículos 16-21 também contêm as palavras de
Jesus? Cf. também Jo 8.31-37; G1 2.11-21.
As parábolas merecem uma
atenção especial. A palavra “parábola” é derivada do grego paraballo (jogar ou
colocar ao lado de), e sugere a idéia de colocar alguma coisa ao lado de outra
para comparação. Ela denota um método simbólico de linguagem, no qual uma
verdade moral ou espiritual é ilustrada pela analogia da experiência comum. Ela
mantém os dois elementos da comparação distintos como “interno e externo”, e
não atribui qualidades e relações de um ao outro. O Senhor tinha um propósito
duplo ao usar as parábolas, a saber,
revelar os mistérios do Reino de Deus a seus discípulos
e ocultá-los daqueles que não tinham olhos para as realidades do mundo
espiritual.
Na interpretação das
parábolas, três elementos devem ser levados em consideração.
a)O
escopo da parábola ou do assunto a ser ilustrado. É de importância fundamental
que o propósito da parábola sobressaia-se claramente na mente do intérprete. Na
tentativa de explorá-la, ele não deve negligenciar os importantes auxílios
oferecidos na Bíblia.
1)A
ocasião na qual uma parábola foi introduzida pode ilustrar seu significado e
propósito. Mt 20.1ss. é explicado por 19.27; Mt 25.14ss, pelo versículo 13; Lc
16.19-31,pelo versículo 14. Cf. também Lc 10.29; 15.1,2; e 19.11, para o
propósito das parábolas seguintes;
2)O
objeto da parábola pode ser expressamente declarado na introdução, como em Lc
18.1;
3)Certas expressões no final de uma
parábola podem indicar, também, o seu propósito. Cf. Mt 13.49; Lc 11.9; 12.21;
4)Uma
parábola similar de importância similar pode apontar para o assunto a ser
ilustrado. Compare Lc 15.3ss. com Mt 18.12ss. O versículo 14 de Mt 18 contém uma
sugestão valiosa;
5)Em
muitos casos, no entanto, o intérprete terá de descobrir o propósito da
parábola por meio de um estudo cuidadoso do seu contexto.
b)Representação
figurada da parábola. Depois que o escopo da parábola for determinado, a
representação figurada pede um exame cuidadoso. A narrativa formal que
pretende, de uma só vez, revelar e ocultar a verdade, deve ser cuidadosamente
analisada e toda luz geográfica, arqueológica e histórica necessárias devem ser
dirigidas a ela;
c) O
objetivo exato da comparação. O objetivo exato da comparação deve ser
detectado. Há, sempre, algum aspecto especial do Reino de Deus, alguma linha de
tarefa particular a ser seguida, ou algum perigo a ser evitado, que a parábola
busca exibir e ao qual
todo o seu imaginário é
subserviente. Enquanto o intérprete não descobrir esse objetivo, ele não pode
esperar entender a parábola e não deveria tentar explicar as peculiaridades
individuais uma vez que essas só podem ser vistas em sua verdadeira luz quando
contempladas em relação à idéia central. Além disso, deve-se tomar cuidado em
não atribuir um significado espiritual independente a todos os detalhes da
parábola.
4 - INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA
Outro instrumento de
trabalho do intérprete bíblico é a exegese histórica. Aqui o autor deve ser
interpretado de acordo com o seu contexto histórico. Devemos aplicar ao texto
os conhecimentos da época do autor, fornecidos pela arqueologia, geografia,
cronologia e história geral. Somente assim seremos capazes de entrar no cenário
do texto. Não será necessário recorrer à história da exegese. Apenas uma
pequena observação é suficiente para se ver os absurdos e os ultrajantes erros
para os quais, aquele que negligencia esse princípio leva dos sinceros, mas
ignorantes pesquisadores. Ninguém pode apresentar uma narrativa bíblica
disfarçada de nosso dia-a-dia, sem tornar a história ridícula. Circunstâncias
históricas são essenciais para a veracidade e vivacidade da narração.
Devemos entender e analisar
as verdades das Escrituras, sem prejuízo delas, sem eliminá-las de sua
circunstância histórica. E então dar um novo e apropriado significado para o
seu propósito prático. Mas, nunca podemos interpretar as Escrituras sem a
exegese histórica, pois esta serve para definir mais precisamente o texto, e para
eliminar o material não-histórico alcançado pelo processo exegético. Em adição,
o professor Louis Berkhof argumenta sobre as características pessoais da
Escritura, dizendo:
“Na interpretação histórica
de um livro, a pergunta ‘quem é o autor?’ é sempre a primeira. Alguns livros da
Bíblia mencionam seus autores outros não. Mesmo tendo o conhecimento do nome do
autor, isso não proporciona ao exegeta todo o material de que necessita. Terá
de familiarizar-se com o próprio autor como homem. Isto é, seu caráter, seu
temperamento, sua disposição e modo habitual de pensar. O conhecimento íntimo
do autor do livro facilitará a compreensão de suas palavras; habilitará o
intérprete a entender, e quiçá a estabelecer, de um modo conclusivo, como as
palavras e expressões nasceram na alma do autor”.
Segundo Berkhof há uma outra
questão a levantar e é de suma importância no que toca à interpretação bíblica,
é que, antes de qualquer coisa, o exegeta bíblico deve procurar saber quem são
os personagens que aparecem no livro, pois, conforme opina Berkhof, os autores
bíblicos costumam introduzir personagens em seus escritos e é da maior
importância que o expositor distinga escrupulosamente as palavras do autor das
daquelas pessoas que intervêm na narração. Nos livros históricos, a linha de
demarcação geralmente é tão clara que isso não pode ser facilmente
negligenciado. Porém, há exceções. Por exemplo, é muito difícil determinar se
as palavras encontradas em Jo 3.16-21 foram ditas por Jesus a Nicodemos, ou se
são uma explicação dada por João. Nos profetas, as transições súbitas do humano
para o divino são, em geral, facilmente reconhecidas pela mudança da terceira
para a primeira pessoa, em conexão com o caráter do que é dito. Cf. Is 5.1,3;
Os 9.9,10; Zc 12.8-10; 14.1-3. Algumas vezes pode-se encontrar um diálogo entre
o escritor e um suposto oponente. Tais casos requerem um manuseio cuidadoso,
uma vez que a falha na distinção correta pode resultar em erros graves. Cf. Ml
3.13-16; Rm 3.1-9. A seguinte regra pode ajudar: “O escritor do livro deve ser
considerado como aquele que fala até que surjam algumas evidências expressas
que indiquem o contrário”. E quando o intérprete souber quem é aquele que fala,
distinto do escritor, ele deve aumentar seu conhecimento sobre ele com todos os
meios disponíveis. Pessoas como Abraão, Isaque, Jacó, José, Samuel, Jó e seus
amigos, classes de pessoas como os fariseus, saduceus e escribas, devem ser
objeto de estudo especial. Quanto mais se conheça sobre eles, mais suas
palavras serão entendidas”.
Em “Princípios de Interpretação Bíblica”, Louis Berkhof afirma que, “a interpretação
histórica se refere ao conteúdo material da Bíblia, e a mesma parte dos
seguintes pressupostos”:
1)A
Palavra de Deus teve a sua origem de uma forma histórica e, conseqüentemente,
só pode ser entendida à luz da História. Isso não significa que tudo, o que ela
contém, possa ser historicamente explicado. Como revelação sobrenatural de
Deus, ela, naturalmente, abriga elementos que transcendem os limites do
histórico. Significa que os conteúdos da Bíblia são, a um grande grau,
historicamente determinados e que, nesse grau, podem ser explicados na
História;
2)Uma
palavra nunca é completamente entendida até ser apreendida como palavra viva,
isto é, originária da alma do autor. Isso implica a necessidade do que é
chamado de interpretação psicológica, que é, na verdade, uma subdivisão da
interpretação histórica;
3)É
impossível entender um autor e interpretar corretamente suas palavras sem que
ele seja visto à luz da sua experiência histórica. É verdade que um homem, num
certo sentido, controla as circunstâncias de sua vida e determina seus
aspectos; mas é igualmente verdadeiro que ele é, num grau elevado, o produto do
seu ambiente histórico. Por exemplo, ele é filho do seu povo, de sua terra e de
sua época;
4)O
lugar, o tempo, as circunstâncias e a visão prevalecentes do mundo e da vida em
geral irão naturalmente alterar os escritos produzidos sob tais condições. Isso
também se aplica aos livros da Bíblia, particularmente aos históricos e aos de
caráter ocasional. Em toda a extensão da literatura, não há livro que se iguale
à Bíblia em tocar a vida em cada aspecto.
“Em vista desses
pressupostos, continua Louis Berkhof, a interpretação histórica faz as
seguintes exigências ao exegeta”:
a)Ele
deve buscar conhecer o autor cuja obra quer explicar: sua parentela, seu
caráter e temperamento, suas características intelectuais, morais e religiosas
e, também, as circunstâncias externas da sua vida;
b)Será
sua obrigação reconstruir, tanto quanto possível, a partir dos dados históricos
disponíveis e com o auxílio das hipóteses históricas, o ambiente no qual os
escritos particulares em consideração se originaram; em outras palavras, o
mundo do autor. Ele terá de se informar a respeito dos aspectos físicos da
terra onde os livros foram escritos e a respeito do caráter e história,
costumes, princípios morais e religião do povo entre o qual e para o qual foram
compostos;
c) Ele
deve descobrir a importância extrema de se considerar as várias influências que
determinaram mais diretamente o caráter dos escritos em consideração, tais
como: leitores originais, propósito que
o autor tinha em mente, idade do autor,
sua estrutura mental e as circunstâncias especiais em que compôs seu livro;
d)Além
disso, ele deve se transferir mentalmente para o primeiro século da nossa era e
para as condições orientais. Ele deve se colocar no ponto de vista do autor e
buscar entrar na própria alma dele, como se vivesse aquela vida e pensasse
aqueles pensamentos. Isso significa que ele terá de se proteger contra o erro
comum de transferir o autor para os dias atuais e fazê-lo falar na língua do
século XXI. Se não evitar isso, existe o perigo, como McPheeters o expressa, de
que “a voz que escuta seja meramente o eco de suas próprias idéias” (Bible
Studente, Vol. III, No. II).
4.1. Circunstâncias
geográficas
As circunstâncias climáticas
e geográficas em geral freqüentemente influenciam o pensamento, a linguagem e
as representações de um escritor e deixam uma marca na sua produção literária.
É importante que intérprete da Bíblia entenda o caráter das estações, os ventos
dominantes e suas funções, e a diferença de temperatura nos vales, nas
montanhas e nos cumes. Ele deve conhecer algo sobre a produção da terra:
árvores, arbustos e flores, grãos, vegetais e frutas, animais selvagens e
domésticos, insetos e pássaros nativos. Montanhas e vales, lagos e rios,
cidades e vilas, estradas e planícies - ele deve se familiarizar com eles e com
a sua localização. Como ele pode explicar a afirmação do poeta do “orvalho do
Hermom, que desce sobre os montes de Sião” (Sl 133.3), a não ser que esteja
familiarizado com o efeito do pico coberto de neve do Hermon sobre a neblina
que constantemente se levanta do desfiladeiro no sopé? Como ele pode
interpretar expressões como “a glória do Líbano” e “a excelência do Carmelo e
Sarom”, se não tiver conhecimento da sua vegetação exuberante e beleza
extraordinária? O que pode dizer para explicar o uso das carruagens no reino do
norte (1Rs 18.44ss.; 22.29ss.; 2Rs 5.9ss.; 9.16; 10.12, 15), e sua ausência no
reino do sul? Como pode explicar o sucesso de Davi em esquivar-se de Saul
embora tenham chegado a uma pequena distância um do outro, a não ser que
entenda a topografia do lugar? Apenas a familiaridade com as estações irão capacitá-lo
a interpretar passagens como Ct 2.11, “Porque eis que passou o inverno, cessou
a chuva e se foi”; e Mt 24.20, “Orai para que a vossa fuga não se dê no
inverno”.
4.2. Circunstâncias
políticas
A condição política de um
povo também deixa uma profunda impressão sobre sua literatura nacional. A
Bíblia contém ampla evidência disso também e, por essa razão, é absolutamente
necessário que o expositor se informe a respeito da organização política das
nações que tiveram grande importância no cenário bíblico. Sua história
nacional, relacionamentos com outras nações e instituições políticas devem se
tornar objeto de um estudo cuidadoso. As mudanças políticas na vida nacional de
Israel merecem uma atenção particular.
Somente a História lança uma
luz sobre a questão da razão pela qual não se permitiu que Israel perseguisse
os moabitas e os filhos de Amom (cf. Dt 2.9, 19). A posição de dependência de
Edom nos dias de Salomão e Josafá explica como esses reis puderam construir uma
frota de navios em Eziom-Geber, na terra de Edom (1Rs 9.26; 22.47, 48; 1Cr
18.13; 2Cr 8.17, 18). Passagens como 2Rs 15.19; 16.7 e Is 20.1 são explicadas
pelo poder ascendente dos assírios e da extensão gradual de seu império, como
foi revelado especialmente pelos registros de seus reis. As palavras de
Rabsaqué em 2Rs 18.19 e Is 36.4 se tornam luminosas em vista do fato de que
houve um partido egípcio influente em Judá durante o reinado de Ezequias (Is
30.1-7). A mudança radical na constituição e posição política de Israel deve
ser lembrada na interpretação dos escritos pós-exílicos. Passagens como Ed
4.4-6ss.; Ne 5.14, 15; Zc 7.3-5; 8.19; Ml 1.8, só podem ser explicadas à luz da
história contemporânea. Ao mover-se do Antigo Testamento para o Novo, o
intérprete irá encontrar uma situação para a qual estará totalmente
despreparado, a não ser que tenha estudado o período interbíblico. Os romanos
eram o poder dominante e os idumeus governavam sobre a herança de Jacó.
Partidos nunca citados no Antigo Testamento ocupavam, então, o centro do palco.
Havia um Sinédrio judaico que decidia os assuntos de maior importância e uma
classe de escribas que havia, praticamente, suplantado os sacerdotes como
mestres do povo. Consequentemente, todos os tipos de questões são levantadas.
Como o estado judeu era constituído? Por qual ironia da história os idumeus se
tornaram os governadores reconhecidos do povo judeu? Quais as limitações que a
supremacia romana impunha ao governo judeu? Os partidos existentes tinham
significado político? Se sim, o que almejavam? Um estudo sobre o passado de
Israel dará resposta a essas questões.
Passagens como
Mt 2.22, 23; 17.24-27;
22.16-21; 27.2; Jo 4.9 só podem ser explicadas à luz da história.
