FACULDADE DE TEOLOGIA
TESTEMUNHAS HOJE
CURSO LIVRE
HAMARTIOLOGIA
CONCEITO GERAL DE HAMARTILOGIA
|
O ensino bíblico a respeito do pecado apresenta nitidamente dupla face: a
depravação abissal da humanidade e a sobrepujante glória de Deus. A sombra do pecado
está sobre cada aspecto da existência humana. Fora de nós, o pecado é um
inimigo que seduz; por dentro, compele-nos ao mal, como parte de nossa natureza
caída. Nesta vida, o pecado é intimamente conhecido, ainda que permaneça
estranho e misterioso. Promete a liberdade, mas escraviza, produzindo desejos
que não podem ser satisfeitos. Quanto mais nos debatemos para escapar ao seu
domínio, tanto mais inextricavelmente nos enlaça. Compreender o pecado nos
ajuda no conhecimento de Deus, porém o pecado distorce até mesmo nosso
conhecimento do próprio-eu. Mas se a luz da iluminação divina consegue penetrar
essas trevas, e não somente as trevas mas também a própria luz, então poderão
ser melhor analisadas.
Percebe-se a importância prática do estudo do pecado na sua gravidade. O
pecado é contra Deus. Afeta a totalidade da criação, inclusive a humanidade.
Até mesmo o menor dos pecados pode provocar o juízo eterno. E o remédio para o
pecado é nada menos que a morte de Cristo na cruz. Os resultados do pecado abrangem
todo o terror do sofrimento e da morte. Finalmente, as trevas do pecado
demonstram – num contraste nítido e terrível - a glória de Deus.
A importância prática do estudo da natureza do pecado também pode ser
percebida no seu relacionamento com outras doutrinas. O pecado distorce todos
os conhecimentos e lança dúvidas sobre eles. Ao defendermos a fé cristã,
defrontamos com um dilema ético: como pode existir o mal no mundo governado por
um Deus onipotente e inteiramente bom?
O estudo da natureza divina deve considerar o controle providencial de
Deus sobre um mundo amaldiçoado pelo pecado. O estudo do Universo deve
descrevê-lo como tendo sido criado bom, mas que agora geme, ansiando pela
redenção. O estudo da humanidade deve considerar a natureza humana, que se
tornou grotescamente desumana e desnaturada. A doutrina de Cristo depara-se com
a pergunta de como a natureza plenamente humana do Filho de Deus, nascido de
uma virgem, pode ser
totalmente impecável. O estudo da salvação deve declarar não somente
para qual destino a humanidade é salva, mas também de qual destino foi
resgatada. A doutrina do Espírito Santo deve considerar a convicção e a
santificação, levando em conta a carne pecaminosa. A doutrina eclesiástica deve
adaptar seu ministério a essa humanidade distorcida pelo pecado, dentro e fora
da Igreja. O estudo dos tempos do fim precisa descrever, e também defender, o
juízo divino contra os pecadores ao mesmo tempo em que aponta o fim do pecado.
Finalmente, cabe à teologia praticar, evangelizar, aconselhar, educar, governar
a Igreja, influir na sociedade e encorajar a santidade a despeito do pecado.
O estudo do pecado, entretanto, apresenta muitas dificuldades. É
revoltante, pois focaliza a fealdade grosseira do pecado generalizado e
flagrante e o logro sutil do secreto e pessoal. A sociedade pós-cristã de hoje
reduz o pecado a sentimentos ou atos, desconhecendo ou rejeitando totalmente o
mal. Mais insidiosamente, o estudo do pecado é frustrado pelo próprio mal, uma
vez que este é irracional por natureza.
O número de conceitos extrabíblicos é imenso. A despeito de não serem
bíblicos, estudá-los é importante porque nos permite:
1)pensar mais clara e biblicamente a respeito do Cristianismo;
2)defender melhor a fé e elaborar uma crítica mais correta dos outros
sistemas;
3)avaliar mais criticamente as novidades em psicoterapias, programas
políticos, abordagens educacionais, e assim por diante;
4)ministrar de modo mais eficaz aos crentes e não-crentes que mantêm essas
e outras idéias antibíblicas.
Muitas teorias, tomando como ponto de partida o existencialismo de Soren
Kierkegaard, argumentam que os seres humanos enfrentam um dilema quando suas
limitadas capacidades são inadequadas para satisfazer as possibilidades e
escolhas virtualmente limitadas de suas percepções e imaginações. Tal situação
produz tensão, ansiedade. O pecado é a tentativa fútil de se
resolver à tensão,
através de meios inapropriados, ao invés de aceitá-la de
modo pessimista ou, no modo cristão de pensar, voltar-se para Deus.
Num desdobramento mais radical, argumenta-se que a existência individual
é um estado pecaminoso porque as pessoas estão alienadas da base da realidade
(freqüentemente definida como “deus”) e umas das outras, mutuamente. Esse tema
já aparece em forma primitiva com o filósofo judaico Filo. Atualmente,
expressam-no teólogos liberais, como Paul Tillich, muitas das religiões
orientais e o pensamento da Nova Era.
Alguns acreditam que o pecado e o mal não sejam reais, porém meras
ilusões que podem ser vencidas pela percepção correta. A Ciência Cristã, o
hinduísmo, o budismo, o pensamento positivo de alguns tipos de cristianismo
popular, boa parte da psicologia e aspectos do movimento da Nova Era ressoam
essa teoria.
O pecado também tem sido interpretado em termos dos restos não envolvidos
de características animais primevas, como a agressão. Os defensores dessa idéia
dizem que a história do Éden é realmente um mito a respeito do desenvolvimento
da consciência moral, e não uma queda.
A teologia da libertação entende que o pecado é a opressão de um grupo da
sociedade por outro. Os teólogos da libertação freqüentemente combinam as
teorias econômicas de Karl Marx (que falam da luta entre as classes, em que o
proletariado acabará vencendo a burguesia) com temas bíblicos (tais como a
vitória de Israel contra a escravidão) e também identificam os oprimidos pelo
emprego de termos econômicos, raciais, de distinção entre os sexos e outros. O
pecado é eliminado pela remoção das condições sociais que provocam a opressão.
Os extremistas propõem a derrubada violenta dos opressores irredimíveis, ao
passo que os moderados enfatizam a mudança através da ação social e da
educação.
Entre os mais antigos conceitos de pecado está o dualismo, a crença de
que há uma luta entre forças preexistentes iguais (virtual ou realmente) - os
deuses do bem e do mal. As duas forças cósmicas, com sua luta, são a causa da
pecaminosidade na esfera temporal. Muitas vezes, a matéria má (especialmente a
carne) ou contém ou realmente é pecado, que deve ser conquistado. Essa idéia
aparece nas religiões do
Oriente Próximo antigo,
como o gnosticismo,
o maniqueísmo e o zoroastrismo. Em muitas versões do hinduísmo e do
budismo bem como na sua descendente, a Nova Era, o mal é reduzido a uma
necessidade amoral.
A teologia moderna vê “deus” como finito ou até mesmo em evolução moral.
E o mundo sofrerá males enquanto o lado escuro da natureza divina não for
controlado, idéia típica da mistura que a teologia do processo faz com a física
e o misticismo oriental.
Grande parte do pensamento popular, o cristianismo desinformado, o iSl
amismo e muitos sistemas moralistas sustentam que o pecado consiste somente em
ações deliberadas. Pessoas moralmente livres simplesmente fazem escolhas
livres. Não existe a natureza pecaminosa, apenas eventos reais do pecado. A
salvação é simplesmente comportar-se melhor e praticar o bem.
O ateísmo sustenta que o mal é meramente uma probabilidade de um cosmos
sem Deus. O pecado é rejeitado, a ética é apenas questão de preferência, e a
salvação, mera autopromoção humanística.
Embora muitas dessas teorias pareçam conter algum discernimento, nenhuma
delas aceita a Bíblia como revelação plenamente inspirada. As Escrituras
ensinam que o pecado é real e pessoal; que se originou na queda de Satanás, um
ser pessoal, maligno e ativo; e que, através da queda de Adão, propagou-se
entre a humanidade, que fora criada boa por um Deus totalmente bom.
1 - O COMEÇO DO PECADO
A Bíblia refere-se a um evento nos recônditos mais distantes do tempo,
além da experiência humana, quando o pecado se tornou uma realidade. Uma
criatura extraordinária, a serpente, já estava confirmada na iniqüidade antes
de “o pecado entrar no mundo” através de Adão (Rm 5.12; ver Gn 3). Essa antiga
serpente aparece em outros lugares como o grande dragão, Satanás e o diabo (Ap
12.9; 20.2). O diabo tem andado pecando e assassinando desde o princípio (Jo
8.44; 1Jo 3.8). O orgulho (1Tm 3.6) e uma queda de anjos (Jd 6; Ap 12.7-9)
também se associam a essa catástrofe cósmica.
As Escrituras também nos ensinam a respeito de outra queda: Adão e Eva
foram criados “bons” e colocados num jardim idílico, no Éden, desfrutando de
estreita comunhão com Deus (Gn 1.26-2.25). Por não serem divinos e porque eram
capazes de pecar, era necessária uma contínua dependência de Deus.
Semelhantemente, precisavam comer regularmente da árvore da vida. Isto nos é
sugerido pelo convite a comer de todas as árvores, inclusive da árvore da vida,
antes da Queda (Gn 2.16), e pela rigorosa proibição depois desta (Gn 3.22,23).
Houvessem obedecido, teriam sido frutíferos e alegres para sempre (Gn 1.28-30).
Alternativamente, após um período de prova, poderiam conseguir um estado mais
permanente de imortalidade, mediante a trasladação para o céu (Gn 5.21-24; 2Rs
2.1-12) ou pela ressurreição do corpo sepultado na terra (cf. os crentes, 1Co
15.35-54).