4.3. Circunstâncias
Religiosas
A vida religiosa de Israel
não se deslocou sempre sobre o mesmo plano, não foi sempre caracterizada pela
verdadeira espiritualidade. Houve épocas de elevação espiritual logo seguidas
por períodos de degradação religiosa e moral. As gerações que serviram a Deus
com um espírito humilde e reverente foram repetidamente sucedidas por
adoradores de ídolos ou por aqueles que buscavam satisfação no culto hipócrita,
da boca para fora. A história da religião de Israel, quando vista como um todo,
revela deterioração ao invés de progresso, degeneração ao invés de evolução.
O período dos juizes foi uma
época de sincretismo religioso resultante da fusão entre o culto a Jeová e a
adoração do baalismo cananeu. Nos dias de Samuel, a ordem profética começou a
se afirmar e a exercer uma influência benéfica sobre a vida espiritual da
nação. O período dos reis em Judá foi caracterizado pelos repetidos declínios e
restaurações. A adoração nos altos e, às vezes, idolatria flagrante, foi o
pecado insistente do povo. Durante o mesmo período, o pecado típico do reino do
norte era a sua adoração ao bezerro, aumentada nos dias de Acabe pela adoração
a Melcarte, o Baal fenício. Depois do exílio, a idolatria era rara em Israel,
mas sua religião se degenerou para um formalismo frio e uma ortodoxia morta.
Essas coisas devem ser
levadas em consideração na interpretação das passagens que se referem à vida
religiosa do povo. Além disso, o intérprete deve estar familiarizado com as
práticas e instituições religiosas de Israel, como foram regulamentadas pela
lei Mosaica. Passagens como Jz 8.28, 33; 10.6; 17.6 só podem ser explicadas à
luz da história contemporânea. Em 1Sm 2.13-17, o próprio escritor oferece uma
explicação histórica da maneira pela qual os filhos de Eli desconsideraram a
lei. O motivo por que Jeroboão levantou bezerros em Dã e Betel só pode ser
respondido historicamente. A História dá respostas a questões como por que os
reis piedosos e profetas de Judá combatiam constantemente a adoração nos altos,
enquanto os profetas de Efraim raramente condenavam essa prática. Sem o conhecimento
histórico necessário, o expositor achará impossível entender a palavra do anjo
a Manoá, “porque o menino
será nazireu, consagrado
a Deus” (Jz 13.7); a referência de Jeremias ao vale de Hinom
como “vale da matança” (Jr 19.6; comp. 7.31 33); a menção de Miquéias aos
“estatutos de Onri” (Mq 6.16); a ordem de Jesus ao leproso de ir e mostrar-se
ao sacerdote (Mt 8.4); e sua referência aos “tocadores de flauta, e o povo em
alvoroço” (Mt 9.23); e aos que “vendiam bois, ovelhas e pombas, e também os
cambistas assentados” (Jo 2.14). É a história que o capacitará a explicar
expressões como “sepultados com ele na morte pelo batismo” (Rm 6.4); e, “Pois
também Cristo, nosso Cordeiro pascal, foi imolado” (1Co 5.7). O grande
significado do conhecimento histórico é percebido quando o intérprete depara
com uma passagem como 1Co 15.29, que se refere a um costume do qual não temos
conhecimento certo.
5 - EXEGESE TEOLÓGICA
5.1. Elementos para a
Interpretação Teológica
Os elementos que podem
ajudar o expositor na interpretação teológica são compostos de duas partes: (1)
Paralelos Reais ou Paralelos de Idéias; e (2) Analogia da Fé ou da Escritura.
Ambos procedem do pressuposto de que a Palavra de Deus é uma unidade orgânica
na qual todas as partes são mutuamente relacionadas e, juntas, subservientes ao
todo da revelação de Deus; e que, em última análise, a Bíblia é a sua própria
intérprete.
5.1.1. Paralelos Reais ou
Paralelos de Idéias
“Paralelos reais”, diz
Terry, “são aquelas passagens similares nas quais a semelhança ou identidade
consiste não em palavras ou frases, mas em fatos, assuntos, sentimentos ou
doutrinas”. No seu uso, o intérprete deve determinar, primeiramente, se as
passagens citadas são realmente paralelas, se não são meramente similares até certo
grau, mas essencialmente idênticas. Por exemplo, Pv 22.2 e 29.13, embora
revelem uma certa similaridade e sejam freqüentemente considerados como
paralelos, não são realmente paralelos. Os paralelos de idéias podem ser
divididos em duas classes, paralelos históricos e didáticos. A esses podem ser
adicionadas as citações do Antigo Testamento no Novo, as quais, em um certo
sentido, também são passagens paralelas.
5.1.1.1. Paralelos
Históricos
5.1.1.1.1. Podem ser de
diferentes tipos
1)Há
alguns nos quais uma história é narrada nas mesmas palavras e com as mesmas
circunstâncias concomitantes, embora possam diferir levemente em termos de
detalhes. Compare 1Rs 22.29-35 com 2Cr 18.28-34; e Lc 22.19, 20 com 1 Co 11.24,
25;
2)Novamente,
há passagens em que as mesmas narrativas são expressas em palavras diferentes e
as circunstâncias são mais detalhadas em uma do que na outra. Nesses casos, é
natural esperar que a narrativa mais pormenorizada ilumine a outra. Compare Mt
9.1-8 com Mc 2.1-12;
3)Além
disso, há narrativas que são indubitavelmente idênticas mas que ocorrem em
contextos completamente diferentes. Elas são mais numerosas nos Evangelhos.
Nesses casos, a mais provável fornece o verdadeiro ambiente histórico e ilumina
a outra. Compare Mt 8.2-4 com Mc 1.40-45 e Lc 5.12-16; e Mt 11.6-19 com Lc
7.31-35;
4)Finalmente,
há passagens que não repetem um determinado evento, mas juntam uma
circunstância adicional e, conseqüentemente, são, num certo sentido,
complementares. Compare Gn 32.24-32 com Os 12.4, 5.
5.1.1.2. Paralelos Didáticos
5.1.1.2.1. Aqui, novamente,
encontramos dois tipos
1)Há
casos em que o mesmo assunto é tratado, mas não nos mesmos termos. Compare Mt
10.37 com Lc 14.26. Muitos intérpretes atenuam o significado da palavra “ódio”
usada por Lucas, por meio da passagem encontrada em Mateus”; e recorrem a Mt
6.24 para provar que o verbo “odiar” pode significar simplesmente “amar menos”.
No entanto, a exatidão dessa interpretação pode ser duvidada;
2)Há
passagens paralelas que se correspondem em pensamento e expressão mas onde uma
não tem relação direta com o contexto precedente ou seguinte. Assim, em Mt
7.13,14, as palavras “Entrai pela porta estreita...” ocorre sem qualquer
ambiente histórico. No entanto, esse é fornecido em Lc 13.23, 24;
3)Finalmente,
há também paralelos que ocorrem em relações completamente diferentes, embora,
talvez, igualmente adequados. É até mesmo possível que a ocasião para a
declaração não seja a mesma em ambos os lugares. O mesmo dito pode ter sido
expresso em várias ocasiões. Compare Mt 7.21-23 com Lc 13.25-28; e Mt 13.16, 17
com Lc 10.23, 24.
5.1.1.3. Citações do Antigo
Testamento no Novo
Em um certo sentido, essas
citações são paralelas. Elas merecem uma atenção especial porque muitos
estudiosos atuais não hesitam em dizer que os escritores do Novo Testamento, ao
citarem o Antigo, freqüentemente o fazem de forma arbitrária. As citações no
Novo Testamento não servem, todas, ao mesmo propósito.
1)Algumas
têm o propósito de mostrar que as predições do Antigo Testamento, diretas ou
indiretas, foram cumpridas no Novo Testamento. Isso se aplica a todas as
citações de passagens proféticas introduzidas com a fórmula: “Então se cumpriu
o que fora dito” e a várias outras. Cf. Mt 2.17, 23; 4.14, 15; Jo 15.25; 19.36;
2)Outras
são citadas para o estabelecimento de uma doutrina. Em Rm 3.9-19, Paulo cita
várias passagens dos Salmos para provar a depravação universal do homem;
3)Outras,
ainda, são citadas para refutar e repreender o inimigo. Jesus cita as
Escrituras em Jo 5.39,40 para expor a inconsistência dos judeus quando estes
alegavam grande reverência pelas Escrituras porém não acreditavam naquele de
quem elas testificavam;
4)Finalmente,
há algumas citações com propósito retórico ou para ilustrar alguma verdade.
Nessas citações, dá-se pouca consideração à relação em que ocorrem no Antigo
Testamento e freqüentemente parecem ser usadas arbitrariamente.
Conseqüentemente, elas são alvos especiais de ataques dos racionalistas. Mas as
críticas são totalmente injustificadas tendo em vista o propósito pelo qual
foram citadas. Em Rm 10.6-8, o apóstolo adapta a linguagem de Moisés (Dt
30.12-14) para seu propósito. Em Rm 8.36, ele aplica aos cristãos sofredores em
geral uma palavra que o salmista havia escrito com referência a outros, muito
tempo antes (Sl 44.22).
5.2. A Analogia da Fé ou da
Escritura
O termo “Analogia da Fé” é
derivado de Rm 12.6, onde lemos: “tendo, porém, diferentes dons segundo a graça
que nos foi dada: se profecia, seja segundo a proporção da fé (kata ten
analogian tes pisteos)”. Alguns comentaristas
equivocadamente
interpretaram “fé” aqui
objetivamente, no sentido de doutrina, e consideraram analogian como a
designação de um padrão externo. No entanto, corretamente interpretada, a
expressão toda significa simplesmente, de acordo com a medida da sua fé
subjetiva. Conseqüentemente, o termo derivado dessa passagem é baseado num
mal-entendido.
5.2.1. Há dois graus de
analogia da fé com os quais o intérprete da Bíblia deve se preocupar
1)Analogia
Positiva. O primeiro e mais importante desses é as analogias positivas, que é
imediatamente encontrada nas passagens escriturísticas. Consiste daqueles
ensinamentos da Bíblia que são clara e positivamente expressos, e amparados por
tantas passagens que não pode haver dúvida quanto ao seu significado e valor. Tais
verdades são as da existência de um Deus de perfeição infinita, santo e justo
mas, também, misericordioso e gracioso; do governo providencial de Deus e seu
propósito benéfico para com o pecador; da graça redentora revelada em Jesus
Cristo, de uma vida futura e retribuição;
2)Analogia
Geral. O segundo grau é chamado analogia geral da fé. Ela não repousa nas
declarações explícitas da Bíblia mas na extensão óbvia e importância dos seus
ensinamentos como um todo, e nas impressões religiosas que deixam na humanidade.
Assim, é claro que o espírito da lei Mosaica como também do Novo Testamento é
inimigo da escravidão humana. É perfeitamente claro também que a Bíblia é
hostil ao puro formalismo na religião e favorece a adoração espiritual.
5.2.2. A analogia da fé nem
sempre tem o mesmo grau de valor evidente e autoridade. Isso depende de quatro
fatores
1)O
número de passagens que contém a mesma doutrina. A analogia é mais forte quando
encontrada em doze passagens do que quando baseada em seis;
2)Unanimidade
ou correspondência das diferentes passagens. O valor da analogia será
proporcional à concordância das passagens em que é encontrada;
3)Clareza
da passagem. Naturalmente, uma analogia que repousa inteiramente, ou em grande
parte, em passagens obscuras, tem um valor um tanto duvidoso;
4)Distribuição
das passagens. Se a analogia é encontrada em passagens derivadas de um único
livro ou de alguns poucos escritos, não será tão valiosa como quando baseada em
passagens do Antigo e do Novo Testamentos, de várias épocas e de diferentes
autores.
5.2.3. Ao usar a analogia da fé na interpretação da
Bíblia, o intérprete deve se lembrar das seguintes regras
1)Uma
doutrina claramente amparada pela analogia da fé não pode ser contradita por
uma passagem obscura e contrária. Considere 1Jo 3.6 e o ensino geral da Bíblia
de que os crentes também pecam;
2)Uma
passagem não amparada nem contradita pela analogia da fé pode servir como uma
base positiva para uma doutrina, desde que seja clara em seu ensino. Porém. a
doutrina assim estabelecida não tem a mesma força da que é baseada na analogia
da fé;
3)Quando
uma doutrina é amparada apenas por uma passagem obscura da Escritura, e não
encontra apoio na analogia da fé só pode ser aceita com grande reserva.
Possivelmente, para não dizer provavelmente, a passagem requer uma
interpretação diferente da que foi dada a ela. Cf. Ap 20.1-4;
4)Nos
casos onde a analogia da Escritura leva ao estabelecimento de duas doutrinas
que parecem ser contraditórias, ambas as doutrinas devem ser aceitas como
escriturísticas na crença confiante de que elas se resolvem em uma unidade
maior. Considere as doutrinas da predestinação e do livre-arbítrio, da total
depravação e da responsabilidade humana.
5.3. O Sentido Místico da
Escritura
O estudo do sentido místico
da Escritura nem sempre tem sido caracterizado pela precaução necessária.
Alguns expositores defendem a posição insustentável de que cada parte da Bíblia
tem, além do
seu sentido literal, também um sentido místico. Outros
rechaçaram essa posição injustificada e foram para o extremo de negar completamente a existência
de qualquer sentido místico. Estudiosos mais cuidadosos, no entanto, preferiram
adotar uma posição intermediária de que certas partes da Escritura têm um
sentido místico que, nesse caso, não constitui um segundo sentido mas o sentido
real da Palavra de Deus. A necessidade de se reconhecer o sentido místico é
completamente evidente a partir do modo como o Novo Testamento freqüentemente
interpreta o Antigo.
5.3.1. Elementos para se
Descobrir o Sentido Místico
O Dr. Kuyper diz que o
intérprete, na sua tentativa de descobrir o sentido místico, deve ter em mente
que:
a)A
própria Escritura contém indicações do sentido místico. Por exemplo, é sabido
que o Novo Testamento interpreta messianicamente várias passagens do Antigo
Testamento e que, ao fazer isso, não somente aponta para a presença do sentido
místico nessas passagens particulares, mas também sugere que as passagens dessa
categoria devam ser interpretadas de maneira similar;
b)Existe
uma relação simbólica entre as diferentes esferas da vida em virtude do fato de
que roda a vida se relaciona organicamente. O mundo natural é simbolicamente
relacionado ao espiritual: a vida atual, com as glórias veladas da vida
vindoura. Assim, Paulo em Efésios 5 mostra o casamento como um mistério
indicativo da relação entre Cristo e a Igreja.
c) Uma
relação íntima entre a vida individual e comum claramente se revela na poesia
lírica. Nos salmos líricos, os poetas sacros não cantam como indivíduos
separados, mas como membros da comunidade. Eles compartilham das alegrias e
tristezas do povo de Deus que são, em última análise, as alegrias e tristezas
daquele em quem a Igreja encontra seu laço de união.