Deus permitiu que o Éden fosse invadido por Satanás, o qual tentou Eva
com astúcia (Gn 3.1-5). Desconsiderando a Palavra de Deus, Eva entregou-se ao
desejo por beleza e sabedoria. Tomou do fruto proibido, ofereceu-o ao seu
marido e juntos comeram-no (Gn 3.6). Eva fora enganada pela serpente, mas Adão
parece ter pecado em plena consciência (2Co 11.3; 1Tm 2.14; Deus concorda
tacitamente com esse fato em Gn 3.13-19). É possível que Adão tenha recebido do
próprio Deus a proibição de comer da árvore e que Eva a tenha ouvido somente
através do marido (Gn 2.17; cf. 2.22). Adão,
portanto, tinha mais
responsabilidade diante de Deus, e Eva era mais suscetível diante de Satanás
(cf. Jo 20.29). Talvez seja esta a explicação da ênfase que a Bíblia atribui ao
pecado de Adão (Rm 5.12-21; 1Co 15.21,22), embora, na realidade, Eva tenha
pecado primeiro. Finalmente, é crucial observar que o pecado deles começou na
sua livre escolha moral, e não na tentação (a que poderiam ter resistido: 1Co
10.13; Tg 4.7). Isto é, embora a tentação os incentivasse a pecar, a serpente
não colheu o fruto tampouco os forçou a comê-lo. O casal optou por assim fazer.
O primeiro pecado da humanidade abrangeu todos os demais pecados: a
afronta e desobediência a Deus, o orgulho, a incredulidade, desejos errados, o
desviar outras pessoas, assassinato em massa da posteridade e a submissão
voluntária ao diabo. As conseqüências imediatas foram numerosas, extensivas e
irônicas (observe cuidadosamente Gn 1.26-3.24). O relacionamento entre Deus e
os homens, de franca comunhão, amor, confiança e segurança, foi trocado por
isolamento, autodefesa, culpa e banimento. Adão e Eva, bem como o
relacionamento entre eles, entraram em degeneração. A intimidade e a inocência
cederam lugar à acusação (jogavam a culpa um sobre o outro). Seu desejo rebelde
pela independência resultou em dores de parto, labuta e morte. Seus olhos
realmente foram abertos, e eles conheceram o bem e o mal (mediante um atalho),
mas era pesado esse conhecimento sem o equilíbrio de outros atributos divinos,
como o amor, a sabedoria e o conhecimento. A criação, confiada aos cuidados de
Adão, foi amaldiçoada, gemendo pela libertação dos resultados da infidelidade
dele (Rm 8.20,22). Satanás, que oferecera a Eva as alturas da divindade e
prometera ao homem e à mulher que estes não morreriam, foi mais amaldiçoado que
todas as criaturas e condenado à destruição eterna pela descendência de Eva
(ver Mt 25.41). Finalmente, o primeiro casal humano trouxe a morte a todos os
seus filhos (Rm 5.12-21; 1Co 15.20-28).
O Midrash judaico entende a advertência divina de que a morte viria
quando (literalmente “no dia em que”) comessem da árvore (Gn 2.17) como uma
referência à morte física de Adão (Gn 3.19; 5.5), pois um dia, aos olhos de
Deus, é como mil anos (Sl 90.4) - e Adão
viveu apenas 930 anos (Gn 5.5). Outros a entendem como uma conseqüência natural
do afastamento da árvore da vida. Muitos rabinos judaicos defendiam a idéia de
que Adão nunca foi imortal e que
sua morte teria chegado
imediatamente se Deus, em sua
misericórdia, não a tivesse adiado. A maioria sustenta que a morte espiritual -
ou a separação de Deus - ocorreu naquele mesmo dia.
Não obstante a condenação, Deus graciosamente confeccionou túnicas de
peles para Adão e Eva, a fim de substituir os aventais de folhas que eles
haviam providenciado por sua própria iniciativa (Gn 3.7,21).
2
- O PECADO ORIGINAL: UMA ANÁLISE BÍBLICA
As Escrituras ensinam que o pecado de Adão afetou muito mais que a ele
próprio (Rm 5.12-21; 1Co 15.21,22). Esta questão é chamada pecado original e
postula três perguntas: até que ponto, por quais meios e em que base o pecado
de Adão é transmitido ao restante da humanidade? Qualquer teoria do pecado
original precisa responder as três perguntas e satisfazer os seguintes
critérios bíblicos:
2.1. Solidariedade
Toda a humanidade, em algum sentido, está unida ou vinculada, como numa
única entidade, a Adão (por causa dele, todas as pessoas estão fora da
bem-aventurança do Éden; Rm 5.12-21; 1Co 15.21,22).
2.2. Corrupção
Por estar a natureza humana tão deteriorada pela Queda, pessoa alguma tem
a capacidade de fazer o que é espiritualmente bom sem a ajuda graciosa de Deus.
A esta condição chamamos corrupção total - ou depravação - da natureza. Não
significa que as pessoas não possam fazer algum bem aparente, apenas que nada
do que elas façam será suficiente para torná-las merecedoras da salvação. E
este ensino não é exclusivamente calvinista. Até mesmo Armínio (mas não todos
os seus seguidores) descreveu o “livre-arbítrio do homem em favor do verdadeiro
Bem”, na condição de “preso, destruído e perdido... não tem nenhuma capacidade
a não ser aquela despertada pela graça divina”. A intenção de Armínio, assim como
depois a de WeSl ey, não era manter a liberdade humana a despeito da Queda, mas
asseverar que a graça divina era maior até mesmo que a destruição provocada
pela Queda.
Assim a corrupção é reconhecida na Bíblia. Salmos 51.5 menciona Davi
sendo concebido em pecado, ou seja: seu pecado remontava à concepção. Romanos
7-7-24 sugere que o pecado, embora morto, estava em Paulo desde o princípio.
Mais categoricamente, Efésios 2.3 declara que todos somos “por natureza filhos
da ira”. “Natureza” (phusis) fala da realidade fundamental ou origem de uma
coisa. Daí ser corrupto o “conteúdo” de todas as pessoas. Posto que a Bíblia
ensina estarem corrompidos os adultos e que cada um produz o seu igual Jó 14.4;
Mt 7.17,18; Lc 6.43), os seres humanos forçosamente produzem filhos corruptos.
A natureza corrupta produzindo filhos corruptos é a melhor explicação da
universalidade do pecado. Embora vários trechos dos Evangelhos se refiram à
humildade e à receptividade espiritual das crianças (Mt 10.42; 11.25,26;
18.1-7; 19.13-15; Mc 9.33-37,41,42; 10.13-16; Lc 9.46-48; 10.21; 18.15-17),
nenhum as afirma incorruptas. Realmente, algumas crianças são até mesmo
endemoninhadas (Mt 15.22; 17.18; Mc 7.25; 9.17).
2.3. A pecaminosidade de todos
Romanos 5.12 declara que “todos
pecaram”. Romanos 5.18 diz que mediante um só pecado todos foram condenados, o
que subentende que todos pecaram. Romanos 5.19 diz que mediante o pecado de um
só homem todos foram feitos pecadores. Textos que falam da pecaminosidade
universal não fazem exceções à infância. Crianças impecáveis seriam salvas sem
Cristo, mas isto é (antibíblico Jo 14.6; At 4.12). Ser merecedor de castigo
também indica o pecado.
2.4. Ser merecedor de castigo
Todas as pessoas, até mesmo as crianças pequenas, estão sujeitas ao
castigo. “Filhos da ira” (Ef 2.3) é um semitismo que indica o castigo divino
(cf. 2Pe 2.14). As imprecações bíblicas contra crianças (Sl 137.9) indicam esse fato. E Romanos 5.12 diz
que a morte física (cf. 5.6-8,10,14,17) chega a todos porque todos têm pecado, aparentemente
até as crianças. As crianças, antes da idade de responsabilidade ou
consentimento moral (a idade cronológica provavelmente varia com o indivíduo),
não são pessoalmente culpadas. As crianças não têm o conhecimento do bem e do
mal (Dt 1.39; cf. Gn 2.17). Romanos 7-9-11 declara que Paulo “vivia” até à
chegada da lei mosaica (cf. 7.1), a qual fez “reviver o pecado”, que o enganou
e matou espiritualmente.
2.5. A salvação das crianças
Embora as crianças sejam consideradas pecadoras e, portanto, passíveis do
inferno, isso não significa que serão realmente mandadas para lá. Várias
doutrinas indicam diferentes mecanismos para a salvação de algumas ou de todas:
a eleição condicional dentro do calvinismo; o batismo das crianças dentro do
sacramentalismo; a fé pré-consciente; a presciência de Deus de como a criança
teria vivido; a graciosidade específica de Deus para com as crianças; a aliança
implícita com uma família crente (talvez incluindo a “lei do coração”, Rm
2.14,15), que toma o lugar da aliança com Adão; a graça proveniente (do latim,
“que vem antes da” salvação) que oferece a expiação a todos que não têm idade
para a prestação de contas. De qualquer maneira, podemos estar certos de que o
“Juiz de toda a terra” faz tudo com justiça (Gn 18.25).
2.6. O paralelo entre Adão e Cristo
Romanos 5.12-21 e, em grau menor, 1 Coríntios 15.21,22 enfatizam um
nítido paralelo entre Adão e Cristo. Romanos 5.19 é especialmente relevante:
“Porque, como, pela desobediência de um só homem [Adão], muitos foram feitos
[kathistêmi] pecadores, assim, pela obediência de um [Cristo] muitos serão
feitos [kathistêmi] justos”. No Novo Testamento, kathistêmi tipicamente se
refere a uma pessoa nomeando outra para um cargo. Nenhum ato propriamente dito
é exigido para receber o cargo. Logo, pessoas que não haviam pecado
especificamente poderiam ser feitas pecadoras por Adão. Paralelamente à obra de
Cristo, Adão, por um ato legal, pode qualificar as pessoas como pecadoras,
mesmo não havendo pecado da parte delas. (Que a pessoa precisa “aceitar Cristo”
para ser salva não pode fazer parte desse paralelo, pois crianças incapazes de
conscientemente aceitar Cristo podem ser salvas; 2Sm 12.23).