5.3.2. Extensão do Sentido
Místico
O sentido místico da Bíblia
não é limitado a qualquer livro da Bíblia nem a qualquer uma das formas
fundamentais de revelação de Deus como, por exemplo, profecia. Ele é encontrado
em vários escritos bíblicos, nos livros históricos, poéticos e também nos
proféticos.
5.4. Interpretação Simbólica
e Tipológica da Escritura
Deus se revelou não somente
em palavras, mas também em fatos. Os dois caminham juntos e se complementam
mutuamente. As palavras explicam os fatos e os fatos dão formas concretas às
palavras. A síntese perfeita dos dois é encontrada em Cristo, porque nele a
Palavra se fez carne. Todos os fatos da história da redenção registrados na
Bíblia centralizam-se nesse grande fato. As várias linhas da revelação do
Antigo Testamento convergem para ele e as da revelação do Novo Testamento dele
se irradiam. Só no seu centro unificador, Jesus Cristo, é que as narrativas da
Escritura podem ser explicadas. O intérprete só as irá entender verdadeiramente
quando discernir a sua relação com o grande fato central da História Sagrada.
Segue-se do que foi dito que
o expositor não pode se acomodar com um mero entendimento das narrativas
escriturísticas como tal. Ele deve descobrir o significado subjacente aos fatos
como o chamado de Abraão, a luta de Jacó com o anjo, a libertação de Israel do
Egito, a profunda humilhação pela qual Davi passou antes de subir ao trono.
Deve-se fazer justiça total ao caráter simbólico e tipológico da história de
Israel. Além disso, na interpretação dos milagres bíblicos, não se deve
esquecer que eles estão intimamente associados à obra da redenção. Em alguns
casos, eles simbolizam a obra redentora de Cristo; em outros, eles prefiguram
as bênçãos da era vindoura. Resumindo, o intérprete deve determinar o
significado dos fatos da História como uma parte da revelação da redenção de
Deus.
5.4.1. Os fatos podem ter um
significado simbólico
Os fatos ou eventos
históricos podem servir como símbolos de uma verdade espiritual. Um símbolo não
é uma imagem, mas um sinal de alguma outra coisa. E isso, em muitos exemplos, é
o que as narrativas da Escritura são. Alguns exemplos podem ilustrar isso.
Observe a luta de Jacó revelada em Gn 32.24-32, e citada em Os 12.2-4. Qual é o
significado desse incidente? Ele não pode ser entendido até que seja
contemplado como um símbolo do fato de que Jacó, embora herdeiro das promessas
de Deus, lutou todo o tempo com Deus e buscou alcançar o sucesso por meio da
sua própria força e astúcia, sendo-lhe ensinado, ao ficar incapacitado, que sua
carreira de esforço pessoal e resistência a Deus era fútil; e que ele devia recorrer ao uso das armas espirituais,
particularmente a arma da oração, a fim de obter a bênção de Jeová. Sua força
foi quebrada para que nele se manifestasse o poder de Deus.
Observe, também, um dos
milagres do Salvador. De acordo com Jo 6.1-13, Jesus alimentou uma multidão de
mais de 5.000 pessoas de forma miraculosa. Considerar esse milagre como uma
mera prova da onipotência do Senhor é errar em sua interpretação da mesma
maneira que erraram os judeus nos dias de Jesus. Eles não enxergaram o fato de
que isso era um sinal que apontava para a suficiência de Jesus, como o pão
celestial, para satisfazer as almas famintas dos homens. O próprio Cristo
revela claramente o significado desse milagre em seu discurso em Cafarnaum, no
dia seguinte. Os milagres escriturísticos são, freqüentemente, símbolos da
verdade espiritual. O próprio nome semeia aponta para isso, e algumas das
passagens dos Evangelhos indicam isso de forma muito clara. Cf. Jo 9.1-7; esp.
v.5; 11.17-44, esp. vs. 25, 26.
5.4.2. Os fatos podem ter
significado tipológico
Quando Abraão ofereceu seu
filho no Monte Moriá, ele realizou uma ação tipológica. Davi, como rei
teocrático, foi claramente um tipo do seu grande filho. A serpente levantada no
deserto apontava em direção à ascensão de Cristo à cruz. E a entrada do sumo
sacerdote no santo dos santos uma vez por ano para fazer expiação pelo pecado
do povo prefigurava aquele que, na plenitude do tempo, entrou no santuário
celestial com o seu próprio sangue, obtendo, assim, uma redenção eterna. Em
relação aos tipos, que ocupam um lugar importante na Bíblia, surgem duas
questões: (a) O que é um tipo? e (b) Quais são
as regras que se aplicam à sua interpretação?
5.4.2.1. Característica dos
tipos
O que é um tipo? Uma
resposta correta a essa questão irá nos proteger contra o erro de, por um lado,
limitar demais o elemento tipológico e, por outro, ampliá-lo indevidamente. A
palavra “tipo” (do grego tupos, derivado do verbo tupto), denota (1) a marca de
um golpe; (2) uma impressão, a marca deixada por um molde - portanto uma
figura, uma imagem; e (3) um exemplo ou modelo, que é o significado mais comum
na Bíblia. Tanto os tipos como os símbolos apontam para alguma outra coisa.
Eles, no entanto, diferem em importantes pontos. Um símbolo é um sinal, enquanto
que um tipo é um modelo ou uma imagem de alguma outra coisa. Um símbolo
pode se referir a algo do passado, presente ou futuro, enquanto que um
tipo sempre prefigura algo da realidade futura. Davidson diz: “Um símbolo é um
fato que ensina uma verdade moral. Um tipo é um fato que ensina uma verdade
moral e prediz alguma realização efetiva dessa verdade” (Old Testament
Prophecy, p. 229). Os tipos escriturísticos não são todos da mesma espécie. Há
pessoas típicas, lugares típicos, coisas típicas, ritos típicos e fatos
típicos. De acordo com Terry, a idéia fundamental é a da “relação
representativa preordenada que certas pessoas, eventos, e instituições do
Antigo Testamento têm com pessoas, eventos e instituições correspondentes no
Novo” (Biblical Hermeneutics, p. 246).
As três características
seguintes são geralmente dadas pelos escritores de tipologia:
a)Deve
haver algum ponto realmente notável de semelhança entre um tipo e seu antítipo.
Quaisquer que sejam as diferenças, o primeiro deve ser um retrato verdadeiro do
último em algum ponto particular;
b)O
tipo deve ser designado por mandato divino para ter uma semelhança com o
antítipo. A similaridade acidental entre uma pessoa ou evento do Antigo e Novo
Testamentos não significa que um seja tipo do outro. Deve haver alguma
evidência escriturística de que isso foi assim designado por Deus. Isso não é
equivalente à posição de Marsh que insistia em que nada deveria ser considerado
típico se não fosse expressamente assim designado no Novo Testamento. Se esse
critério estivesse correto, por que, então, não aplicá-lo também às profecias
do Antigo Testamento?;
c) Um
tipo sempre prefigura algo futuro. Moorehead disse corretamente: “Um tipo
escriturístico e a profecia preditiva são, em substância, a mesma coisa, diferindo
somente na forma” (Artigo, “Type”, no The International Standard Bible
Encyclopedia). Isso o distingue de um símbolo. No entanto, é bom nos lembrarmos
que os tipos do Antigo Testamento eram, ao mesmo tempo, símbolos que
transmitiam verdades espirituais aos contemporâneos, uma vez que seu
significado simbólico devia ser entendido antes que o significado tipológico
pudesse ser determinado.
5.4.2.2. Interpretação dos
tipos
Na interpretação dos
símbolos e tipos se aplicam as mesmas regras gerais que regem a interpretação
das parábolas. Conseqüentemente, podemos nos referir a elas. Mas há certas
considerações especiais a serem lembradas.
a)O
intérprete deve se proteger contra o erro de considerar uma coisa má como tipo
de algo bom e puro. Deve haver congruência. A representação das roupas de Esaú,
que Jacó vestiu quando enganou seu pai e recebeu a bênção, como um tipo da
justiça com a qual Cristo adorna seus santos, choca o nosso senso moral;
b)Os
tipos do Antigo Testamento eram, ao mesmo tempo, símbolos e tipos; isso porque
eles eram, em primeiro lugar, símbolos expressivos de verdades espirituais. A
verdade representada por esses símbolos aos contemporâneos era a mesma que
prefigurava como tipos, embora erguida a um nível mais elevado na sua
realização futura. Conseqüentemente, o modo adequado de se entender um tipo é
pelo estudo do símbolo. A primeira questão a ser decidida é sobre que verdades
morais ou espirituais os símbolos transmitiam aos israelitas. Só depois que
isso tiver sido respondido de forma satisfatória é que o expositor deve
prosseguir para questões posteriores quanto ao modo como essa verdade foi
concebida em um plano mais elevado no Novo Testamento. Dessa maneira, os
limites na interpretação do tipo já se encontram estabelecidos. Reverter o
processo e começar com a concepção do Novo Testamento conduz a todos os tipos
de interpretações arbitrárias e imaginosas. Por exemplo, alguns intérpretes
encontraram no fato de a serpente de bronze ter sido feita de um metal inferior
uma figura da insignificância externa de Cristo ou sua aparência humilde; na
sua solidez, um sinal da sua força divina; e no seu brilho ofuscado, uma
prefigura do véu da sua natureza humana;
c) Mas,
tendo aprendido os limites próprios dos tipos a partir do estudo da sua
importância simbólica, a verdade exata que transmitiam ao povo de Deus do
Antigo Testamento, o intérprete terá de se voltar para o Novo Testamento para
um discernimento real quanto à verdade tipificada. É evidente que os tipos
apresentavam a verdade em uma forma velada, enquanto no Novo Testamento, as
realidades dispersam as sombras e apresentam a verdade com brilho
resplandecente. Se as profecias só podem ser completamente entendidas à luz do
seu cumprimento, isso também se aplica aos tipos. Observe quanta luz adicional
a epístola aos Hebreus lança sobre as verdades incorporadas no tabernáculo e na
sua mobília;
d)É
princípio fundamental que os tipos que não têm natureza complexa têm apenas um
significado principal. Conseqüentemente, o intérprete não tem liberdade para
multiplicar seus significados e fazer, por exemplo, com que a passagem do Mar
Vermelho, considerada como um tipo do batismo, se refira (a) ao sangue
expiatório de Cristo que oferece um caminho seguro para a Canaã celestial e (b)
às provas pelas quais Cristo conduz seu povo ao descanso eterno. Ao mesmo
tempo, deve ser lembrado que alguns tipos podem ter mais de um cumprimento nas
realidades do Novo Testamento, por exemplo, um em Cristo e outro no povo
organicamente relacionado a ele. A habitação de Deus entre os filhos de Israel
era um tipo da sua habitação temporária entre os homens em Cristo, e da sua
habitação na congregação dos seus santos. As duas idéias são fundamentalmente
uma e, dessa maneira, exatamente alinhadas uma à outra;
e)Finalmente,
é necessário considerar devidamente a diferença essencial entre tipo e
antítipo. Um representa a verdade em um estágio inferior, o outro, a mesma
verdade em um estágio superior. Passar do tipo para o antítipo é ascender
daquele em que o carnal é preponderante para o puramente espiritual, do externo
para o interno, do presente para o futuro, do terreno para o celestial. Roma
perdeu isso de vista quando encontrou na missa o antítipo dos sacrifícios do
Antigo Testamento; na sucessão apostólica de padres e bispos, o antítipo do
sacerdócio; e no papa, o antítipo do sumo sacerdote.
6 - PRATICANDO EXEGESE
6.1. Exegese dos Evangelhos
No estudo dos Evangelhos, a
exegese se torna mais difícil que nas epístolas, pela simples razão de que a
maior parte de sua substância antecipa a Cruz e a ressurreição de Cristo, sem que este glorioso ato chave seja
ainda manifesto. Em nossa exegese temos de evitar um dispensacionalismo com
demasiada rigidez, que ignore a unidade da revelação divina, e ao mesmo tempo
compreender que, de fato, Deus opera por “tempos e estações”, e que os
Evangelhos indicam a importantíssima transição do regime preparatório à idade
do cumprimento em Cristo, o Prometido. A Cruz se erige na consumação dos
séculos (Hb 9.26); para ela todos os tempos anteriores apontavam e dela todos
os posteriores dependem. Portanto a história da Cruz é o centro de toda a
revelação.
6.2. O Evangelho Segundo
Mateus
6.2.1. Conteúdo
O primeiro evangelho do Novo
Testamento foi o que mais influenciou a história da igreja cristã. No século II
ele já era conhecido em todo o cristianismo. Formava a base para a instrução
sobre as palavras e a vida de Jesus Cristo. Por essa razão, era lido nos cultos
e servia de orientação no preparo dos candidatos ao batismo.
Mesmo que ao longo da história
da igreja os outros evangelhos tenham crescido em influência, o evangelho de
Mateus continuou com a preeminência. Afirmações sobre a pregação de Jesus se
orientam ainda hoje primeiramente por Mateus, pois contém o Sermão do Monte, as
parábolas sobre o Reino de Deus, as orientações de Jesus para a sua igreja e o
discurso sobre o juízo final.
Sendo assim, o evangelho é
caracterizado pelas grandes seqüências de discursos, que definem também a
estrutura do evangelho.
6.2.2. Gênero literário
A comparação com o evangelho
de Marcos faz aparecer de forma especial as características de Mateus:
Em vários lugares Mateus
registra as perícopes de forma mais abreviada do que Marcos. Isso é evidente,
por exemplo, no relato sobre a morte de João Batista (Mt 17.14-21 / Mc
9.14-29). A questão é se isso é o resultado de uma revisão do evangelho de
Marcos, ou se Marcos detalhou o relato mais resumido de Mateus. Ou será que os
dois relatos foram escritos sem dependência um do outro mas a partir de uma
outra base comum? A situação atual das pesquisas não permite uma conclusão
segura.
A característica mais
importante do evangelho de Mateus é a seqüência de discursos, que terminam
sempre com palavras semelhantes no seu conteúdo: “Quando Jesus acabou de
proferir estas palavras,...” (7.28; 11.1; 13.53; 19.1; 26.1). Isso dá a
impressão de que o autor reuniu os discursos de Jesus em seqüências temáticas.
Essa impressão é reforçada pelo fato de que Lucas reproduz esses mesmos
discursos de Jesus, só que em outros contextos. Para Mateus esses discursos de
Jesus eram tão importantes, que ele atribuiu peso especial a eles ao relatar
sermões interligados entre si por um tema comum.
A estrutura deste evangelho
demonstra que Mateus deu valor superior ao ensino de Jesus do que Marcos. No
entanto, ele não ignora os diálogos de Jesus com os seus conterrâneos, os
judeus, nem os milagres de Jesus. Assim como Marcos, ele também os registra.
Mas a marca especial de Mateus é o ensino de Jesus.
Salta aos olhos que Mateus
pressupõe entre os seus leitores um certo conhecimento da situação em que se
passam os eventos do seu evangelho. Ele não explica costumes, tradições e
expressões idiomáticas dos judeus, como por exemplo o costume de lavar as mãos
(Mt 15.2 1 Mc 7.2s), os filactórios que eram usados no braço (Mt 23.5), as
franjas nos cantos das vestes (fios e cordões em azul e branco que deviam lembrá-los
dos mandamentos da
lei: Mt 23.5). Ele
registra expressões tão vívidas de Jesus como “coais o mosquito e
engolis o camelo” (Mt 23,24) e “túmulos caiados” (Mt 23.27). As vezes ele até
usa expressões aramaicas transliteradas para o grego, como por exemplo raka,
que significa tolo, idiota (Mt 5.22) ou korbanan, que é tesouro do templo (Mt
27.6).
A questão do divórcio é
formulada como os rabinos da época costumavam formulá-la: “É lícito ao marido
repudiar a sua mulher por qualquer motivo?” (Mt 19.3). A resposta de Jesus é
dada de forma semelhante: “Quem repudiar sua mulher, não sendo por causa de
relações sexuais ilícitas, e casar com outra, comete adultério” (Mt 19.9).
Nessa dependência tão forte
da religiosidade judaica, constatamos que a validade da lei não foi
interrompida (Mt 5.19; 23.3). Até a forma de expressão é definida por essa
dependência. Em vez de falar do reino de Deus (como Marcos e Lucas) Mateus fala
do reino dos céus (veja as parábolas sobre o reino dos céus). Marcos só cita o
“pai que está nos céus” uma vez, enquanto Mateus fala dele 15 vezes (Mt 6.9;
7.11; 10.32s e outros).
O que mais chama a atenção
neste primeiro evangelho, além das seqüências de discursos de Jesus, são as
assim chamadas citações reflexivas. Nelas são mencionados acontecimentos da
vida de Jesus na sua relação com o Antigo Testamento e as suas promessas (Mt 1.22s / Is 7.14; Mt
2.6s / Mq 5.1,3; Mt 2.15 / Os 11.1; Mt 2.17s / Jr 31.15; Mt 3.3 Is 40.3; Mt
4.14-16 / Is 8.23-9.1; Mt 8.17 / Is 53.4; Mt 12.17-21 / Is 42.1-4,9; Mt 13.35 /
Sl 78.2; Mt 21.4 / Is 62.11; Zc 9.9; Mt 27.9s / Zc 11.13; Jr 18.2s). É evidente
que Mateus quer demonstrar nessas citações que em Jesus se cumpriram as
promessas messiânicas do Antigo
Testamento: ele é o Messias de Israel.
6.3. Contexto histórico
Em que formas de vida da
igreja primitiva este evangelho foi concebido? Em que situações foi usado e
depois transmitido a nós? Em que contexto este evangelho surgiu? Três possíveis
respostas serão citadas e comentadas:
Na sua essência, o evangelho
é um lecionário. Assim denominamos os livros que registravam a vida e o
ministério de Jesus para serem lidos
nos cultos da
igreja primitiva. G. D. Kilpatrick, que defende essa tese, supõe que uma parte da
igreja primitiva tenha lido nos seus cultos textos de Marcos e da fonte de
logia (dos discursos). Posteriormente teriam sido feitos acréscimos. Tudo isso
teria resultado no evangelho de Mateus, que se transformou então em um
lecionário, destinado às leituras públicas nos cultos.
Como base para essa
suposição, ele dá alguns argumentos: melhor estilo oral se comparado com
Marcos, formulação mais resumida e mais exata, a repetição de fórmulas e as
frases completas nelas contidas. Estas são, de fato, características do
evangelho de Mateus. Mas não são, por si só, suficientes para provarem o seu
uso litúrgico.
K. Stendahl supõe que há uma escola teológica por trás
deste evangelho. Dessa forma teriam sido instruídos mestres e líderes das
igrejas no cristianismo primitivo. O que lhes era ensinado teria resultado no
evangelho de Mateus. Como um dos argumentos principais ele cita o capítulo 18.
Segundo Stendahl, esse não foi um ensino específico para a igreja como um todo,
mas muito mais um conjunto de orientações para a liderança da igreja.
Argumento a favor dessa
idéia seria também o conhecimento e a interpretação do Antigo Testamento, que
pressupõe o trabalho de estudo da Palavra com iniciados. Possivelmente,
tratava-se então de uma “escola de Mateus”.
Quem considera essa posição
muito limitada, possivelmente concorde com D. Guthrie, que considera o
evangelho de Mateus o guia de catequese na instrução do cristianismo primitivo.
Recém-convertidos a Jesus Cristo precisavam desse tipo de instrução. O
evangelho de Mateus é muito apropriado para isso, pois nele são tratados os
principais temas da fé cristã. A maior ênfase dele está no ensino de Jesus, e
portanto, é ideal para passar esse ensino adiante. Por ter sido usado dessa
forma, tornou-se uma grande influência não somente sobre a liderança, mas
também sobre toda a igreja cristã primitiva.
6.4. Ênfases teológicas
O aspecto principal no
evangelho de Mateus é o ensino sobre Jesus, ou seja, a cristologia.
O que importa para Mateus é
demonstrar que Jesus de Nazaré é o Messias tão esperado pelo povo judeu. O
objetivo das citações reflexivas é servir de prova para essa demonstração.
Vemos esse aspecto também no título messiânico que só Mateus apresenta dessa
forma: Filho de Davi (cf. 12.23; 15.22; 21.9,15).
Salta aos olhos também, o
fato de que a árvore genealógica em Mateus começa com Abraão, o homem com quem
Deus iniciou a história de Israel (1.1 ss). Segundo Mateus, se Jesus é o
Messias, isso não significa que ele veio para abolir a lei, mas para cumpri-la
(5.17).
Um segundo aspecto muito
enfatizado se origina na tensão entre o particularismo e a universalidade (a
salvação é para todos). Os dois elementos estão presentes lado a lado na
proclamação e na vida de Jesus.
O particularismo se mostra
nas palavras de Jesus que reforçam a verdade de que o seu ministério se
restringe a Israel. Aos doze discípulos que ele envia, ordena: “Não tomeis rumo
aos gentios, nem entreis em cidade de samaritanos; mas, de preferência,
procurai as ovelhas perdidas da casa de Israel” (10.5-6). Ele lhes promete que
não conseguirão terminar essa tarefa até que venha o Filho do homem (10.23).
Semelhantemente, Jesus diz à mulher cananéia da região de Tiro e Sidom que lhe
pede ajuda: “Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel.” E
com mais exatidão: “Não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos
cachorrinhos” (15.24,26). Essa segunda rejeição também Marcos registrou; a
primeira só Mateus.
Por outro lado, a universalidade
está presente nesse evangelho desde o início. O nascimento de Jesus tem efeito
sobre todas as pessoas, até os astrólogos lá do oriente. Eles conseguem
perceber o acontecimento pelos seus meios de reconhecimento e vêm adorar o
Messias, o Rei de Israel (2.1-12). A árvore genealógica não vai só até Abraão.
Ela também inclui nomes de mulheres gentias: Raabe e Rute. Quando Jesus
interpreta a parábola do joio no meio do trigo, ele diz que o solo é o mundo
(13.38). Na parábola das bodas que um rei fez para o seu filho, depois que os
convidados não responderam ao convite do rei, os servos são enviados às ruas
para convidarem ao casamento todos os que acharem (22.9). No sermão
apocalíptico Jesus anuncia que, antes do fim do mundo, o evangelho do reino precisa
ser pregado a todos os povos (24.14).
Finalmente, o Senhor ressurreto delega a seus discípulos a
grande missão: “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, ...”
(28.19).
A tensão entre o
particularismo e a universalidade nos ensina que este evangelho é escrito por
uma testemunha de Jesus Cristo, que sabe que o Senhor dedicou a sua vida aqui
na terra aos judeus, mas que os discípulos têm a tarefa de levar o evangelho a
todas as pessoas. O seu testemunho agiu principalmente sobre a ala helenística
dos cristãos de origem judaica.
Um terceiro aspecto de
grande ênfase em Mateus diz respeito ao ensino sobre a igreja, a eclesiologia.
Somente no evangelho de Mateus encontramos declarações específicas sobre esse
tema.
Após a declaração de Simão
Pedro em Cesaréia de Filipe, Jesus lhe diz: “Tu és Pedro e sobre esta pedra
edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”
(16.18). No assim denominado sermão sobre a igreja (capítulo 18), Jesus ensina
a igreja como agir com membros que estão em pecado (18.15-17). A autoridade
para ligar e desligar não é delegada somente aos apóstolos. Ela vale para toda
a igreja. Aqui já é anunciado o que a reforma chamaria de sacerdócio universal
dos crentes.
A igreja precisa se
posicionar quanto ao ensino ético de Jesus. Ela não pode aprender a crer
somente, mas precisa demonstrar a sua fé ao fazer o que Jesus ensinou. Essa é a
medida que Jesus vai usar para medir os seus discípulos no final dos tempos:
Mateus 7.21-23; 25.31-46. O que é decisivo no final das contas não são palavras
bonitas e milagres fantásticos dos discípulos. O que vale para Deus é a prática
humilde da sua vontade.
A proximidade entre esse
ensino e a carta de Tiago é inconfundível.
Um quarto e último aspecto
que recebe atenção especial em Mateus, é o ensino sobre as últimas coisas, a
escatologia. Em Mateus, os discursos de Jesus sobre o final dos tempos estão em
dois capítulos. São significativamente mais abrangentes do que em Marcos e
contêm tradições que só se encontram aqui em Mateus (tradição exclusiva).
Essas tradições adicionais
não têm caráter especulativo. Não apresentam material que permita definir com
maior exatidão o desenrolar dos acontecimentos no final dos tempos. Tampouco
contêm visões da glória do novo mundo de Deus. São na verdade um auxílio para o
ensino equilibrado, o que é característica do evangelho de Mateus. O seu
objetivo é prevenir contra o engano da hipocrisia. Exorta os seus leitores a
estarem vigilantes e preparados a seguir os ensinos de Jesus. O propósito é preparar a igreja para o retorno de Jesus
por meio da vida prática e coerente do discipulado.
Visto que o evangelho de
Mateus tem essas quatro ênfases teológicas, não é de se admirar que tenha tido
influência tão forte sobre toda a história da igreja de Jesus. Por todos os
séculos, pessoas que queriam de fato ser cristãs, se basearam neste evangelho.
Sempre de novo foi repetida a sua exortação contra a compreensão superficial da
fé e da igreja. Por isso o evangelho de Mateus desencadeou muitos movimentos de
avivamento e de renovação da igreja de Jesus Cristo.
6.5. Unidade
O evangelho de Mateus, na
forma como nos foi transmitido no Novo
Testamento, é o texto completo e acabado de um autor. Nem os manuscritos e nem
observações no conteúdo permitem dúvidas quanto à sua unidade.
6.6. Autor
O evangelho não faz menção
alguma do seu autor. O nome de Mateus é citado no título do evangelho, que
surgiu no século II e a partir de lá foi incorporado à tradição. A atribuição
desse evangelho a Mateus remonta, portanto, à tradição da igreja antiga. Ela se
baseia nos seguintes argumentos:
Eusébio relata na sua
História Eclesiástica: “Mateus fez uma coletânea dos discursos de Jesus em
hebraico; cada um, no entanto, os traduziu o melhor que pode”.
De Irineu lemos: “Mateus
também publicou um evangelho entre os hebreus na sua língua, enquanto Pedro e
Paulo pregavam em Roma e lá fundaram a igreja”.
No quinto livro da História
Eclesiástica de Eusébio lemos o relato de Pantaenus sobre o evangelho de
Mateus. Pantaenus foi um teólogo muito hábil de Alexandria. Ele entendeu que a
sua tarefa era a evangelização dos povos do oriente e viajou para a índia. Quando chegou à índia teria encontrado
cristãos que já conheciam o evangelho de Mateus. Deles ouviu que o Apóstolo
Bartolomeu lhes pregara a boa notícia e lhes
deixara o evangelho segundo Mateus em hebraico.
E por último, Eusébio cita
Orígenes no sexto livro da sua História Eclesiástica, que teria dito no
primeiro livro do seu comentário sobre Mateus:
Com base na tradição tenho
descoberto a respeito dos quatro evangelhos, que foram aceitos sem restrições
na igreja de Deus por onde ela tem se espalhado debaixo do céu, que primeiro
foi escrito o evangelho por Mateus, o que havia sido cobrador de impostos e depois
foi discípulo de Jesus Cristo. Foi escrito na língua hebraica para os que
creram entre os judeus ...
A tradição da igreja antiga
confirma dois fatos sobre o primeiro evangelho: o apóstolo Mateus é o seu autor
e ele escreveu o seu evangelho na língua hebraica.
6.7. Quanto podemos confiar
nessa tradição?
Notamos que todos os
testemunhos da igreja antiga atestam que o evangelho de Mateus foi escrito em
hebraico. Isso afirmam até os pais da igreja como Irineu e Orígenes, cuja
língua materna era o grego, o que nos leva a concluir que eles também conheciam
o evangelho de Mateus em grego. Tinham, portanto, mais informações sobre a
origem deste evangelho.
É de se imaginar que todos
se basearam na mesma fonte: Papias. Presumivelmente relacionaram as suas observações
com o primeiro evangelho. Daí pode ter surgido a tradição de que Mateus
escreveu o evangelho em língua hebraica. Mas na verdade, Papias não se referiu
ao primeiro evangelho. Ele simplesmente falou dos logia (palavras), que Mateus
registrou em hebraico. Cada um então traduziu esses logia de acordo com as suas
condições.
Podemos concluir, portanto,
que a tradição da igreja antiga se refere à proclamação de Jesus que o primeiro
evangelho transmite par meio de Marcos. Essa tradução estaria baseada sobre o
apóstolo Mateus, que teria registrado a formulação original hebraica. A
tradução grega dessas palavras se tornou então uma parte fundamental do
primeiro evangelho, que, por esta razão, recebeu o nome de “evangelho segundo
Mateus”. Essa tradução provavelmente foi feita pelo próprio Mateus, como Godet
presume. Seria, portanto, uma versão
grega das palavras de Jesus autorizada por um apóstolo. Quem em seguida tomou a
tradição dos atos de Jesus, que encontramos em Marcos, e as palavras de Jesus,
que são típicas em Mateus, ajuntou tudo e editou em um evangelho, não sabemos.
6.7.1. Quem é esse apóstolo
Mateus?