2.7. Nem todos são iguais a Adão
Algumas pessoas claramente não pecaram da mesma maneira que Adão, mas
cometeram outros pecados e morreram (Rm 5.14).
2.8. O pecado de um só homem
Em Romanos 5.12, Paulo declara repetidas vezes que o pecado de um só
homem trouxe condenação e morte (ver também 1Co 15.21,22) a todas as pessoas.
2.9. A terra amaldiçoada
Alguma base precisa ser identificada para a maldição lançada por Deus a
Terra (Gn 3.17-18).
2.10. A impecabilidade de Cristo
É necessário reconhecer que Cristo possuía natureza humana completa, mas
totalmente protegida do pecado.
2.11. A justiça de Deus
A justiça de Deus, que permitiu ao pecado de Adão passar a outras
pessoas, precisa ser preservada.
3
- PECADO ORIGINAL: UMA ANÁLISE, TEOLÓGICA
Muitas tentativas foram feitas para construir um modelo ou teoria
teológica que encaixassem esses parâmetros complexos. Algumas das teorias mais
relevantes são consideradas aqui.
3.1. Conceitos judaicos
Três correntes principais são identificadas no judaísmo. A teoria
predominante é a das duas naturezas: a boa - yetser tov - e a má - yetser ra'
(cf. Gn 6.5; 8.21). Os rabinos debatiam sobre a idade em que esses impulsos se
manifestam, e se o impulso mau é realmente iniqüidade ou apenas instinto
natural. Seja como for, os maus são controlados pelo impulso mau, ao passo que
os bons o controlam. A segunda teoria diz respeito aos “vigilantes” (Gn 6.1-4),
anjos cujo dever era fiscalizar a humanidade mas que acabaram pecando com as
mulheres. Finalmente, há conceitos de pecado original que antecipam o
Cristianismo. Mais dramaticamente, o Midrash explica, por analogia, a morte do
justo Moisés. Uma criança pergunta ao rei por que ela está na prisão. O
soberano responde que é por causa do pecado da mãe dela. Semelhantemente,
Moisés morreu por causa do primeiro homem que trouxe a morte ao mundo.
Resumindo, o pecado original não é inovação paulina. Pelo contrário, Paulo,
inspirado pelo Espírito Santo, desenvolveu-o de conformidade com a revelação
progressiva.
3.2. O agnosticismo
Há os que sustentam não haver evidências bíblicas suficientes para uma
teoria detalhada do pecado original. Qualquer assertiva quanto a pecaminosidade
que vá além de uma conexão entre Adão e a raça humana é considerada especulação
filosófica. Embora esteja correto que a doutrina não deve basear-se em
especulações extrabíblicas, é válida a dedução das Escrituras.
3.3. O pelagianismo
O pelagianismo enfatiza fortemente a responsabilidade pessoal na oposição
à frouxidão moral. Pelágio (de 361 - de 420 d.C.) ensinava que a justiça de
Deus não permitiria a transferência do pecado de Adão a outras pessoas e que,
portanto, todas as pessoas nascem sem pecado e com total livre-arbítrio. O
pecado é disseminado exclusivamente pelo mau exemplo. Por isso há uma
possibilidade real de vidas sem pecado, e elas se acham dentro e fora da
Bíblia. Tudo isso, porém, é antibíblico, além de anular as conexões que a
Bíblia faz entre Adão e a humanidade. A morte de Cristo é reduzida tão-somente
a bom exemplo. A salvação fica sendo meramente boas obras. A vida nova em
Cristo não passa da antiga disciplina. Embora o pelagianismo tenha razão quando
enfatiza a responsabilidade pessoal, a santidade e o fato de que alguns pecados
são aprendidos, o movimento tem sido apropriadamente condenado como heresia.
3.4. O semipelagianismo
O semipelagianismo sustenta que, embora a humanidade tenha se
enfraquecido com a natureza de Adão, sobrou livre-arbítrio suficiente para a
iniciativa de ter fé em Deus, e então Ele corresponderá. A natureza
enfraquecida é transmitida naturalmente a partir de Adão. Porém, como se
sustenta à justiça de Deus após permitir que pessoas inocentes recebam uma
natureza maculada e como é salvaguardada a natureza impecável de Cristo, ainda
não foi bem explicado. Mais importante, em algumas formulações o
semipelagianismo ensina que, embora a natureza humana esteja tão enfraquecida
pela Queda, a ponto de ser inevitável que as pessoas pequem, a bondade inerente
que possuem é suficiente para iniciar a verdadeira fé.
3.5. A transmissão natural ou genética
Essa teoria sustenta que a transmissão da natureza corrupta baseia-se na
lei da herança. Toma por certo que as características espirituais são
transmitidas da mesma forma que as naturais. Tais teorias mencionam usualmente
a transmissão da natureza corrompida, mas não a da culpa. Mesmo assim, não
parece haver base adequada para Deus infligir numa alma virtuosa uma natureza
corrupta. Nem está claro como Cristo pode ter uma natureza plenamente humana e
ao mesmo tempo livre do pecado.
3.6. A imputação mediada
A imputação mediada entende que Deus imputou culpa aos descendentes de
Adão por meios indiretos, ou mediados. O pecado de Adão o fez culpado e, como
castigo, Deus corrompeu-lhe a natureza. E, como ninguém da sua posteridade
tomou parte na sua ação, nenhum de seus descendentes é culpado. Mesmo assim,
recebem a sua natureza como conseqüência natural de serem descendentes dele
(não como julgamento). Porém, antes de cometerem qualquer pecado real ou
pessoal (que a sua natureza necessita), Deus os julga culpados de possuir
aquela natureza corrompida. Infelizmente, essa tentativa de proteger Deus da
inflição injusta da “culpa exclusiva” de Adão à humanidade resulta em acusar
Deus de uma injustiça ainda maior - permitir que a corrupção, causadora do
pecado, enfraqueça pessoas destituídas de culpa e depois julgá-las culpadas dessa
mesma corrupção.
3.7. O realismo
O realismo e o federalismo (ver abaixo) são as teorias mais importantes.
O realismo sustenta que o “tecido da alma” de todas as pessoas estava real e
pessoalmente em Adão (“seminalmente presente”, segundo o conceito traduciano da
origem da alma), participando de fato do seu pecado. Cada pessoa é culpada
porque, na realidade, cada uma pecou. A natureza da pessoa passa então a ser
corrompida por Deus, como julgamento contra aquele pecado. Não há transmissão
de pecado, mas a participação total da raça naquele primeiro pecado. Agostinho
(354-430) aperfeiçoou a teoria, dizendo que a corrupção era transmitida
mediante o ato sexual. Assim, conseguia manter Cristo livre do pecado original,
porque Ele nasceu de uma virgem. W. G. T. Shedd (1820-1994) acrescenta um
argumento mais sofisticado: por baixo da vontade das escolhas de todos os dias
há a vontade profunda, a “vontade propriamente dita”, que determina a direção
que a pessoa segue em última análise. Foi essa vontade profunda que realmente
pecou em Adão.
O realismo tem pontos fortes. Não apresenta o problema da culpa de
terceiros, a solidariedade de Adão e da raça no pecado daquele é levada a sério
e parece bem explicada a expressão “todos pecaram”, de Romanos 5.12.
Apresenta, no entanto, alguns problemas. O realismo possui todas as
fraquezas do traducianismo extremo. O tipo de presença pessoal necessária em
Adão e Eva distorce até mesmo Hebreus 7.9,10 (cf. Gn 46.26), a passagem
clássica traducianista. A expressão “para assim dizer” (Hb 7.9), em grego,
sugere seja entendido figuradamente o que se segue. Idéias como a de uma
“vontade profunda” tendem a exigir e pressupor um conceito determinista,
calvinista, da salvação. O realismo por si só não pode explicar porque ou em que
base Deus amaldiçoa a terra.
Portanto, torna-se necessário algo como a aliança. Para a humanidade de
Jesus ser isenta de pecado, Ele deve ter cometido o primeiro pecado em Adão,
sendo posteriormente purificado; ou Ele não estava mesmo presente em Adão; ou
Ele estava presente mas não pecou, e seus antepassados humanos diretos
permaneceram sem pecado em suas gerações. Cada uma dessas opiniões apresenta
dificuldades (uma alternativa é sugerida adiante). A idéia de que todos pecaram
pessoalmente parece contradizer o conceito de que o pecado de um só homem faz
de todos pecadores (Rm 5.12,15-19). Posto que todos pecaram em Adão, com Adão e
como Adão, sugere terem pecado segundo o padrão do primeiro homem, o que
contraria 5.14.
3.8. O federalismo
A teoria federal da transmissão sustenta que a corrupção e a culpa se
estendem a toda a humanidade porque Adão era a cabeça da raça num sentido
representativo, governamental ou federal quando pecou. Toda pessoa está sujeita
à aliança entre Adão e Deus (a aliança adâmica - ou aliança das obras - por
contraste à aliança da graça). Faz-se uma analogia com uma nação que declara
guerra. Seus cidadãos sofrem, quer concordem com ela ou a condenem e mesmo sem
terem participado da decisão. Os descendentes de Adão não estão pessoalmente
culpados até realmente pecarem, mas vivem um estado de culpa e são passíveis do
inferno por ter-lhes sido imputado - de conformidade com a aliança - o pecado
de Adão. Por causa desse estado, Deus os castiga com a corrupção. Muitos
federalistas, portanto, distinguem entre o pecado herdado (a corrupção) e o
imputado (a culpa) da parte de Adão. A maioria dos federalistas são
criacionistas no tocante à origem da alma, mas o federalismo não é incompatível
com o traducianismo. A aliança com Adão incluía sua posição de despenseiro da
criação - a base perfeita para Deus amaldiçoar a terra. Cristo, como cabeça de
uma nova aliança e de uma nova raça, está isento do julgamento da corrupção
sendo, portanto, impecável.
O federalismo tem pontos fortes. A aliança, como base bíblica para a
transmissão do pecado, concorda razoavelmente com Romanos 5.12-21 e fornece
mecanismos para a maldição da terra e para proteger Cristo do pecado. No
entanto, apresenta algumas fraquezas. Romanos 7 deve descrever somente o
conhecimento que Paulo tomou de sua própria natureza pecaminosa, e não a
experiência física do pecado que o matava. Mais importante que isso, a
transmissão da “culpa exclusiva” de Adão é freqüentemente considerada injusta
3.9. Uma teoria integrada
Várias das teorias acima podem ser combinadas para formar uma abordagem
integrada, resultando numa teoria que faz distinção entre a pessoa individual e
a natureza pecaminosa da carne. Quando Adão pecou separou-se de Deus, e isto
produziu nele - como indivíduo e na sua natureza - a corrupção (inclusive a
morte). Pelo fato de ele conter toda a natureza genérica, ela toda ficou
corrompida. A natureza genérica é transmitida naturalmente ao aspecto
individual da pessoa, o “próprio-eu” (como em Rm 7).A aliança adâmica é a justa
base dessa transmissão e também da maldição contra a terra. O “eu” não é
corrompido nem culpado por causa da natureza genérica, mas a natureza genérica
o impede de agradar a Deus (Jo 14.21; 1Jo 5.3). Ao chegar à idade da
responsabilidade pessoal, o “eu”, lutando contra a natureza, ou corresponde à
graça proveniente de Deus na salvação ou realmente peca ao desconsiderá-la, de
modo que o mesmo “eu” fica separado de Deus, tornando-se culpado e corrupto.
Deus continua estendendo a mão para o “eu” mediante a graça proveniente.
Logo, Romanos 5.12 pode dizer que “todos pecaram” e que todos estão
corrompidos e necessitando de salvação, mas nenhuma culpa é infligida àqueles
que ainda não pecaram na realidade. Isto é consistente com a luta descrita em
Romanos 7. Nem todas as pessoas pecam da mesma forma que Adão (Rm 5.14), mas o
pecado de um só homem realmente traz a morte e transforma todos em pecadores. E
o faz mediante a aliança adâmica, um mecanismo paralelo à obra de Cristo, que é
tornar justos os pecadores (Rm 5.12-21). Evita-se o semipelagianismo extremado,
porque o “eu” é capaz de reconhecer a sua necessidade mas não pode agir com fé
por causa da natureza humana genérica (Tg 2.26). Sendo o ficar separado de Deus
a causa da corrupção, a união
entre Cristo e sua parte da natureza genérica restaurada à santidade. Por ter o
Espírito Santo chegado a Maria na concepção do “eu” humano de Cristo, este era
pré-responsável e, portanto, impecável. Essa disposição é justa, pois Cristo é
o cabeça de uma nova aliança. Semelhantemente, a união entre o Espírito Santo e
o crente na salvação é regeneradora.
Embora as Escrituras não afirmem explicitamente que a aliança é a base
para a transmissão, há muitas evidências em favor dessa idéia. As alianças
fazem parte fundamental do plano de Deus (Gn 6.18; 9-9-17; 15.18; 17.2-21; Êx
34.27, 28; Jr 31.31; Hb 8.6,13; 12.24). Houve uma aliança entre Deus e Adão.
Oséias 6.7 - “Mas eles traspassaram o concerto, como Adão” - refere-se muito
provavelmente a essa aliança, uma vez que a tradução alternativa (“homens”,
NIV) é tautológica. Hebreus 8.7, que diz ter sido a aliança com Israel à
primeira, não exclui a aliança com Adão, pois o contexto indica que se trata da
primeira aliança entre Deus e Israel (e não com a humanidade inteira). E há uma
aliança (a Bíblia ARC emprega “pacto”, “concerto” e “aliança” como sinônimos)
explícita anterior, com Noé (Gn 6.18; 9.9-17). As alianças bíblicas são
obrigatórias às gerações futuras, quer para o bem (Noé, Gn 6.18; 9.9-17 quer
para o mal Josué e os gibeonitas, Js 9.15). As alianças são freqüentemente a
única base observável para o julgamento (os israelitas que morreram em Ai por
causa do pecado de Acã em Jericó, Js 7; o sofrimento dos súditos de Davi porque
este os numerou, 2Sm 24). A circuncisão segundo a aliança podia até mesmo
acolher crianças estrangeiras na nação de Israel.
Alguns estudiosos objetam que qualquer teoria que transmita a outras
alguma conseqüência do pecado de Adão é inerentemente injusta, pois lhe imputa
o pecado sem fundamento nem base. (Somente o pelagianismo evita totalmente essa
objeção, ao tornar todos os seres humanos pessoalmente responsáveis. O “pecado
pré-consciente” do realismo detém a maioria das dificuldades.) As alianças, no
entanto, constituem base justa para esse tipo de transmissão, pelas seguintes
razões: os descendentes de Adão teriam sido tão abençoados por causa do seu bom
comportamento como foram amaldiçoados por suas obras más; a aliança certamente
é mais justa que a mera transmissão genética; a culpa e as conseqüências
transmitidas pelo concerto são semelhantes aos pecados da ignorância (Gn 20).
Há também o argumento de que Deuteronômio 24.16 e Ezequiel 18.20 proíbem
o julgamento de uma geração para outra. Mas outros textos mencionam julgamentos
assim (os primogênitos do Egito; Moabe; Êx 20.5; 34.6,7; Jr 32.18). É possível,
no entanto, que os dois textos acima se refiram à chefia biológica como base
insuficiente para transmissão de julgamento, ao passo que os textos mencionados
entre parênteses referem-se a uma base pactuar, adequada à transmissão do
julgamento. Alternativamente, segundo a teoria integrada, se a natureza
corrompida não é um juízo positivo de Deus, a execução de um castigo pelo
pecado do pai realmente não ocorre. Finalmente, quem, mesmo sem corrupção e dentro
do jardim perfeito, se comportaria melhor que Adão, quanto à obediência aos
mandamentos de Deus? E, sem dúvida, a suposta “injustiça” do pecado imputado é
mais que contrabalançada pelo dom gratuito da salvação em Jesus Cristo,
oferecido a todos livremente .
Embora seja especulativa e não sem algumas dificuldades, uma teoria
integrada que utilize a aliança parece explicar boa parte dos dados bíblicos e
talvez sugira uma terceira alternativa às teorias predominantes do realismo e
do federalismo.
4 - EXISTÊNCIA E DEFINIÇÕES DO PECADO
Como pode existir o mal, se Deus é onipotente e totalmente bom? Esta
pergunta, juntamente com a questão correlata a respeito da origem do mal, é o
fantasma que assombra todas as tentativas de se compreender o pecado. Antes de
continuarmos este estudo, façamos uma distinção entre algumas formas do mal. O
mal moral - ou pecado - é a iniqüidade cometida por criaturas dotadas de
vontade. (O mal natural é a desordem e decadência do Universo) (calamidades
naturais, algumas doenças etc.). Está ligado à maldição que Deus pronunciou
contra a terra (Gn 3.17,18). O mal metafísico é aquele involuntário, resultante
da finitude das criaturas (insuficiência mental e física etc.).
A Bíblia afirma a perfeição moral de Deus (Sl 100.5; Mc 10.18) e o seu poder Mt 19.26). Foi
Ele só quem criou (Gn 1.1, 2; Jo 1.1-3), e tudo quanto Ele criou era bom (Gn 1;
Ec 7.29). Ele não criou o mal, a que odeia (Sl
7.11; Rm 1.18). Ele não tenta, nem é tentado (Tg 1.13). Apesar disso,
dois textos bíblicos que parecem contradizer esse fato devem ser considerados.
Isaías 45.7 diz que Deus cria o mal (ARC). Mas ra' (“mal”) também possui um
sentido que nada tem que ver com a
moralidade (Gn 47.9) ou apresenta-se como antônimo de “paz” (Am 6.3). Pode
significar também “desventura”, “calamidade”, “desgraça”, palavras que neste
contexto são boas traduções. Deus, portanto, traz o julgamento moral, mas não o
mal imoral.
O fato de Deus endurecer ou cegar as pessoas também levanta dúvidas. Pode
tratar-se de uma “entrega” passiva em que Deus simplesmente deixa as pessoas
viverem conforme desejam (Sl 81.12; Rm
1. 18-28; 1Tm 4-1,2) ou uma imposição ativa de endurecimento a pessoas que já
assumiram um compromisso irrevogável com o mal (Êx 1.8-15,21; Dt 2.30; Js
11.20; Is 6.9,10; 2Co 3.14,15; Ef 4.17-19; 2Ts 2.9,12).
Observe o exemplo de Faraó (Êx 1.8-15,21). Ele não foi criado com o
propósito de ser endurecido (o que pode sugerir uma leitura superficial de
Romanos 9.17: “... te levantei”). O verbo hebraico 'amad e seu equivalente na
Septuaginta (LXX), diatereõ (Êx 9.16), referem-se a posição ou categoria (e não
à criação), fato este que está dentro do alcance semântico de exegeirõ (Rm
9.17). Faraó já mereceu o castigo divino quando rejeitou a petição de Moisés
pela primeira vez (Êx 5.2). Deus, porém, o preservou, para ser glorificado
através do rei egípcio. Inicialmente, Deus apenas predisse o endurecimento do
coração de Faraó (Êx 4.21, heb. 'achazzeq, “tornarei forte”; Êx 7-3, heb.
'aqsheh, “tornarei pesado”, ou seja, difícil de ser movido). Antes de Deus
agir, no entanto, Faraó endureceu seu próprio coração (implicitamente, Êx
1.8-22; 5.2; e explicitamente, Êx 7.13,14). O coração de Faraó “endureceu-se”
(literalmente “tornou-se forte”), aparentemente um modo de reagir ao milagre
que removeu a praga, e Deus disse que o coração de Faraó não cedia (heb.
Kavedh, “estar pesado”, Êx 7.22,23; 8.15,32; 9.7). Faraó, então, continuou o
processo (Êx 9.34,35) com a ajuda e Deus (Êx 9.12; 10.1,20,27; 11.10;
14.4,8,17).