O seu nome está em todas as
listas de apóstolos: Mateus 10.3; Marcos 3.18; Lucas 6.15; Atos 1.13. Em Mateus
10.3 ele é denominado cobrador de impostos e com isso rotulado como um daqueles
homens tão odiados por seus conterrâneos, os judeus, por trabalharem para o
estado romano, explorarem o povo e por enriquecerem inescrupulosamente. Em
Mateus 9.9-13 nos é relatado como Jesus o chamou diretamente da coletoria para
segui-lo e como Jesus, com essa atitude e também com a refeição que partilhou
com os colegas de Mateus logo em seguida, se expôs à veemente crítica dos
fariseus. Marcos e Lucas também registram a história desse chamado, com a
diferença de que lá esse publicano é chamado Levi (Mc 2.13-17; Lc 5.27-32). Por
isso, partimos do pressuposto de que ele tinha dois nomes, Levi Mateus.
Foram levantadas algumas
objeções contra a participação direta de um apóstolo na elaboração deste
primeiro evangelho. Se de fato um apóstolo participou tão diretamente na edição
deste evangelho, por que então ele não é um relato biográfico?
Contra-argumentamos: Por que deveria ele fazer um relato biográfico, se o que
importava a ele - a igreja antiga assim o diz – não era a biografia de Jesus,
mas as suas palavras?
Há questionamentos também
quanto às habilidades lingüísticas do autor. Como um homem simples da Palestina
possuía conhecimentos tão abrangentes da língua grega? Isso pressupõe a
tradução do evangelho em hebraico ou aramaico para o grego pelo próprio Mateus.
A resposta é óbvia. Quem trabalhava como
cobrador de impostos naquela época necessitava de bons conhecimentos da
língua grega, pois a língua franca daquela parte do império romano era o grego.
As ênfases teológicas desse
evangelho já mostraram que o autor possuía bom conhecimento do Antigo
Testamento e também boa capacidade de reflexão teológica. De onde um cobrador
de impostos adquiriu esse conhecimento? Ele provavelmente não estudou com um
mestre da lei entre os judeus, como Paulo. Mas teve três anos de estudo
teológicos com o próprio Senhor Jesus. Será que isso não é suficiente para
explicar a sua proficiência teológica?
A última objeção dos
críticos à autoria de Mateus a ser mencionada aqui é o fato de que, segundo a
teoria das duas fontes. Mateus dependeu de Marcos. Como pode um apóstolo
depender de um discípulo de apóstolo? Esse argumento se torna sem valor quando
observamos que (1) a teoria da prioridade de Marcos – e com isso a teoria das
duas fontes - está sendo questionada e também (2) que a tradição da igreja
antiga baseava somente as palavras de Jesus - e não os seus atos relatados em
Marcos - no apóstolo Mateus.
Podemos concluir, portanto,
que o primeiro evangelho recebeu o seu nome por causa do apóstolo Mateus,
porque este, segundo a tradição da igreja antiga, registrou as palavras de
Jesus que deram forma ao primeiro evangelho. A questão sobre quem tomou essas
palavras e as editou juntamente com o material que também encontramos em Marcos
precisa permanecer aberta.
6.8. Destinatários
Os primeiros leitores desse
evangelho eram cristãos-judeus familiarizados com os costumes judaicos e com o
Antigo Testamento. O seu objetivo era
mostrar e demonstrar aos seus patrícios que Jesus era o Messias de Israel. Eles
tinham consciência de que o reino de Deus também era para os gentios. Por isso,
os destinatários certamente estão na ala helenística do cristianismo entre os
judeus.
6.9. Local e data
Esse evangelho certamente
foi escrito em um local que pudesse ser a pátria da ala helenística do
cristianismo de origem judaica. Que lugar seria melhor para isso do que
Antioquia da Síria, ponto de partida das viagens missionárias do apóstolo
Paulo? Essa igreja, marcada pelo cristianismo judaico-helenístico, levou o
evangelho de Jesus Cristo aos gentios e com isso cumpriu a missão que Jesus
lhes delegou no primeiro evangelho. Há bons argumentos, portanto, a favor de
Antioquia da Síria como local em que Mateus foi escrito.
A data tradicional parte da
teoria da prioridade de Marcos. Ela entende que Mateus 22.7 é uma indicação de
que a destruição de Jerusalém no ano 70 já acontecera. Dai se conclui que o
evangelho foi certamente escrito após 70 d.C.
Com base nas condições
eclesiásticas já bem desenvolvidas pressupostas no evangelho (capítulo 18), e
com base na teologia, a data sugerida fica entre 80 e 100 d.C.
Precisamos rebater essa
opinião. Ela pressupõe que nem Mateus 22.7 e tampouco as orientações para a
igreja no capítulo 18 são palavras de Jesus. Essas afirmações são vistas como
concepções desenvolvidas pela igreja nos seus primórdios e colocadas na boca de
Jesus posteriormente. Isso contradiz a reivindicação de veracidade dos próprios
textos como também do testemunho apostólico (cf. 1Jo 1.1-4). Além disso, é questionável
se Mateus 22.7 é uma indicação da destruição de Jerusalém.
Por esses motivos, a data
precisa ser determinada com base em outras reflexões. Há razões para aceitarmos
a proposta de Godet de que os evangelhos sinópticos surgiram na mesma época, o
que significa que não houve influência mútua na sua elaboração. Sendo assim, o
registro feito par Mateus das palavras de Jesus deve ter acontecido já bem
cedo, talvez até durante o ministério de Jesus na Palestina. A relação entre essas palavras de Jesus e o
material que também encontramos em Marcos, teria sido estabelecida no contexto
muito próximo da destruição de Jerusalém, como mostra a indicação para esse
evento: “quem lê, entenda” (Mt 24.15). O ano de 66 d.C., sugerido por Godet
como data em que o evangelho foi escrito, merece consideração especial.
7 - EXERCÍCIO NÚMERO UM
Exegese de: Mateus
3.11b.
Tema: O(s) Batismo(s) de Jesus
7.1. Contexto Histórico
7.1.1. A Pessoa de João
Batista
João Batista, precursor de
Jesus, enviado para preparar-lhe o caminho. Era filho do sacerdote Zacarias e
Isabel, ambos descendentes de Arão. “Existiu no tempo de Herodes, rei da Judéia
um sacerdote, chamado Zacarias, da ordem de Abias, e cuja mulher era das filhas
de Arão o nome dela era Isabel”. (Lc 1.5). Isabel era prima de Maria mãe de
Jesus, que pertencia a tribo de Judá. Os pais de João moravam em uma cidade
situada na região serrana de Judá, talvez em Juta, que era a cidade sacerdotal de Hebrom. Quando
Zacarias oferecia incenso no templo de Jerusalém, o anjo Gabriel apareceu-lhe e
lhe deu a mensagem de Deus que seria pai e que o seu filho deveria se chamar
João seria cheio do Espírito Santo, desde o ventre da sua mãe e que viria
preparar o caminho do Senhor, “E aconteceu que, exercendo ele o sacerdócio
diante de Deus, na ordem da turma, segundo o costume sacerdotal, coube-lhe em
sorte entrar no templo do Senhor para lhe oferecer o incenso. E toda a multidão
do povo estava fora, orando, a hora do incenso. Então, um anjo do Senhor lhe
apareceu, posto em pé, a direita do altar do incenso. E Zacarias, turbou-se, e
caiu temor sobre ele. Mas o anjo lhe disse: Zacarias, não temas, porque a tua
oração foi ouvida, e Isabel, tua mulher, dará a luz a um filho, e lhe porás o
nome de João. E terás prazer e alegria, e muitos se alegrarão no seu
nascimento, porque será grande diante do Senhor, e não beberá vinho, e nem
bebida forte, e será cheio do Espírito Santo, já desde o ventre da sua mãe. E
converterás muitos dos filhos de Israel ao Senhor, seu Deus, e irá adiante dele
no espírito e virtude de Elias, para converter o coração dos
pais aos filhos
e os rebeldes, à prudência dos
justos, com o fim de preparar ao Senhor um povo bem disposto” (Lc 1.8-17).
João Batista nasceu no ano 5
A.C. Passou os primeiros anos no deserto, perto de sua casa ao ocidente no Mar
Morto. No ano 28 A.D. começou a pregar no deserto do Jordão, anunciando a vinda
do Reino de Deus e o batismo no Espírito Santo, “E dizendo: Arrependei-vos,
porque é chegado o Reino dos céus. E eu, em verdade, vos batizo com água, para
o arrependimento; mas aquele que vem após mim
é mais poderoso do que eu; não sou digno de levar as suas sandálias; ele
vos batizará com o Espírito Santo e com fogo”. (Mt 3.2,11), a fim de preparar o
povo, para receber a Cristo. As
multidões, depois de confessar os seus pecados, eram por ele batizadas no
Jordão, e, por isso, passou a se
chamar de João Batista, para
distingui-lo de outros de igual nome.
O batismo que ele administrava,
simbolizava a purificação do pecado.
Ele, porém, o considerava insuficiente, e falava de outro profeta que
viria após si que batizaria com o
Espírito Santo e com fogo, maior do que
ele, e ao qual não era digno de desatar
a correia das sandálias, “Então, ia ter com ele Jerusalém, e toda a Judéia, e
toda a província adjacente ao Jordão; e eram por ele batizados no rio Jordão,
confessando os seus pecados. E, vendo ele muitos dos fariseus e dos saduceus
que vinham ao seu batismo, dizia-lhes: Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir
da ira futura? Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento e não presumais
de vós mesmos, dizendo: Temos por pai Abraão; porque eu vos digo que mesmo
destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão. E também, agora, está posto o
machado à raiz das árvores; toda árvore pois, que não produz bom fruto é
cortada e lançada no fogo. Eu na verdade, vos batizo com água, para o
arrependimento; mas aquele que vem após mim é mais poderoso do que eu; não sou digno de levar suas sandálias; ele
vos batizará com o Espírito Santo e com fogo. Em sua mão tem a pá, e limpará a
sua eira, e recolherá no celeiro o seu trigo, e queimará a palha com fogo que
nunca se apagará” (Mt. 3.5-12).
Não obstante
confessar-se inferior a Jesus, nosso
Senhor foi a ele para receber de suas
mãos o batismo. João relutou, para dar provas de que conhecia que Jesus era o
Messias, e somente o batizou em obediência
à sua palavra, “Então, veio Jesus da Galiléia ter com João junto do
Jordão, para ser batizado por ele. Mas João opunha-se-lhe, dizendo: Eu careço
de ser batizado por ti, e vens tu a mim? Jesus, porém, respondendo, disse-lhe:
Deixa por agora, porque assim nos convém cumprir toda a justiça. Então, ele o permitiu. E,
sendo Jesus batizado, saiu logo
da água, e viu o Espírito de Deus descendo como pomba e vindo sobre ele. E eis
que uma voz dos céus dizia: Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo” (Mt
3.13-1). Seus pais o haviam instruído sobre a pessoa de Jesus. As instruções
recebidas eram agora confirmadas pela descida do Espírito Santo em forma de
pomba, repousando sobre Jesus por ocasião de ser batizado. Por este sinal,
ficava autorizado a declarar que Jesus era o Cristo, Jo 1.32,33. O profeta
Malaquias anunciou a vinda de Elias, antes do grande e terrível dia do Senhor,
para converter o coração dos pais a seus
filhos. João negou que fosse
Elias em pessoa, Jo 1.21; definiu a sua missão e os seus característicos,
citando simplesmente Is 40.3. Porém ele veio no Espírito e poder de Elias, Ml
4.5,6; cp. Lc 1.17 era o mensageiro enviado para aplainar o caminho do Senhor
diante de Cristo, Ml 3.1; com Mc 1.2. Jesus aplicou estas predições a João, Mt 11.10, 14;17.12,13. Havia
semelhanças entre os dois homens até no
modo de vestir, que pela
simplicidade e rudeza simbolizava o desprezo do mundo com seus refinamentos; as maneiras e os hábitos de
vida eram próprios a homens que viviam
nos desertos e não nos palácios dos reis, 2Rs 1.8; Mt 3.4; 11.8; Mc 1.6.
“Convém que Ele cresça e que diminua”, disse João falando de Jesus, João 3.
25-30. O Ministério de João foi curto, mas o efeito foi enorme. Afinal, pelos
fins do ano 27, ou princípios de 28 A.D. , foi posto na prisão por haver
denunciado a ilegitimidade das relações de Herodes, o Tetrarca, com a mulher do seu irmão Filipe, Lc 3.19,20.
Quando se achava detido, entrou em dúvidas sobre o valor dos métodos de Jesus
para o adiantamento de sua obra, e talvez, sentindo-se abandonado e
esquecido, enviou dois dos seus
discípulos a Jesus para saber se era ou não o Messias prometido. Em resposta,
Jesus apelou para o testemunho de suas obras, partidos que foram, Jesus
aproveitou a ocasião para fazer o panegírico de João, Mt 11.2-15. João era o
maior de todos os profetas, por ter o privilégio de preparar o povo para o
aparecimento de Cristo e apresentá-lo como o Cordeiro de Deus que tira o pecado
do mundo.
7.1.2. O Testemunho de
Flávio Josefo
O contemporâneo Flávio
Josefo diz que João era um nobre “que exortava os judeus a se esforçarem por
atingir a perfeição, a serem justos uns para com os outros e devotos para com
Deus a se batizarem. Como acorria gente de toda parte, começou Herodes (Antipas
- tetrarca da Galiléia Lc 3.1) a temer que a influência de tal homem pudesse
provocar uma rebelião. Devido
a essa suspeita
de Herodes, João foi acorrentado, levado para o Forte de Maquerunte e aí
decapitado”.
João pregava e batizava nas
terras baixas do Jordão [o nome Jordão vem do hebraico Yarden (Yordão) e
significa morte, o termo Yarden originalmente significa morte por afogamento],
ao sul de Jericó, no conhecido vau do rio, portanto dentro dos domínios de
Herodes Antipas, o tetrarca da Galiléia, que cordialmente a Bíblia chama de
Rei, embora não fosse, designado por Roma, “no ano quinze do império de Tibério
César, sendo Pôncio Pilatos governador da Judéia, e seu irmão Filipe, tetrarca
da Ituréia e da província de *Traconites, e Lisânias, tetrarca de Abilene” (Lc
3.1).
7.1.3. Entendendo os termos
Traconites região, que por
ocasião do aparecimento de João Batista como pregador, formava com a Ituréia
uma tetrarquia governada por Filipe, irmão de Herodes tetrarca da Galiléia.
Tetrarquia era um conjunto
de cidades governadas por um soberano, constituído pelo Imperador Romano.
“Naquele tempo, ouviu
Herodes, o tetrarca, a fama de Jesus. E disse aos seus criados: Este é João
Batista; ressuscitou dos mortos, e, por isso, estas maravilhas operam nele.