Esse sistema está explícito em outros casos ou é compatível com eles e
com a santa justiça de Deus (Rm 1.18). Por isso Deus pode acelerar a
pecaminosidade deliberada, visando seus próprios propósitos (Sl 105.25), mas os pecadores continuam arcando
com a responsabilidade (Rm 1.20).
Deus não criou o mal, porém realmente criou tudo que existe. Assim, o mal
não pode ter uma existência independente. O mal é a ausência ou a perversão do
bem. Este fato pode ser ilustrado pelo sal de cozinha, que é um composto (ou
mistura compacta) de duas matérias químicas: o sódio e o cloreto. Estes dois
elementos, em separado, são altamente mortíferos. O sódio irrompe em chamas ao
entrar em contato com a água, e o cloro é um veneno fatal. Assim como a
alteração na composição do sal, a criação perfeita de Deus é mortífera quando o
pecado lhe estraga o equilíbrio. Das quedas de Satanás e de Adão surge todo o
mal. Por isso, o mal natural provém do mal moral. Todas as doenças provêm, em
última análise, do mal, porém não necessariamente do pecado daquele que está
enfermo ao (Jo 9.1-3), embora este possa ser o caso (Sl 107.17; Is 3.17; At 12.23). A grande ironia
de Gênesis 1.3 é que tanto Deus quanto Satanás empregam a linguagem: Deus, num
gesto criador, para trazer à existência a
realidade e a
ordem ex nihilo;
e Satanás, de
modo imitativo, para trazer engano e desordem. O mal depende do bem, e a
obra de Satanás não passa de imitação.
Por ter Deus a capacidade de impedir o mal (isolando a árvore, por
exemplo) e não o ter feito, e, por saber o que aconteceria, parece que Ele
permitiu que o mal surgisse (isto é muito diferente de causá-lo). Segue-se que
o Deus Santo viu que do permitir o mal surgiria um maior bem. Eis algumas
sugestões quanto à natureza desse bem:
a)que a humanidade amadureceria através do sofrimento (cf. Hb 5.7-9);
b)que as pessoas poderiam amar a Deus livre e sinceramente, uma vez que
tamanho amor só pode existir onde houver a possibilidade do ódio e do pecado;
c) que as maneiras como Deus se expressa seriam impossíveis de outra forma (tais
como seu ódio ao mal, Rm 9.22, e seu amor gracioso aos pecadores, Ef 2.7).
Todos esses pontos de vista têm sua validade.
Descrever o pecado é uma tarefa difícil. Talvez a dificuldade provenha da
sua natureza parasítica, posto que não tem existência em separado, mas é
condicionado por aquilo a que se agarra. Mesmo assim, delineia-se nas
Escrituras uma imagem - algo camaleônica - da existência derivada do pecado.
Há muitas sugestões a respeito da essência do pecado: a incredulidade, o
orgulho, o egoísmo, a rebelião, a corrupção moral, a luta entre a carne e o
espírito, a idolatria e combinações entre todos esses itens. Embora todas essas
idéias sejam informativas, nenhuma delas caracteriza a totalidade dos pecados
(os pecados da ignorância, por exemplo) nem explica adequadamente o pecado como
natureza (a pecaminosidade). De modo mais significativo, todas definem o
pecado. em termos de pecadores, que são muitos, variados e imperfeitos. Parece
preferível definir o pecado como algo cometido contra Deus. Somente Ele é uno,
consistente e absoluto, e a qualidade perversa e iníqua do pecado é revelada
contra o pano de fundo de sua santidade.
Talvez a melhor definição do pecado seja a encontrada em 1 João 3.4: “O
pecado é iniqüidade”. Seja o que mais o pecado for, ele é, no seu
âmago, uma violação da lei de Deus. E, já que “toda a iniqüidade [gr.
adikia, literalmente “injustiça”] é pecado” (1Jo 5.17), toda injustiça quebra a
lei de Deus. Por isso, Davi confessa: “Contra ti, contra ti somente pequei” (Sl
51.4; cf. Lc 15. 18,2 1). Além disso, a transgressão provoca a separação entre
a pessoa e o Deus da vida e da santidade, que necessariamente resulta na
corrupção (inclusive a morte) da natureza humana finita e dependente. Logo,
essa definição do pecado é bíblica, exata, e abrange todos os tipos do pecado;
explica os efeitos do pecado sobre a natureza; e tem Deus (e não a humanidade)
como ponto de referência. Isto é, reconhecemos a verdadeira natureza do pecado
ao observarmos seu contraste com Deus, e não por meio de comparar seus efeitos
entre os seres humanos.
Embora os crentes não estejam debaixo da lei mosaica, ainda existem
padrões objetivos, passíveis de serem violados (Jo 4.21; 1Jo 5.3; os muitos
regulamentos nas epístolas). Por causa da incapacidade humana de cumprir a Lei,
somente um relacionamento com Cristo pode suprir a expiação para apagar o
pecado e o poder para viver uma vida segundo a vontade de Deus. O crente que
ainda peca precisa confessar e, se possível, fazer restituição, não visando a
absolvição, mas para reafirmar seu relacionamento com Cristo. É essa fé que
sempre se contrasta com a “justiça segundo as obras” (Hc 2.4; Rm 1.17; Gl 3.11;
Hb 10.38), de modo que tudo quanto não é de fé é pecado (Rm 14.23; cf. Tt 1.15;
Hb 11.6). Por isso, o pecado - nos crentes ou nos incrédulos, antes ou depois
da crucificação - é sempre a violação da Lei, e a única solução é a fé em
Cristo.
Não se define o pecado por sentimentos, nem por filosofias, mas somente
por Deus, na sua lei, no seu desejo e na sua vontade. É nas Escrituras que
descobrimos esse fato de modo mais concreto. Embora, na melhor das hipóteses, o
coração do crente (no seu sentido mais lato) perceba o que é o pecado (Rm 2.13
- 15; 1Jo 3.21), sua sensibilidade espiritual para com o bem e o mal precisa
ser aprimorada (Hb 5.14). O coração tem sido desesperançosamente corrupto (Jr
17.9) e pode ser cauterizado (1Tm 4.2). Pode, também, sentir falsa culpa (1Jo
3.20). Assim, os sentimentos subjetivos jamais devem ser colocados acima da
Palavra objetiva e escrita de Deus. Nem por isso, entretanto, devemos deixar de
ser espiritualmente sensíveis.
A idéia do pecado como uma violação da lei está embutida na própria
linguagem das Escrituras. O grupo de palavras hebraicas representado por
chatta’th (o assunto do pecado tem a idéia básica de “errar o alvo” Jz 20.16;
Pv 19.2). Essa idéia de alvo - ou padrão objetivo - permite a referência aos
pecados deliberados (Êx 10.17; Dt 9.18; Sl
25.7), a uma realidade externa do pecado (Gn 4.7), a um padrão
sistemático do pecado (Gn 18.20; 1Rs 8.36), aos erros (Lv 4.2) e às ofertas
exigidas por causa dos pecados (Lv 4.8). 'Awon (“iniqüidade”), proveniente da
idéia de ser “torto” ou “pervertido”, refere-se a pecados graves e muitas vezes
forma um paralelo com chatta'th (Is 43.24). O verbo 'avar fala em ir além de
uma fronteira e, portanto (metaforicamente), da transgressão (Nm 14.41; Dt
17.2). Resha' pode referir-se a coisa errada (Pv 11.10) ou à injustiça (Pv
28.3,4).
Um grupo de palavras gregas representado por hamartia é usado para o
conceito genérico de pecado no Novo Testamento. Tem o sentido básico de “errar
o alvo” (assim como em chatta’th), e é um termo amplo, originalmente sem
conotação moral. No Novo Testamento, porém, refere-se a pecados específicos (Mc
1.5; At 2.38; Gl 1.4; Hb 10.12) e ao pecado como uma força (Rm 6.6,12; Hb
12.1). Anomia (gr. nomos, “lei”, mais o prefixo negativo a - “sem lei”,
“ilegalidade”, “iniqüidade”) e seus termos correlatos representam provavelmente
a linguagem mais contundente para o pecado. O adjetivo e o advérbio talvez se
refiram àqueles que não têm a Torá (Rm 2.12; 1Co 9.21), mas a palavra
usualmente identifica qualquer pessoa que violou alguma lei divina (Mt 7.23;
1Jo 3.4). E, também, a “injustiça” de 2 Tessalonicenses 2.7-12.
Outro termo para o pecado, adikia, é mais literalmente traduzido por
“ilegalidade” (mais comumente “iniqüidade”, em nossas Bíblias) e varia desde um
mero engano até violações grosseiras da lei. É grande injustiça (2Pe 2.13-15) e
contrasta-se com a justiça (Rm 6.13). Parabasis (“passar além”, “transgressão”)
e seus derivados indicam o violar um padrão. A palavra descreve a Queda (Rm
5.14; cf 1Tm 2.14), a transgressão da lei como pecado (Tg 2.9,11) e a perda do
apostolado de Judas (At 1.25). Asebeia (“impiedade” - o prefixo negativo a com
sebomai [“reverenciar”, “adorar” etc.]), sugere uma insensibilidade espiritual
que resulta em pecado grosseiro (Jd 4) e grande condenação (1Pe 4.18; 2Pe
2.5;3.7).
A idéia do pecado como quebra de lei e como desordem evidencia um contraste
marcante com o Deus pessoal que, pela sua palavra, trouxe à existência um mundo
ordeiro e bom. A própria idéia de uma personalidade (humana ou divina) exige
ordem. A ausência desta dá origem ao termo técnico “desordem da personalidade”.
5 - CARACTERÍSTICAS DO PECADO
Muitas das facetas do pecado estão refletidas nas características a
seguir, tiradas do registro bíblico.
O pecado como incredulidade, ou falta de fé, é visto na Queda, na
rejeição da humanidade à revelação geral (Rm 1.18; 2.2) e naqueles condenados à
segunda morte (Ap 21.8). Está estreitamente vinculado à desobediência de Israel
no deserto (Hb 3.18,19). A palavra grega apistia (“incredulidade”, At 28.24)
combina o prefixo negativo a com pistis (“fé”, “confiança”, “fidelidade”). Tudo
o que não é de fé é pecado (Rm 14.23; Hb 11.6). A incredulidade é o antônimo da
fé salvífica (At 13.39; Rm 10.9) e leva à condenação eterna (Jo 3.16; Hb
4.6,11).
O orgulho é a auto-exaltação. Ironicamente, é tanto o desejo de ser
semelhante a Deus (como na ocasião em que Satanás tentou Eva) quanto a rejeição
a Ele (Sl 10.4). A despeito do terrível
custo, não tem valor diante de Deus (Is 2.11) e é por Ele odiado (Am 6.8). O
orgulho engana (Hb 3) e leva à destruição (Pv 16.18; Ob 4; Zc 10.11). Ajudou a
tornar a incredulidade de Cafarnaum pior que a depravação de Sodoma (Mt 11. 23;
Lc 10.15), e é a antítese da humildade de Jesus (Mt 11.29; 20.28; cf. Fp
2.3-8). No Juízo Final, os orgulhosos serão humilhados, e os humildes,
exaltados (Mt 23.1-12; Lc 14.7-14). Embora apresente um lado positivo, o
hebraico ga’on (Am 6.8) e o grego huperêphanos (Tg 4.6) tipicamente denotam uma
arrogância profunda e permanente.
Intimamente relacionado ao orgulho, o desejo malsão - ou mal orientado -
e seu egocentrismo são pecado e motivam ao pecado (1Jo 2.15-17). Epithumia
(“desejo”, Tg 4.2), usado num mau sentido, leva ao assassínio e à guerra, e
pleonexia, a apaixonada “cobiça” ou o “desejo de ter mais”, é equiparada à
idolatria.
Conseqüentemente, são condenados todos os desejos iníquos (Rm 6.12).
Quer se trate da desobediência de Adão ou da falta de amor no crente (1Co
14.15,21; 15.10), todo pecado consciente é rebelião contra Deus. Em hebraico,
pesha' envolve a “rebelião” deliberada e premeditada (Is 59.13). A rebelião
também é refletida em marah (“ser refratário, obstinado”, Dt 9.7) e em sarar
(“ser teimoso”, Sl 78.8), e no grego
apeitheia (“desobediência”, Ef 2.2), apostasia (“apostasia” ou “abandono,
rebelde, traição”, 2Ts 2.3) e parakoê (“recusa de ouvir”, “desobediência”, 2Co 10.6).
E assim, a rebelião é equiparada ao pecado da adivinhação, que busca orientação
em outras fontes que não Deus ou sua Palavra (1Sm 15.23).
O pecado, que provém do “pai da mentira” (Jo 8.44), é a antítese da
verdade de Deus (Sl 31.5; Jo 14.6; 1Jo
5.20). Desde o princípio tem sido
enganoso nas suas promessas, incitando pessoas enganadas a cometer mais
prevaricação (Jo 3.20; 2Tm 3.13). Pode outorgar prazer dramático, mas sempre
temporário (Hb 11.25). O hebraico ma'al (“infidelidade”, “engano”, Lv 26.40) e
o grego paraptõma (“passo em falso”, “transgressão”, Hb 6.6), podem igualmente
significar traição devida à incredulidade.
O lado objetivo da mentira que é o pecado é a distorção real do bem.
“Iniqüidade” (‘awon), que provém da idéia de torcido ou pervertido, representa
esse conceito (Gn 19.15; Sl 31.10; Zc
3.9). Vários compostos de strephõ (“virar”- apo-, Lc 23.14; dia-, At 20.30;
meta-, Gl 1.7; ek-, Tt 3.11) também apresentam o mesmo sentido em grego, assim
como skolios (“Perverso”, “inescrupuloso”, At 2.40).
De modo genérico, o conceito bíblico do mal abrange tanto o pecado quanto
o seu resultado. O hebraico ra' apresenta uma ampla variedade de usos: animais
inadequados para o sacrifício (Lv 27.10), as dificuldades da vida (Gn 47.9), a
árvore proibida do Éden (Gn 2.17), as imaginações do coração (Gn 6.5), atos
iníquos (Êx 23.2) , pessoas perversas (Gn 38.7), a retribuição (Gn 31.29) e o
justo juízo de Deus (Jr 6.19). O grego, kakos tipicamente designa coisas más ou
desagradáveis (At 28.5). No entanto, kakos e os seus compostos podem ter um
significado mais amplo, moral, que designa pensamentos (Mc 7.21), ações (2Co
5.10), pessoas (Tt 1.12) e o mal como uma força (Rm 7.21; 12.21). Ponêria e a
sua classe de palavras desenvolvem conotações forte, mente éticas no Novo
Testamento, inclusive Satanás como o “maligno” (Mt 13.19; ver também Mc 4.15;
cf. 1Jo 2.13) e o mal coletivo (Gl 1.4).
Os pecados especialmente repugnantes para Deus são designados como
detestáveis (“abominações”). To'evah (“coisa abominável, detestável, ofensiva”)
pode referir-se aos ímpios (Pv 29.27), ao transvestismo (Dt 22.5), ao
homossexualismo (Lv 18.22), à idolatria (Dt 7.25,26), ao sacrifício infantil
(Dt 12.31) e a outros pecados graves (Pv 6.16-19). A palavra grega
correspondente, bdelugma, fala de grande hipocrisia (Lc 16.15), da profanação
final do Lugar Santo (Mt 24.15; Mc 13.14) e do conteúdo da taça nas mãos da
prostituta Babilônia (Ap 17.4).
6 - FORÇA EXTENSÃO DO
PECADO
Conforme indicam a totalidade deste capítulo e o estudo sobre Satanás,
uma força maligna real e pessoal está operando no Universo, contra Deus e
contra o seu povo. Esse fato sugere a importância crucial do exorcismo, da
guerra espiritual e de coisas semelhantes, mas sem o histerismo pouco religioso
que tão freqüentemente acompanha esses esforços.
O pecado não consiste apenas de ações isoladas, mas também é uma
realidade, ou natureza, dentro da pessoa (ver Ef 2.3). O pecado, como natureza,
indica a “sede” ou a sua “localização” no interior da pessoa, como a origem
imediata dos pecados. Inversamente, é visto na necessidade do novo nascimento,
de uma nova natureza a substituir a velha, pecaminosa (Jo 3.3-7; At 3.19; 1Pe
1.23). Esse fato é revelado na idéia de que a regeneração só pode acontecer de
fora para dentro da pessoa (Jr 24.7; Ez 11.19; 36.26,27; 37-1-14; 1Pe 1.3).
O Novo Testamento relaciona a natureza pecaminosa com sarx (a “carne”).
Embora a palavra originalmente se referisse ao corpo material, Paulo (inovando)
equiparou-a à natureza pecaminosa (Rm 7.5-8.13; Gl 5.13,19). Neste sentido,
sarx é o centro dos desejos pecaminosos (Rm 13.14; Gl 5. 16,24; Ef 2.3; 1Pe
4.2; 2Pe 2. 10; 1Jo 2.16). O pecado e as paixões surgem da carne (Rm 7.5; Gl
5.17,21), onde não habita nenhuma coisa boa (Rm 7.18), e os pecadores mais
sórdidos dentro da igreja são entregues a Satanás, “para destruição da carne”,
possivelmente uma enfermidade que os leve ao arrependimento (1Co 5.5; cf. 1Tm
1.20). Sõma (“corpo”) é usado de modo semelhante apenas em algumas ocasiões (Rm
6.6; 7.24; 8.13; Cl 2.11). O corpo físico não é considerado um mal em si mesmo.
O hebraico lev, ou levav (“coração”, “mente” ou “entendimento”), indica a
essência da pessoa. O coração do homem pode ser pecaminoso (Gn 6.5; Dt 15.9; Is
29.13) acima de todas as coisas (Jr 17.9). Pois isso precisa de renovação
(Sl 51.10; Jr 31.33; Ez 11.19). Dele fluem
as más intenções
(Jr 3.17; 7.24), e todas
as suas inclinações são más (Gn
6.5). O grego kardia (“coração”) também indica a vida interior e o próprio-eu. Tanto
o mal quanto o bem são dele provenientes (Mt 12.33-35; 15.18; Lc 6.43-45). Pode
significar a pessoa essencial (Mt 15.19; At 15.9; Hb 3.12). Kardia pode ser
duro (Mc 3.5; 6.52; 8.17; Jo 12.40; Rm 1.21; Hb 3.8). Assim como sarx, kardia
pode ser a origem de desejos errados (Rm 1.24). Da mesma forma a mente (nous)
pode ser má nas suas operações (Rm 1.28; Ef 4.17; Cl 2.18; 1Tm 6.5; 2Tm 3.8; Tt
1.15) e necessitar de renovação (Rm 12.2).
O pecado luta contra o Espírito. A natureza pecaminosa está totalmente
contrária ao Escrito e além do controle da pessoa (Gl 5.17; cf. Rm 7.7-25). E
morte para o ser humano (Rm 8.7,8; 1Co 15.50). Dela provém epithumia, a inteira
gama de desejos malignos (Rm 1.24; 7.8; Tt 2.12; 1Jo 2.16). O pecado até mesmo
habita dentro da pessoa (Rm 7.17-24; 8.5-8), como um princípio ou lei (Rm
7.21,23,25).
Os pecados propriamente ditos começam na natureza pecaminosa,
freqüentemente como resultado de tentações mundanas ou sobrenaturais (Tg
1.14,15; 1Jo 2.16). Uma das características mais insidiosas do pecado é a de
dar ainda vazão a mais pecado. O pecado, por ser crescimento maligno,
avoluma-se por conta própria a proporções fatais, tanto na intensidade, a não
ser quando freado pela purificação no sangue de Cristo. A maneira como o pecado
reproduz a si mesmo pode ser vista na Queda (Gn 3.1-13), na maneira de Caim
descer da inveja ao homicídio (Gn 4-1-15) e na concupiscência de Davi, que deu
à luz o adultério, o assassínio e gerações de sofrimentos (2Sm 11 e 12).