Porque Herodes tinha prendido João e tinha-o manietado e encerrado no cárcere
por causa de Herodias, mulher de seu irmão Filipe: porque João lhe dissera: Não
te é lícito possuí-la. E, querendo matá-lo temia o povo, porque o tinham como
profeta”. Assim justifica o Evangelho de Mateus a prisão de João. Também aqui
Flávio Josefo conhece detalhes mais amplos sobre os verdadeiros motivos das
afirmações da narrativa bíblica: Numa viagem que fez a Roma, Herodes Antipas
filho de Herodes o Grande, conheceu a mulher de seu irmão e se enamorou dela de
tal maneira que lhe propôs casamento. Herodíade aceitou e levou consigo para a
casa do novo marido uma filha chamada Salomé. Sendo esse casamento entre
cunhados contra a Lei Mosaica, segundo os Evangelhos, João Batista fez severas
admoestações, e esse crime, na opinião da enfurecida Herodíade, só podia ser
extirpado com a morte.
Graças a Joséfo, esse
acontecimento foi situado em local histórico concreto, o forte de Maquiros, uma
das numerosas fortificações que Herodes, o Grande, mandou construir na
Palestina.
Maquiros, é o lugar onde
João viria a perder a vida, fica no meio de um cenário agreste e sombrio na
costa oriental do mar Morto. Nenhuma estrada liga esse lugar solitário ao
mundo. Partindo do vale do Jordão, sobe-se por estreitas veredas, para o sul,
até a região montanhosa, desolada e nua, do antigo Moabe. Nos profundos vales
secos, vivem algumas famílias de beduínos com os seus rebanhos, que pastam a
erva escassa e agreste que ali cresce.
Não longe do Rio Arnon,
ergue-se um enorme penhasco acima dos cumes das outras montanhas. Em seu cume
açoitado pelo vento frio, ainda hoje se encontram algumas ruínas. El Mashka
(“Palácio Supremo”) é o nome que dão os beduínos a esse lugar abandonado. Ali
se erguia o Forte de Maquiros. A olho nu pode-se se distinguir ao longe, na
direção norte, a parte do vale do Jordão onde João batizava o povo e onde foi
preso.
7.1.4. O batismo
administrado por João Batista
Alguns supõem que João
Batista fazia parte do grupo dos essênios. Sabe-se que os essênios,
consideravam apóstata o resto do judaísmo. João apareceu em cena como o novo
Elias, para chamar um remanescente fiel. Ele os chamava ao arrependimento e renovação espiritual. Pregava que em breve
viria o reino de Deus e a necessidade dos homens prepararem-se para o mesmo.
Também surgiu em cena como o precursor do Messias, cônscio de que teria de haver um novo
movimento religioso, embora não fosse necessariamente uma nova religião, o
Messias daria continuidade a uma obra já começada, se a missão do Messias
tivesse êxito. O Arrependimento era atitude necessária, e era simbolizada pelo
batismo judaico de prosélitos, que requeria imersão em água, representando a
purificação da anterior vida pecaminosa.
O batismo de João é
universalmente descrito pelo verbo baptizõ (mergulhar, imergir, submergir,
batizar); isto também se diz respeito ao
batismo cristão pelo Novo Testamento inteiro.
O batismo de João,
estritamente falando, não era cristão. O batismo cristão simbolizava
principalmente a nossa união com Cristo, em sua morte e ressurreição (Rm
6.3,4). Os motivos pelos quais nada tinha a ver com as razões dos judeus era
porque ele estava iniciando um novo movimento religioso, que eventualmente
proveu o núcleo para a emergente Igreja
Cristã.
João impunha esse batismo
para reforçar sua mensagem de que a verdadeira espiritualidade não depende do
legalismo e nem da identificação com alguma nacionalidade.
João censurava os fariseus
por dependerem de sua nacionalidade como garantia da salvação (Mt 3.8,9; Lc
3.7,8).
De acordo com o comentário
do Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento pág. 262, “o batismo de João tinha dois enfoques:
administrava um batismo de arrependimento (por várias vezes João usa o termo
“arrependei-vos” que vem do
hebraico Naham, que significa mudança, com implicação de
transformação., por exemplo: os artesões tomam o barro na sua forma original e
dão-lhe outra forma, por exemplo de um lindo vaso; assim é o homem arrependido, o Espírito Santo
dá-lhe forma diferente da que era, será uma nova criatura), para a remissão de pecados (Mc 1.4),
antecipando o batismo com o Espírito Santo que o Messias exerceria. Is 4.2-5 e
Malaquias 3.1-6 sugerem que este batismo messiânico fosse símbolo de um
julgamento que refinaria o povo de Deus e o tornaria apto para o Reino,
mas consumiria os ímpios (a palavra
“ímpio” em hebraico é “rashah” que significa “pecar deliberadamente contra os
preceitos do Senhor”. “Rashah” foi traduzida para o latim como “ímpio” que é o contrário de “pio” = “santo”.
É por essa razão que alguns papas tinham o título de pio, Pio XI, Pio XII) não
deixando participar dele”.
O batismo de João tinha por
objetivo transferir os que se lhe submetiam a uma esfera totalmente nova à
esfera da definida preparação para o reino de Deus, que se aproximava. O
batismo de João nunca poderia ser considerado uma simples cerimônia; todo ele
fremia sempre de uma significação ética. Uma purificação do coração, do pecado,
era não somente sua condição preliminar, mas seu constante objetivo e
propósito, e pela penetrante e incisiva pregação com que ele o acompanhava.
Uma questão que requer
consideração é a relação entre o batismo de João e o do cristão, portanto
trataremos com detalhes quando estivermos comentando sobre a equivalência desses batismos em capítulo à
parte.
Em suma de tudo o que
dissemos acima: João administrava um “batismo
de arrependimento para
remissão de pecados” (Mc 1.4), antecipando o batismo que
o Messias exerceria (Mt 3.10-11). O batismo de João, portanto, tinha dois
enfoques: marcava a “volta” (o arrependimento pressupõe a conversão) de um
judeu para Deus, associando-o com o povo arrependido e garantindo-o quanto ao
recebimento de perdão e purificação e, antecipava o batismo messiânico,
garantindo-lhe lugar no reino.
7.1.5. O rito do batismo
O rito (a palavra rito vem
do hebraico Nahar, que significa um conjunto de cerimônias), do batismo não era
desconhecido entre os judeus, mas eles o observavam, com algumas exceções, unicamente
no caso de um gentio querer tornar-se
judeu. João Batista, portanto, ao exigir o batismo a um judeu, queria
dizer que já perdera seus direitos à
aliança e que lhe era necessário nascer de novo. O fato de os judeus se
submeterem ao batismo é prova evidente do profundo poder da mensagem de João,
para produzir tal avivamento.
7.1.6. Origem do Batismo de
João
O uso do batismo de João
data dos primórdios do cristianismo. Porém, o pano de fundo dessa cerimônia
remonta ao judaísmo. João Batista imergia os convertidos no rio Jordão (Mc
14,5), como sinal de arrependimento e identificação com o novo movimento
religioso. No entanto, existem diversas opiniões por parte dos eruditos.
1)Alguns
pensam que João adaptou as abluções dos membros da comunidade de Qumran para
seu batismo de arrependimento;
2)Outros
há que encontram o fundo histórico do batismo de João no batismo judaico de
prosélitos.
Alguns eruditos argumentam que
teria sido muito paradoxal João tratar os judeus como se eles fossem pagãos Mas
que a aproximação do Reino de Deus significa que os judeus não podem encontrar
segurança no fato de serem descendentes de Abraão: que os judeus, a não ser
pelo arrependimento, não poderiam ter mais certeza do que os gentios de entrar
no reino vindouro, e que deveriam se arrepender e manifestar o seu
arrependimento pela submissão ao batismo. É possível que o fundo histórico
explicativo da origem do batismo de João não seja nem o batismo praticado em
Qumran nem o de prosélitos, mas simplesmente as abluções cerimoniais
previstas no Antigo Testamento.
Os sacerdotes eram obrigados a se lavarem em sua preparação para ministrarem
(“Então, farás chegar Arão e seus filhos à porta da tenda da congregação e os
lavarás com água(a palavra água vem do hebraico, Myim, que no seu significado
mais original, aquela que limpa). Depois, tomarás das vestes e vestirás a Arão
da túnica e do manto e do éfode, e do éfode mesmo, e do peitoral; e o cingirás
o com o cinto de obra de artífice do éfode”
Êx 29.4,5;), no santuário e do povo se exigia que participasse de certas
abluções em várias ocasiões (Nm 19). Muitas declarações proféticas, que eram
bem conhecidas, exortam a uma purificação moral através da purificação com água
(Is 1.16 e ss; Jr 4.14), e outras antecipam uma purificação a ser feita por
Deus nos últimos dias (Ez 36.25; Zc 13). Além do mais, Isaías 44.3 interliga a
dádiva do Espírito com a purificação futura. Qualquer que seja o fundamento
histórico, João dá um novo significado ao rito da imersão por chamar o povo ao
arrependimento, tendo em vista a aproximação do reino de Deus.
7.2. O Contexto Gramatical
7.2.1. Bíblia: Stephanus Greek Text
1)en
de taij hmeraij ekeinaij paraginetai iwannhj o baptisthj khrusswn en th erhmw
thj ioudaiaj;
2)kai
legwn metanoeite hggiken gar h basileia twn ouranwn;
3)outoj
gar estin o rhqeij upo hsaiou tou profhtou legontoj fwnh bowntoj en th erhmw
etoimasate thn odon kuriou euqeiaj poieite taj tribouj autou;
4)autoj
de o iwannhj eicen to enduma autou apo tricwn kamhlou kai zwnhn dermatinhn peri
thn osfun autou h de trofh autou hn akridej kai meli agrion;
5)tote
exeporeueto proj auton ierosoluma kai pasa h ioudaia kai pasa h pericwroj tou
iordanou;
6)kai
ebaptizonto en tw iordanh up autou exomologoumenoi taj amartiaj autwn;
7)idwn
de pollouj twn farisaiwn kai saddoukaiwn ercomenouj epi to baptisma autou eipen
autoij gennhmata ecidnwn tij upedeixen umin fugein apo thj melloushj orghj;
8)poihsate
oun karpouj axiouj thj metanoiaj;
9)kai
mh doxhte legein en eautoij patera ecomen ton abraam legw gar umin oti dunatai
o qeoj ek twn liqwn toutwn egeirai tekna tw abraam;
10)
hdh de kai h axinh proj thn rizan twn dendrwn
keitai pan oun dendron mh poioun karpon kalon ekkoptetai kai eij pur balletai;
11)
egw men baptizw umaj en udati eij metanoian o
de opisw mou ercomenoj iscuroteroj mou estin ou ouk eimi ikanoj ta upodhmata
bastasai autoj umaj baptisei en pneumati agiw kai puri;
12)
ou to ptuon en th ceiri autou kai diakaqariei
thn alwna autou kai sunaxei ton siton autou eij thn apoqhkhn to de acuron
katakausei puri asbestw
7.2.2. Bíblia: Almeida
Revista e Corrigida
1)E,
naqueles dias, apareceu João Batista pregando no deserto da Judéia;
2)e
dizendo: Arrependei-vos, porque é chegado o Reino dos céus;
3)Porque
este é o anunciado pelo profeta Isaías, que disse: Voz do que clama no deserto:
Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas;
4)E
este João tinha da sua veste de pêlos de camelo e um cinto de couro em torno de
seus lombos e alimentava-se de gafanhotos e de mel silvestre;
5)Então,
ia ter com ele Jerusalém, e toda a Judéia, e toda a província adjacente ao Jordão;
6)E
eram por ele batizados no rio Jordão, confessando os seus pecados
7)E,
vendo ele muitos dos fariseus e dos saduceus que vinham ao seu batismo,
dizia-lhes: Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira futura?;
8)Produzi,
pois, frutos dignos de arrependimento;
9)e
não presumais de vós mesmos, dizendo: Temos por pai a Abraão; porque eu vos
digo que mesmo destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão;
10)
E também, agora, está posto o machado à raiz
das árvores; toda árvore, pois, que não produz bom fruto é cortada e lançada no
fogo;
11)
E eu, em verdade, vos batizo com água, para o
arrependimento; mas aquele que vem após mim é mais poderoso do que eu; não sou
digno de levar as suas sandálias; ele vos batizará com o Espírito Santo e com
fogo;
12)
Em sua mão tem a pá, e limpará a sua eira, e
recolherá no celeiro o seu trigo, e queimará a palha com fogo que nunca se
apagará.
7.2.3. outros textos
Bíblia Linguagem de Hoje.
“... os batizará com o Espírito Santo e fogo”.
I.G.N.T. “baptisei en
pneumati agiw” (batizará com Espírito Santo)
N.T.T. “baptisei en pneumati
agiw” (batizará com Espírito Santo)
7.2.4. Nosso exegese: (Mt
3.11b)
Ele
|
autoj
|
Ele
|
Vos
|
umaj
|
Terceira pessoa do plural
/ vos
|
Batizará
|
baptisei
|
Verbo no aoristo (s) na
terceira pessoa do singular (ele batizará)
|
com/em
|
en
|
em/com/por meio
de/no/entre/ diante de/sobre/perto de/ para com/
|
Espírito
|
pneumati
|
Espírito / substantivo
neutro
|
Santo
|
agiw
|
Santo/digno de adoração ou
veneração
|
Além disso
|
kai
|
E / ainda / também / ainda
que / certamente / contudo / além
disso
(com/em)
|
Fogo (banho de fogo)
|
Puri
|
= fogo / banho de vapor /
atear fogo em/ sendo queimado/ padecer de fogo / substantivo neutro termina
com iota. Pur = fogo; i = neutro
|
Nossa tradução: ...Ele
(Jesus) vos batizará (os arrependidos) com o Espírito Santo e (aos incrédulos)
com banho de fogo (Mt 3.11b).
7.3. Contexto Teológico
7.3.1. Entendimento do
contexto
7.3.1.1. V.1.
Naqueles dias...
No grego, esta expressão
introduz habitualmente, como aqui, um novo episódio sem ligação cronológica com
o que precede. - A narração da vida pública de Jesus é introduzida, bem como em
Mc e Lc, por um tríptico: pregação de João (3.1-12), batismo de Jesus (3.13-17), tentação de Jesus (4.1
-11).
7.3.1.2. Pregando/Proclamando
Em grego, Kérýssein, donde
deriva Kērygma (querigma). Do uso profano (proclamação do arauto em nome do
rei: cf. Gn 41.43). O verbo passou para o domínio religioso proclamação em nome
de Deus (cf. Jl 2.1). Usado aqui para a
pregação de João Batista, ainda o será a de Jesus (4.17). Dos seus discípulos
(10.7,27). Da Igreja primitiva (At 8.5). Em Mt (exceto em 11.1), o conteúdo da
proclamação é brevemente lembrado (3.2-3; 4.17; 10.7) ou condensado nas
expressões o Evangelho do Reino (4.23; .935; 24.14) ou o Evangelho (26.13);
note-se que os verbos proclamar e evangelizar (= anunciar uma boa nova) podiam
ser mais ou menos sinônimos no grego da Septuaginta (cf. 2Sm 1.20: Is 40.9).