Romanos 1.18-32 relata a caminhada descendente da humanidade, desde a rejeição
à revelação até sua reprovação por Deus e a conseqüente perversidade total.
Semelhantemente, os “sete pecados mortais” (um catálogo antigo de vícios
contrastados com virtudes paralelas) têm sido considerados não somente pecados
radicais, como também uma seqüência descendente de pecados.
O processo de pecado se alimentando de pecado é levado a efeito através
de muitos mecanismos. O ambicioso autor da iniqüidade, Satanás, é o antagonista
principal desse drama maligno. Como governante da presente era (Jo 12.31;
14.30; 16.11; Ef 2.2), ele tem procurado constantemente enganar, tentar,
peneirar e devorar (Lc 22.31-34; 2Co 11.14; 1Ts 3.5; 1Pe 5.8), até mesmo por
incitamento direto ao coração (1Cr 21.1). A inclinação natural da carne, que
ainda aguarda a redenção
plena, também desempenha
o seu papel.
As tentações do mundo apelam ao coração (Tg 1.2-4; 1Jo 2.16). O pecado
muitas vezes requer mais pecados para alcançar o seu alvo elusivo, assim como
aconteceu, a Caim, que tentou esconder de Deus o seu crime (Gn 4.9). O prazer
do pecado (Hb 11.25,26) pode reforçar o próprio pecado. Os pecadores provocam
as suas vítimas a reagir de modo pecaminoso (observe as exortações contrárias:
Pv 20.22; Mt 5.38-48; 1Ts 5.15; 1Pe 3.9). Os pecadores seduzem outras pessoas
ao pecado (Gn 3.1-6; Êx 32.1; 1Rs 21.25; Pv 1.10-14; Mt 4.1-11; 5.19; Mc
1.12,13; Lc 4.1-13; 2Tm 3.6-9; 2Pe 2.18,19; 3.17; 1Jo 2.26). Os pecadores
encorajam outros pecadores ao pecado (Sl
64.5; Rm 1.19-32). Os indivíduos endurecem seus corações contra Deus,
procurando evitar a aflição mental do pecado (1Sm 6.6; Pv 28.14; Rm 1.24,26,28;
2.5; Hb 3.7-19; 4.7). Finalmente, o endurecimento do coração por Deus pode
facilitar esse processo.
Nunca se deve confundir tentação com pecado. Jesus sofreu maiores
tentações (Mt 4.1-11; Mc 1.12,13; Lc 4.1-13; Hb 2.18; 4.15) e permaneceu sem
pecado (2Co 5.21; Hb 4.15; 7.26-28; 1Pe 1.19; 2.22; 1Jo 3.5; e as provas da
divindade). Além disso, se a tentação fosse pecado, Deus não providenciaria
socorro para ajudar a suportá-la (1Co 10.13). Embora Deus realmente submeta a
provas os que são seus (Gn 22.1-14; Jo 6.6) e obviamente permita a tentação (Gn
3), Ele mesmo não tenta (Tg 1.13). Na prática, a Bíblia admoesta a respeito do
perigo da tentação e da necessidade de evitá-la e livrar-se dela (Mt 6.13; Lc
11.4; 22.46; 1Co 10.13; 1Tm 6.6-12; Hb 3.8; 2Pe 2.9).
A Bíblia contém abundantes descrições de atos pecaminosos e advertências
contra eles, inclusive catálogos de vícios (tipicamente em Rm 1.29-31; 13.13;
1Co 5.10,11; 6.9,10; 2Co 12.20,21; Gl 5. 19-21; Ef 4.31; 5.3-5; Cl 3.5,8; Ap
21.8; 22.15). Essas listas indicam a gravidade do pecado e demonstram sua
incrível variedade. No entanto, por si só, podem incitar o desespero mórbido em
razão de pecados passados ou futuros. Mais grave ainda, podem ser entendidas no
sentido de reduzir o pecado a meras ações, sem se levar em conta sua
profundidade como lei, natureza e força dentro da pessoa e do Universo. Nesse
caso, a pessoa acabaria vendo apenas os sintomas, sem tomar consciência da
própria enfermidade.
As Escrituras descrevem muitas categorias de pecados. Podem ser cometidos
por incrédulos ou por crentes, sendo que estes dois grupos são lesados pelos
pecados e precisam da graça. Os pecados podem ser cometidos contra Deus, contra
o próximo, contra o próprio-eu ou contra alguma combinação
destes. Em última análise, porém, todo o pecado é contra Deus (Sl 51.4; cf. Lc 15.18,21). O pecado pode ser
confessado e perdoado. Não sendo perdoado, continuará exercendo o seu domínio
sobre a pessoa. A Bíblia ensina que uma atitude pode ser tão pecaminosa quanto
um ato. Por exemplo, a fúria contra alguém pode ser tão pecaminosa quanto o
assassinato, e um olhar de concupiscência, tão pecaminoso quanto o adultério
(Mt 5.21,22,27,28; Tg 3.14-16). A atitude pecaminosa inutiliza a oração
(Sl 66.18). O pecado pode ser ativo ou
passivo, ou seja, a prática do mal ou a negligência à prática do bem (Lc
10.30-37; Tg 4.17). Os pecados sexuais físicos são lastimáveis para os
cristãos, porque abusam o corpo do Senhor na pessoa do crente e porque o corpo
é o templo do Espírito Santo (1Co 6.12-20).
Os pecados podem ser cometidos por ignorância (Gn 20; Lv 5.17-19; Nm
35.22-24; Lc 12.47-48; 23.34). O salmista, com muita sabedoria, pede ajuda para
discerni-los (Sl 19.12). Parece que
aqueles que só possuem a lei da natureza (Rm 2.13-15) cometem pecados da
ignorância (At 17.30). Todas as pessoas são, até certo grau, responsáveis e sem
desculpa (Rm 1.20), e a ignorância deliberada, como a de Faraó, proveniente do
contínuo endurecimento do próprio coração, é condenada vigorosamente. O pecado
secreto é tão iníquo quanto o praticado em público (Ef 5.11-13). Assim acontece
especialmente no caso da hipocrisia, uma forma de pecado secreto no qual a
aparência exterior serve de máscara à realidade interior (Mt 23.1-33; note o v.
5). Os pecados cometidos abertamente, no entanto, tendem à presunção e à
subversão da comunidade (Tt 1.9-11; 2Pe 2.1,2). Muitos rabinos acreditavam que
o pecado secreto também era, na prática, uma negação da onipresença de Deus.”
Os pecados cometidos por fraqueza têm origem no desejo dividido,
usualmente após uma luta contra a tentação (Mt 26.36-46; Mc 14.32-42; Lc
22.31-34,54,62; talvez Rm 7.14-25). Os pecados presunçosos são cometidos com
intenção profundamente iníqua, ou “à mão levantada” (Nm 15.30). Os pecados de
fraqueza constituem menor afronta a Deus que os presunçosos. Indicam esse fato
a severidade com que as Escrituras consideram os pecados presunçosos (Êx
21.12-14; Sl 19.13; Is 5.18-25; 2Pe
2.10) e a ausência de expiação para eles na lei mosaica (não no Evangelho,
porém). Mesmo assim, a distinção entre fraqueza e presunção jamais deve ser
usada como desculpa para tratar levianamente qualquer pecado.
A teologia católica romana faz distinção entre pecados veniais (lat.
venia - “favor”, “perdão”, “bondade”) e pecados mortais. Nos pecados veniais
(assim como nos de fraqueza), a vontade, embora consinta ou concorde com o ato
do pecado, recusa-se a alterar sua identidade piedosa fundamental. Os pecados
veniais podem levar aos pecados mortais. Entretanto, estes envolvem uma
reorientação radical da pessoa, que leva a um estado de rebelião contra Deus e
perda da salvação, embora a possibilidade do perdão permaneça. A verdadeira
distinção entre esses tipos de pecado não parece achar-se na sua própria
natureza, mas na natureza da salvação. O catolicismo acredita não serem os
pecados inerentemente veniais, mas que se tornam em tais porque os fiéis
possuem uma retidão que, em grande medida, mitiga o efeito dos pecados menores.
Nessa qualidade, não são diretamente prejudiciais ao relacionamento entre o
fiel e Deus e, tecnicamente, não exigem a confissão. Esse conceito não é
bíblico (Tg 5.16; 1Jo 1.9).
Além de todos os demais pecados, o próprio Jesus ensinava que há um
pecado sem perdão (Mt 12.22-37; Mc 3.20-30; Lc 12.1-12). Muito se tem debatido
a respeito da natureza desse “pecado imperdoável” ou “blasfêmia contra o
Espírito Santo”. O texto sugere vários critérios que toda análise precisa levar
em conta.
Deve ter alguma referência ao Espírito Santo (Mt 12.31; Mc 3.29; Lc
12.10). No entanto, a blasfêmia contra Deus ou contra outros membros da
Trindade (Mt 12.31-32; Mc 3.28; Lc 12.10; At 26.11; Cl 3.8; 1Tm 1.13,20) é
perdoável. Não pode ser um pecado que a Bíblia aliste como alcançado com o
perdão. Tais pecados incluem aqueles cometidos antes de se conhecer a Deus - a
possessão demoníaca (Lc 8.2-3), a crucificação do Senhor, a impiedade de
duração quase vitalícia, a blasfêmia (1Tm 1.13), o compelir os crentes a
blasfemar - e os cometidos depois de se ter conhecimento de Deus. Além disso, o
pecado imperdoável não inclui negar o Deus dos milagres (Êx 32), voltar à
idolatria a despeito de grandes milagres (Êx 32), assassinato (2Sm 11 e 12),
imoralidade grosseira (1Co 5.1-5), negar Jesus (Mt 26.69-75), ver os milagres
de Jesus e considerá-lo “fora de si” (Mc 3.21, imediatamente antes do seu
ensino acerca da blasfêmia) e nem a volta à Lei depois de se conhecer a graça
(Gl 2.11-21).