7.3.1.3. Judéia
Expressão peculiar de Mt que
só aparece aqui. Região
maldefinida, situada entre
a cadeia de
montanhas que corre de Jerusalém
a Hebron, e o Mar Morto ou o Jordão inferior preciso (cf. 3.6. onde a atividade
de João é localizada de modo mais
preciso). Conforme mostra o v. 3. Mt se interessa menos pela exatidão
topográfica do que pelo significado bíblico do deserto (cf. 4.1: 11.7; 14.13;
24.26). Nesta região, então pouco povoada, mas não desértica no sentido moderno
da palavra, é que foram
descobertos, a partir de 1947, os vestígios das instalações e dos escritos
chamados “do mar Morto”. Cf. o apócrifo, 1 Macabeus 2.29: “Muitos homens que
buscavam a justiça e o direito desceram ao deserto para aí se estabelecerem”.
7.3.1.4. V.2 Arrependei-vos/Convertei-vos
Este verbo e o substantivo
correspondente aparecem, em Mt, em contextos que lhe conferem grande
importância (3.2; 4.17; 11.20-21; 12.41). De preferência ao sentido inculcado pela etimologia grega (mudança de mentalidade),
é preciso reconhecer nele o tema, capital no AT, sobretudo desde Jeremias, da
mudança de orientação, da volta incondicional ao Deus da aliança, Mt equipara
as pregações do Batista e de Jesus (3.2; 4.17), embora distinga seus
ministérios quanto à finalidade do batismo (3.11): conversão comprovada por
atos (3.8 nota) ou recusa dos judeus de se converterem (11.20,21; 12.41; cf. Lc
5.32; 15.7).
7.3.1.5. Reino dos céus
Em conformidade com o uso
judaico que evita pronunciar o nome de Deus, Mt diz Reinado dos céus
preferivelmente a Reino de Deus (só
Mt 12.28; 19.24;
21.31,43). As palavras dos
céus não designam um reino celeste, mas que Aquele que está nos
céus (5.48; 6.9; 7.21) reina sobre o mundo. Instruído pelo AT, Mt sabe que o
reino sempre pertenceu ao Senhor (Sl 22.29; 103.19; 145.11-13 etc.); mas ele
entende anunciar que este Reinado de sempre se aproximou dos homens na pessoa
de Jesus. A rigor, só se deriva traduzir por reino quando se quer designar o
âmbito (p. ex.. entrar no...: 5.20; 7.21; 18.3; 19.23). Nos outros casos,
convém traduzir por reinado. Cf. Lc 4.43.
7.3.1.6. É chegado ou tornou-se próximo
Mesma expressão em 4.17 e
10.7 (mesmo verbo, traduzido também por chegar, em 21.1,34; 26.45-46). Hoje em
dia, ela se interpreta: 1) O Reinado está próximo, ou muito próximo (Jesus
anuncia a vinda ou irrupção iminente e universal deste reino); 2) o Reinado
está presente (cf. 12.28, com um outro verbo: já chegou até vós), sendo que
está plenamente realizado, ou está secretamente inaugurado na pessoa e
atividade de Jesus, mas em breve será manifestado a todos.
7.3.1.7. V.3.
Ao citarem Is 40.3, os
sinóticos seguem o grego, que põe no deserto em conexão com voz e não com
preparai, como faz o texto hebraico. Substituem uma estrada para nossa Deus (=
YHWH, Senhor, ARC) por suas veredas, tornando com isso possível a aplicação do
texto ao próprio Jesus, proclamado pelos cristãos como “Senhor”.
7.3.1.8. V.4.
João usa trajes clássicos
dos profetas (Zc 13.4), em particular de Elias (2Rs 1.8), que regressa na
pessoa de João Batista (cf. Mt 17.9-13; Ml 3.23).
7.3.1.9. V.6. Batizar
Por ser oferecido a todos,
conferido por João e recebido uma só vez, este batismo difere profundamente das
abluções rituais dos essênios (que eram cotidianas) e do batismo dos prosélitos
(que os “purificava” para permiti-lhes entrar em contato com os judeus): Cf. Mc
1.4. Graças à conversão à qual está ligado, ele prepara para o batismo trazido
por Jesus (Mt 3.11).
7.3.1.10. Os Fariseus
O nome significa separados.
Alguns a consideraram palavra de sentido incerto. Os fariseus surgiram como
grupo distinto em cerca de 140 A.C. Geralmente eram pessoas comuns, do povo, em
contraste com os saduceus. No princípio o movimento tinha por intuito defender
e purificar a fé ortodoxa. Eram eles os porta-vozes da opinião das massas. Após
algum tempo, o desenvolvimento de pesado legalismo ritualista obscureceu os
seus propósitos originais. Os fariseus, tal como os saduceus, constituíam o
“concílio” ou sinédrio, que era o principal tribunal judaico. No tempo de Jesus
havia mais de seis mil fariseus, e exerciam grande autoridade em Israel.
7.3.1.11. Os Saduceus
Usualmente o sentido da
palavra é considerada como originado de Zadoque, sumo sacerdote do tempo do rei
Davi. Assim sendo, os saduceus seriam os sacerdotes, descendentes ou adeptos de
Zadoque. Compunham a seita de elementos de maior vulto, os mais ricos e
poderosos da população ao contrário dos fariseus, que usualmente vinham da
massa do povo. Recebiam o Pentateuco como base religiosa, mas nem sempre usavam
apenas o Pentateuco, como alguns crêem. Rejeitavam a tradição como autoridade.
A negação da existência além-túmulo (imortalidade e ressurreição) parece ter
sido desenvolvimento de suas doutrinas, mas não elemento inicial. Em geral
negavam a autoridade dos profetas, e também as doutrinas que reputavam
recentemente desenvolvidas, como a doutrinas dos anjos e espíritos. Esses
grupos aproximaram-se de João Batista levados especialmente pelo ciúme, pelo
ódio e pela curiosidade, desejando assistir ao espetáculo de um profeta
moderno. Quanto tempo mister para que manifestassem sua oposição a João, não
sabemos dizer, mas o testemunho dos evangelhos é que, como um grupo, nunca
aceitaram João como profeta. A expressão “que vinham ao seu batismo” não
implica, necessariamente, no sentido “contra o batismo”, conforme alguns
interpretam, nem “para serem batizados”. Provavelmente vieram como
espectadores.
Os Fariseus e Saduceus são
repelidos por João como “raça de víboras” (v.7. ARC)
7.3.1.12. Raça de víboras
Talvez aluda ao diabo como
serpente; mas também pode ser só símbolo de serpente, pessoa venenosa,
enganadora, maliciosa. Ver Sl 58.5 e Is 14.29. Os campos eram habitados por
serpentes de vários tipos conhecidos pelo povo. O sentido da alusão foi claro.
7.3.1.13. Fugir da Ira
A referência provável foi ao
costume que havia, queimar toda a erva daninha, como preparação para o plantio.
Naturalmente que quando o fogo começava, serpentes de muitos tipos eram postas
em fuga. A visão das serpentes fugindo do fogo ilustrava bem a conduta dos
fariseus e dos saduceus. A pregação de João Batista versava sobre a ira de
Deus, não só em relação ao juízo comum, mas especialmente em relação à vinda do
Messias. A chegada do Messias sempre foi ligada à grande ira de Deus, e essa
doutrina era pregada pelos próprios fariseus. Era crença comum que os tempos do
Messias não chegariam sem tribulações, grandes sofrimentos sem precedentes e
sinais da ira de Deus. Provavelmente João pensou que aqueles homens pudessem
sentir o arrependimento, ainda que em pequeno grau, mas não creu que pudesse
ser experiência profunda e de grande valor.
7.3.1.14. Frutos de Arrependimento (v.8)
João falava da intenção
aparente, e exigia provas. O versículo
8 ensina que João não reputava a confissão de pecados e o batismo como
suficientes para efetivação da salvação. A fé e o arrependimento autênticos são
acompanhados pela mudança de vida, e sem isso a confissão e o batismo não têm
valor. Lc 3.11-14 acrescenta detalhes à história e ilustra os “frutos” do
arrependimento como generosidade a pessoas mais necessitadas; honestidade no
manuseio do dinheiro; tratamento misericordioso para com outros; respeito às
autoridades e satisfação nas coisas materiais. Assim como o “fruto” é o produto
característico da árvore, assim também a palavra aplicada aos homens indica o
resultado característico da natureza. O - arrependimento pois, deve incluir a
mudança da natureza, apesar do fato que a palavra, em si mesma, não significa
tal coisa. Qualquer indivíduo pode realizar coisas boas; mas somente o homem
convertido produz frutos por sua própria natureza.
7.3.1.15. Temos por pai a Abraão
Nessa expressão estão
incluídos o pensamento secreto de todo judeu, o espírito nacional, o orgulho
religioso ensinado às crianças, que formam o elemento fundamental e indicam o
estado e a posição privilegiados da nação de Israel. O que pensavam é que isso
bastava para que recebessem qualquer bênção de Deus, inclusive a salvação. A
repetição das profecias sobre o destino de Israel confirmaria essa atitude
perante a maior parte do povo. A idéia é que seria impossível que Deus
rejeitasse seu povo. Essa esperança parece ter certa razão, mas tanto João como
Jesus rejeitaram a idéia de que isso dava garantia ao indivíduo. Paulo em Rm 9,
reconhece o valor dos privilégios do povo de Israel, mas também não concorda
que sem a aceitação por parte do indivíduo, ele obtenha daí qualquer benção;
pelo contrário, isso resulta apenas julgamento mais severo. Em contraste, os
escritos dos rabinos declaram abertamente a idéia da salvação só pelo fato de
alguém ser filho de Abraão. Alguns entre os pais e entre os intérpretes
modernos vêem nessas pala uma profecia da administração do evangelho aos
gentios. Irineu observou que “cada dia” Deus faz filhos a Abraão - das pedras -
do – “deserto dos gentios”. Dessas pedras é que tem sido edificada a igreja (Ef
2).
7.3.1.16. MACHADO à raiz das árvores
Sem dúvida essas palavras
foram usadas muitas vezes, por João, para indicar que, apesar do fato do
Messias vir da nação de Israel, cada árvore, cada indivíduo, deve apresentar
evidências (e a natureza transformada por trás dessas evidências) de uma
relação verdadeira com Deus. O vs. 9 mostra que o julgamento de Israel era
possível. O vs. 10 mostra que tal juízo não apenas era possível, mas que estava
próximo. A linguagem é pessoal, e não fala definidamente de juízo nacional, mas
de indivíduos. Qualquer pessoa do povo entenderia que seria mister eliminar as
árvores que produzissem maus frutos ou que não produzissem fruto de espécie
alguma. Provavelmente muitos deles já haviam cortado e queimado “árvores
inúteis”. Também se lembrariam de palavras semelhantes, do Antigo Testamento,
como em Is 5.1-7; Jr. 2.21; 11.16. João fala de um juízo completo, porquanto o
machado está “à raiz” das árvores, o que não implica em limpeza ou podadura,
mas em julgamento total.
7.3.1.17. Cujas sandálias não sou digno de levar
Entre os deveres dos
escravos havia esse de carregar e cuidar das sandálias de seus senhores. Lucas,
fala ainda mais claramente: “...do qual
não sou digno de desatar-lhe as correias das sandálias” (Lc 3.16). João dizia,
com essas palavras, que ele mesmo não era digno de cumprir os deveres de “escravo de Jesus”. Lemos que esses deveres
eram dados aos escravos de classe mais vil, e que tal costume era conhecido e
praticado entre os gregos, os romanos e os judeus. Portanto, João queria dizer
que não ocupava nem a posição do mais vil escravo, em comparação com a glória
da posição de Jesus.
ESSAS PALAVRAS se encontram
entre as de João por duas razões. 1. Como explicação da grandeza do Messias,
muito maior que a de João; 2. Para esclarecer e certificar que João não era o
Messias. Provavelmente quando sua fama aumentou, certas pessoas tê-lo-iam
identificado com o Messias profetizado. Não é impossível que tal idéia fosse
comum e tivesse grande circulação. Não podemos sentir o grande poder de João
porque o N.T. não destaca a sua pessoa. Mas o próprio Jesus disse que João era
o maior dos profetas (Mt 11.7-11); e João 1.19-23 mostra que os líderes dos
judeus pensavam que João era o Cristo, ou pelo menos que se apresentava como
tal. A história mostra que alguns dos discípulos de João continuaram como seita
separada do cristianismo, seita essa que – perdurou - por muitos anos, mesmo
após a ressurreição de Jesus. Atos 19.1-7 mostra exatamente isso. Sabendo
desses atos, podemos perceber com mais clareza porque o próprio João teve o
cuidado de exaltar a Cristo, e não a si mesmo.
7.3.1.18. V.11.a. Batizo com água
O ministério de João era o
de salvar, e assim notamos os que o batismo não tem mérito por si mesmo. Esse
batismo era símbolo do arrependimento, e não o próprio arrependimento. Era algo
que servia para atrair a atenção do povo, preparando-o e orientando-o para
receber o batismo real, o batismo de Jesus Cristo, o ministério espiritual do
Messias. Nesse ministério reside o poder real, a verdadeira vida, que o batismo
com água (ou seja, o ministério pessoal de João) jamais poderia produzir.
7.3.2. Os Textos paralelos
7.3.2.1. Texto 1
Atos 1.5: “Porque, na
verdade, João batizou com água, mas vós sereis batizados com o Espírito Santo,
não muito depois destes dias”.
7.3.2.2. Texto 2
Mc 1.8: “Eu (João), em
verdade, tenho-vos batizado com água; ele (Jesus), porém, vos batizará com o
Espírito Santo”.
7.3.2.3. Texto 3
Jo 1.33 “E eu não o
conhecia, mas o que me mandou a batizar com água, esse me disse: Sobre aquele
que vires descer o Espírito e sobre ele repousar, esse é o que batiza com o
Espírito Santo”.
7.3.2.4. Texto 4
Lc.316: “respondeu João a
todos, dizendo: Eu, na verdade, batizo-vos com água, mas eis que vem aquele que
é mais poderoso do que eu, a quem eu não sou digno de desatar a correia das
sandálias; este vos batizará com o Espírito Santo e com fogo”.
7.3.3. Análise dos textos
paralelos
7.3.3.1. Texto 1
Atos 1.5: “Porque, na
verdade, João batizou com água, mas vós sereis batizados com o Espírito Santo,
não muito depois destes dias”.
Neste texto, a promessa de
Jesus em batizar com o Espírito Santo é reforçada pela lembrança do testemunho
de João Batista. João meramente alegara que batizava com água, ao passo que
profetizou da vinda dAquele que batizaria como o Espírito Santo. Embora os
textos At 1.5, e Lc 3.16, tenham sido produzido pela mesma pena, e os
textos sejam equivalentes, contudo, em At 1.5 Lucas não faz menção do batismo
com fogo. Entendemos que, em Lucas 3.16 (este vos batizará com o Espírito Santo
e com fogo), as palavras saiam diretamente da boca de João Batista em resposta ao povo que
estava em grande
expectação se ele,
João, seria, porventura, o Cristo
e por outro lado, dentro de um contexto de expectativa de juízo Mt 3.12b (“
...e queimará a palha com fogo que nunca se apagará”). Ao passo que em Atos
1.5, Lucas está enfatizando o momento em que Jesus, antes da ascensão,
determina aos discípulos que não se ausentem de Jerusalém, antes que recebam a
promessa do Pai (At 1.4). É neste contexto, de igreja embrionária, que Lucas
pronuncia as mesmas palavras, com uma diferença, elas não partem da boca do
profeta João Batista, mas fluem dos lábios daquele de quem João, conforme seu
próprio testemunho, não podia, nem mesmo, desatar as alparcas.
7.3.3.2. Texto 2
Mc 1.8: “Eu (João), em
verdade, tenho-vos batizado com água; ele (Jesus), porém, vos batizará com o
Espírito Santo”.
Diversas peculiaridades
notáveis da narrativa de Marcos fazem dela uma exceção entre os Evangelhos. Em
Marcos os acontecimentos foram descritos sem alteração ou introdução extensa, e
sua apresentação foi marcada pela qualidade da exatidão encontrada nas
narrativas das testemunhas oculares. A palavra característica deste Evangelho
de ação é euthys, e foi traduzida para logo, imediatamente, sem demora, dentro
em pouco. Os tempos gregos são usados com eficiência para aumentar o efeito
dramático e descritivo da história de uma vida que já é dramática em virtude de
sua natureza intrínseca. O Evangelho começa sem nenhuma genealogia, sem anúncio
do nascimento de João ou de Jesus como nos outros sinóticos, Marcos tem pressa
e assim sendo, deixa os pormenores de lado, e de forma abreviada inicia seu
Evangelho com João Batista no cenário pregando as boas novas a respeito de
Jesus, batizando em águas e anunciando de forma condensada, a pessoa do Messias
que viria, a fim de batizar seus seguidores com o Espírito Santo. Em Marcos,
assim como em Atos, a expressão “...e com fogo” é suprimida (Lc 3.16b; Mt
3.11b).
7.3.3.3. Texto 3
Jo 1.33: “E eu não o
conhecia, mas o que me mandou a batizar com água, esse me disse: Sobre aquele
que vires descer o Espírito e sobre ele repousar, esse é o que batiza com o
Espírito Santo”.
O Texto supra citado está
inserido dentro de um contexto teológico, identificação do Filho de Deus dentre
uma multidão de Judeus que concorria ao seu batismo. Quando Jesus procurou o
batismo de João, o Batista não o reconheceu, mas ele tinha recebido um sinal de
identificação de Deus – o Espírito
descer do céu como pomba permanecendo sobre Ele. Além do sinal foi-lhe
dada uma palavra referente à obra que Ele realizaria com a capacitação
celestial para tanto concedida – ele batizaria com o Espírito. É nesse contexto
histórico-teológico que aparecem as palavras messiânicas, ele (Jesus) batizará
com o Espírito Santo. Desta feita, João não está falando aos outros, como nos
demais sinópticos, mas dando um testemunho pessoal. Fala da dificuldade em não
conhecer o Cristo, porém, é confortado com a promessa de que um “grande sinal”
lhe seria dado e além do sinal, como já dissemos acima, é ele quem batiza com o
Espírito Santo. Concluímos que mais uma vez, assim como em Marcos, em Atos e em
João não encontramos o complemento “ ...e com fogo” (conf. Mt 3.11; Lc 3.16).
Outrossim, é importante
observarmos que a expressão “que batiza”
com o Espírito Santo emprega o particípio presente (ho baptizon), que significa
aquele que continuará a batizar. Logo, as referências em Lucas e João não
somente dizem respeito ao primeiro derramamento do Espírito Santo no
Pentecostes, mas também à missão principal e ao ministério de Jesus, como aquele
que batiza no Espírito Santo durante toda a era atual: “porque a promessa vos
diz respeito a vós, a vossos filhos e a todos os que estão longe” (At 2.39).
7.3.3.4. Texto 4
Lc.316: “respondeu João a
todos, dizendo: Eu, na verdade, batizo-vos com água, mas eis que vem aquele que
é mais poderoso do que eu, a quem eu não sou digno de desatar a correia das
sandálias; este vos batizará com o Espírito Santo e com fogo”.
7.3.3.5. Texto 5
Mt 3.11. “E eu, (João) em
verdade, vos batizo com água, para o arrependimento; mas aquele que vem após
mim é mais poderoso do que eu; não sou digno de levar as suas sandálias; ele
(Jesus) vos batizará com o Espírito Santo e com fogo”. ( ARC).
O versículo de Lucas (t. 4)
e o de Mateus (t.5) são semelhantes. O texto
objeto de nossa exegese (Mt 3.11.b) é igual ao lucano. {[(“...baptisei
en pneumati agiw kai puri”), baptisei en pneumati aguiô kai puri], “...vos
batizará com o Espírito Santo e com fogo”}.
7.3.4. Opiniões diversas
Teólogos diversos têm várias
interpretações, para presente o texto
(“...Batizará com o Espírito Santo e com fogo), como segue:
a)que
o fogo, neste caso, significa o fogo que destruirá o mundo no último dia. É
verdade insofismável que Cristo julgará o mundo (vs. 12), e que o fogo é
símbolo daquele juízo;
b)ou,
como alguns relacionam, esse fogo é fogo do purgatório;
c) ou,
o ministério do Espírito seria com “fogo”
assim como o ministério de João foi com “água”;
d)o
Cristo tem o ministério de limpar, purgar, e isso será para aqueles que
aceitarem o ministério do Espírito Santo;
e)a
interpretação mais difundida entre os pentecostais, hoje, é de que o do vs. 11
indica o caráter do batismo do Espírito Santo. Talvez o modo como veio (no
Pentecostes) tenha sido como vento, dotado de poder, força, como se fora um
fogo impelido pelo vento; e quanto aos seus efeitos seria isso a purificação do
povo de Deus (na qualidade de fogo produziria a purificação) e a transmissão de
poder - (usando a força do fogo). Temos pois, uma dupla referência aos efeitos
do fogo: o primeiro, de limpar, de
purgar o bem; o outro, de destruir o mal. Mc 9.49 contém uma referência
semelhante, e pode ser usada como ilustração. O símbolo do batismo do Espírito
(fogo) e o caráter e os resultados desse batismo mostram a superioridade do
ministério de Jesus, em contraste com João;
f) De
forma menos externa que a água, o
fogo simboliza a ação de Deus que
purifica, depura (Ml 3.2; Zc 13.9; cf. 1Pd 1.7). Por isso, poder-se-ia
compreender: “O Espírito Santo que depura como o fogo”;
g)Em
nota de rodapé de Mateus 3.11 a Bíblia de Estudo pentecostal, dá o seguinte
parecer: “João Batista ensina que a obra do Messias vindouro inclui batizar
seus seguidores com o Espírito Santo e com fogo, batismo este que outorga
grande poder para vivermos por Ele e testemunhar dEle. Esta mesma Bíblia
arremete-nos para Lc 3.16, onde há mais uma nota sobre o batismo no Espírito
Santo, e em seguida, na nota do versículo 17 apresenta a seguinte posição:
“Aqueles que abandonam o pecado e recebem Cristo e a sua Palavra serão
batizados no Espírito Santo. Aqueles que se apegam aos seus pecados serão
castigados com fogo que nunca se apaga (ver Mt 10.28 nota). A seguir,
acompanhando a indução da mesma Bíblia somos levados a Mateus 10.28 que é um
ótimo comentário acerca do INFERNO.
Resta-nos, todavia, o espanto! Os
editores da Bíblia de Estudo Pentecostal têm dois pareceres sobre o assunto ou
são discordantes entre si!”;
h)outra
maneira de interpretar é concordar com maioria dos críticos, que negam a
inspiração e a integridade da Bíblia, diz que João profetizou só o batismo com
fogo, e a idéia do batismo com o Espírito Santo foi acrescentada
posteriormente;
i) outros
críticos dizem que, com “Espírito”, João quis dizer fôlego ou vento, e que a
proclamação dele dizia respeito a um só batismo que traria um sopro de juízo
ardente, ou que seria como um vento de juízo, limpando a eira;
j) os
que sustentam ser o batismo com o Espírito Santo e com fogo uma só obra com
dois elementos, agindo ao mesmo tempo, chamam atenção ao fato de que a
preposição “em” é realmente antes de “o Espírito”, mas não antes de “fogo”.
Indicam, também, que João aguardava a vinda daquele que batizaria os seus
ouvintes tanto no Espírito Santo como em fogo. Baseados nisto, dizem que o
Messias batizaria todos (crentes e não crentes), na mesma experiência do
Espírito Santo e do fogo. Para aqueles que se arrependerem, será uma bênção
para salvação e santificação. Para os ímpios, será um castigo;
k) por
último, entendemos que provavelmente temos aqui dois batismos, um do Espírito e
outro de fogo, e que este último fala de juízo, provavelmente do inferno. Assim
interpretaram Orígenes e outros pais da igreja, Neander, Meyer, de Wette,
Lange, e outros modernos.
7.3.5. Conclusão
Não obstante, todos os
pontos enumerados acima, com exceção do último, tenham uma muito de verdade,
entretanto, ficam devendo nalguma coisa. Quando levados a interpretação do
ponto de vista da luz do texto, se
tornam mais vulneráveis ainda. Por exemplo, como entender a mudança de sentido
no versículo 11, sendo que no 12 o sentido é o mesmo do 10? Não seria mais
lógico admitir que os três fazem parte de um mesmo parecer? Parece preferível
admitir que o fogo não muda de sentido do v. 11 para o v. 12, onde se trata
realmente de um castigo; o fogo representa, pois, de preferência, a cólera (cf.
3,7), correlativo necessário (cf. Rm 1.16-18) da participação na santidade de
Deus (a conjunção E acrescentaria então um matiz especial).
Em Mt 3.7 João chama os
fariseus e saduceus de “ninhada de serpentes”, “semente de cobra”, “antro de víboras”.
– “Semente de víboras é o que são vocês”, diz ele, “e não o que presumem,
semente de Abraão”!
Desta forma tão rústica,
João traça o perfil daqueles que seriam imergidos no batismo da ira divina, o
fogo eterno, caso não se arrependessem, embora, os tais presumissem ser filhos
de Abraão e por conseguinte, à vida eterna estar-lhes assegurada!
Para cada israelita essa
expressão é, mais uma vez, uma palavra arrasadora. Pois “velha serpente”
significa: “pai da mentira”, e a semente da velha serpente é, de acordo com a
antiquíssima palavra de Deus, o poder inimigo das profundezas, contra o qual a
espécie humana tem de lutar, por questão de vida ou morte. “Esse veneno de
serpente assassina tomou-se agora pessoal”, diz João, “e esse veneno de víboras
em pessoa são vocês fariseus e saduceus, aos quais estou falando. O que vocês
possuem da semente de Abraão foi transformado no seu contrário, por isso vocês
não têm nenhuma participação na semente de Abraão, porém a mais antiga maldição
de Deus paira também sobre as cabeças de vocês!” Portanto, caríssimos escribas
e fariseus, sereis queimados com o vosso veneno no fogo do inferno. Deus
preparou uma boa fornalha de fogo ardente para queimar todo o veneno hodierno
de farisaísmo, travestido de cristianismo.
Depois da palavra sobre os
“filhos de Abraão”, João traz o discurso sobre a “árvore que não traz bons
frutos”. Os ouvintes do Batista sabem que essa metáfora da árvore foi tirada do
Sl 1. Os fariseus têm a firme convicção de que se assemelham à árvore plantada
junto à corrente de águas, que, no devido tempo, dá o seu fruto. Por isso
pensam que tudo o que fazem é correto. O Batista lhes afirma exatamente o
contrário, ou seja, que eles se assemelham à árvore infrutífera, que é cortada
e lançada ao fogo. Quantas árvores que Deus não plantou, estão no meio dos
cristãos, cheio de folhas, mas sem nenhum fruto? Quanto mais folhas essas
árvores possuírem, maior será o fogaréu que produzirão, ante o fogo do inferno!
Deus está com o machado afiadíssimo nas suas mãos e fará uso, acreditem!
“A sua pá, ele a tem na mão
e limpará completamente a sua eira; recolherá o seu trigo no celeiro, mas
queimará a palha em fogo inextinguível” (ARA). Novamente João emprega a palavra
fogo, agora pela terceira vez (v. 10,11,12, sempre no final). Os fariseus
acreditavam que eles faziam parte do trigo que seria recolhido ao depósito.
Mais uma vez precisam ouvir justamente o contrário, que por serem palha serão
queimados com fogo inextinguível. No que João estaria pensando? Com certeza o
zelo de Deus o consumia. Levantes Jesus, homens cheios do zelo pela tua causa
para pregarem à semelhança do Batista!
Ainda ecoam as palavras de
João: “Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira futura?” Podemos
perfeitamente entender que neste anúncio do julgamento que se aproxima, a
cólera designa a reação do Deus santo diante do pecado (cf. Is 30.27-33). João,
portanto, anuncia a efusão do Espírito
sem todavia deixar de anunciar a chegada iminente do juiz escatológico. E, para
escapar desta grandiosa ira, João exorta que produzam “fruto de arrependimento”
Lit. um fruto “digno” da vossa conversão: o mesmo adjetivo em Mt
10.10,11,13,37,38: 22.8. A palavra fruto, no singular, designa aqui todo o
comportamento do homem, não uma particular manifestação de piedade, ou de
moral.
Outrossim, quando
verificamos os manuscritos descobertos entre os Papiros do Mar Morto vimos que
os mesmos ilustram fartamente que os essênios (com quem João evidentemente se
associou) eram uma seita que praticava o batismo, requerendo batismo de
arrependimento para os convertidos, além de praticarem outras abluções entre
eles. Os hinos de Qumran falam de
batismo de fogo,
tais como um rio em chamas
que engolfaria os “lançados fora”; e alguns bons intérpretes reputam esse
batismo de fogo como algo que se refere ao juízo.
Finalmente, no Antigo
Testamento e no Novo Testamento, a messe
é a imagem do juízo final, da consumação
dos tempos, por ser a ocasião em que o bom grão (ou a parte sadia do trigo) é
separado do ruim (Jl 4.12-13; Is 27.12-13; Ap 14.14-16; cf. Mt 13.30). Daí ser
possível que no juízo final haverá o grande batismo de fogo, a grande queima!
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