Esse pecado deve ser forçosamente blasfêmia (gr. blasphêmia), a calúnia
mais vil contra Deus. Na LXX, blasphêmia freqüentemente descreve o ato de negar
o poder e a glória de Deus, que é consistente com a atitude dos líderes
judaicos de atribuir os milagres de Jesus ao diabo. O pecado da blasfêmia deve
ser comparável aos dos líderes judaicos ao acusarem Jesus de ter um espírito
maligno (Mc 3.30). Não pode ser meramente negar o testemunho dos milagres, pois Pedro negou Jesus (Mt
26.69-75) e Tomé duvidou dEle (Jo 20.24-29) depois de verem muitos milagres,
mas os dois foram perdoados.
Devido à explícita afirmação de Jesus de que todos os demais pecados
podem ser perdoados (Mt 12.31; Mc 3.28), o pecado contra o Espírito Santo
precisa ser comparado com Hebreus 6.4-8; 10.26-31; 2Pe 2.20-22; e 1 João
5.16,17 - que também descrevem o pecado imperdoável. Notavelmente, Hebreus
10.29 liga esse pecado com o ultraje ao Espírito Santo. Parece, também, que
podem ser incluídos o endurecimento do coração e a presunção (2Ts 2.11,12). É
bom acrescentar que tal pecado não envolve necessariamente a presença do Jesus
encarnado nem a dos apóstolos, pois eles não foram vistos por ninguém no Antigo
Testamento nem (mais provavelmente) pelos destinatários de Hebreus, 2 Pedro e 1
João. Assim, o pecado imperdoável não pode ser a falta de correspondência às
manifestações milagrosas do Jesus encarnado ou dos apóstolos. Nem pode
tratar-se de uma negação temporária à fé, que as Escrituras consideram
perdoável.
O pecado imperdoável é melhor definido como a rejeição deliberada e
derradeira da obra especial do Espírito Santo (Jo 16.7-11), que testemunha
diretamente ao coração a respeito de Jesus como Senhor e Salvador, resultando
na recusa total de crer. Por isso a blasfêmia contra o Espírito Santo não é uma
indiscrição momentânea, mas uma disposição definitiva da vontade, embora as
declarações de Jesus sugiram que possa manifestar-se num ato específico. Isto
concorda com a avaliação de João de que os crentes não podem continuar pecando
(1Jo 3.6,9). A preocupação sincera indica que o pecado imperdoável não ocorreu.
Tal preocupação, no entanto, não é mensurada nas emoções ou na depressão
suicida (Mt 27.3-5; talvez Hb 12.16,17), antes em uma renovada busca por Deus,
em fé e dependência dele. As passagens em Hebreus exemplificam este inabalável
ainda que delicado equilíbrio pastoral.
A Bíblia admite diferentes graus de pecado. Esse fato é algumas das
categorias de pecado (já citadas) e nos diferentes julgamentos divinos (Mt
11.24; Mc 12.38-40; Lc 10.12; 12.47,48; Jo 19.11). Mas a Bíblia também
ensina o mínimo
pecado cometido torna
a pessoa plenamente pecadora (Dt
27.26;28.1; Gl 3.10; Tg 2.10). A discrepância aparente é resolvida pelo fato de
que tanto o pecado mais insignificante quanto o mais hediondo são suficientes
para levar à condenação eterna. Mesmo assim, pecados mais graves usualmente têm
implicações mais significativas, não
somente para as pessoas contra quem foram cometidos mas também para o
pecador, que assim se afasta cada vez mais da presença de Deus.
A Bíblia ensina que somente Deus e os seres espirituais não-caídos (como
os anjos) não possuem a mácula do pecado. A idéia de que os povos antigos
viviam uma vida simples e quieta é desmentida pela antropologia, que revela um
lado escuro em todas as sociedades humanas. Até mesmo as explicações
evolucionárias que a teologia liberal oferece a respeito do pecado reconhecem a
universalidade deste.
O pecado contamina o mundo dos espíritos. A depravação de Satanás (Jó
1.6-2.6), sua queda (Lc 10.18 e Ap 12.8,9, com suas interpretações), a “guerra”
no céu (Dn 10.13; Ap 12.7) e referências aos espíritos maus ou impuros (2Co
12.7; Ef 6.10-18; Tg 4.7) dão testemunho disso. O pecado tem afetado o Universo
além do escopo da ciência física.
As Escrituras também ensinam que todo ser humano, individualmente, é pecaminoso em algum sentido. Desde os
tempos no Éden, o pecado tem ocorrido dentro de grupos. O pecado é claramente
encorajado pelas atividades em grupo. A sociedade contemporânea é uma sementeira
de tendências baseadas em capacidade (desde a vida embrionária), sexo, raça,
antecedentes étnicos, religião, preferência sexual e até mesmo em posição
política.
Assim como o pecado se achava em Israel, também há pecado na Igreja.
Jesus o previu (Mt 18.15-20), e as Epístolas dão testemunho de sua presença
(1Co 1.11; 5.1,2; Gl 1.6; 3.1; Jd 4-19). A Igreja sem mácula nem ruga não será
uma realidade antes da segunda vinda de Jesus (Ef 5.27; Ap 21.27).
As Escrituras ensinam que os efeitos do pecado se encontram até mesmo na
criação não-humana. A maldição de
Gênesis 3.17,18 marca o início desse mal, e Romanos 8.19-22 declara o estado
desordenado da natureza. A criação geme, esperando a consumação. A palavra grega
mataiotês (“frustração”, “vazio”, Rm
8.20) descreve a inutilidade de um objeto totalmente
separado de seu propósito original e sintetiza a futilidade do estado presente
do próprio Universo. O pensamento divino aqui pode abranger tudo, desde plantas
e animais a quarks e galáxias.
A extensão do pecado tem limitação cronológica. Antes da criação e
durante um período posterior não especificado, o pecado não existia, e tudo era
bom. Entretanto, não somente a lembrança mas também a esperança cristã conhece
um futuro em que, finalmente, o pecado e a morte já não existem (Mt 25.41; 1Co
15.25,26,51-56; Ap 20.10,14,15).
7 - CONSEQÜÊNCIAS DO PECADO
O pecado, por sua própria natureza, é destrutivo. Já descrevemos boa
parte dos seus efeitos. Mesmo assim, é necessário aqui um breve resumo.
O estudo das conseqüências do pecado devem considerar a culpa e o
castigo. Há vários tipos de culpa (heb. 'asham, Gn 26.10; gr. enochos, Tg
2.10). A culpa individual ou pessoal pode ser distinguida da comunitária, que
pesa sobre as sociedades. A culpa objetiva refere-se à transgressão real, quer
posta em prática pelo culpado, quer não. A culpa subjetiva refere-se à sensação
de culpa numa pessoa, que pode ser sincera e levar ao arrependimento (Sl 51; At 2.40- 47; cf Jo 16.7-11). Pode,
também, ser insincera (com a aparência externa de sinceridade), mas ou
desconhece a realidade do pecado (e só corresponde quando apanhada em flagrante
e exposta à vergonha e castigada, etc.) ou evidencia uma mera mudança
temporária e externa, sem uma reorientação real, duradoura e interna (por
exemplo, Faraó). A culpa subjetiva pode ser puramente psicológica na sua origem
e provocar muitas aflições sem, porém, fundamentar-se em qualquer pecado real
(1Jo 3.19,20).
A penalidade, ou castigo, é o resultado justo do pecado, infligido por
uma autoridade aos pecadores e fundamentado na culpa destes. O castigo natural
refere-se ao mal natural (indiretamente da parte de Deus) incorrido por atos
pecaminosos (como a doença venérea provocada pelos pecados sexuais e a
deterioração física e mental provocada pelo abuso de substâncias). O castigo
positivo é infligido sobrenatural e diretamente por Deus. O pecador é
fulminado, etc.
Os possíveis propósitos do castigo são relacionados a seguir.
a)A retribuição ou a vingança pertencem exclusivamente a Deus (Sl 94.1; Rm 12.19);
b)A expiação traz a restauração do culpado (esta realizada em nosso favor
pela expiação vicária oferecida por Cristo);
c) O julgamento leva o culpado a dispor-se a restituir o que foi tirado ou
destruído, e assim pode ser comprovada a obra que Deus realizou numa vida (Êx
22.1; Lc 19.8);
d)A correção influencia o culpado a não pecar no futuro. Esta é uma
expressão do amor de Deus (Sl 94.12; Hb
12.5-17);
e)O castigo do culpado serve para dissuadir a outros do mesmo
comportamento. A dissuasão é usada freqüentemente nas advertências divinas
(Sl 95.8-11; 1Co 10.11).
Os resultados do pecado são muitos e complexos. Podem ser considerados em
termos de quem e o que é afetado por ele.
O pecado tem seu efeito sobre Deus. Embora sua justiça e sua onipotência
não sejam prejudicadas pelo pecado, as Escrituras dão testemunho de seu ódio
por ele (Rm 1. 18), de sua paciência para com os pecadores (Êx 34.6; 2Pe 3.9),
de sua, busca pela humanidade perdida (Is 1.1 8; 1Jo 4.9-10,19), de sua mágoa
por causa do pecado (Os 11.8), de sua lamentação pelos perdidos (Mt 23.37; Lc
13.34) e de seu sacrifício em favor da
salvação da humanidade (Rm 5.8; 1Jo 4:14; Ap 13.8). De todas as revelações
bíblicas a respeito do pecado, estas talvez sejam as mais humilhantes.
Todas as interações de uma sociedade humana outrora pura estão
pervertidas pelo pecado. As Escrituras protestam, repetidas vezes, contra as
injustiças praticadas pelos pecadores contra os “inocentes” (Pv 4.16; sociais,
Tg 2.9; econômicas, Tg 5.1-4; físicas, Sl
11.5; etc.).
O mundo físico também sofre os efeitos do pecado. A decadência natural do
pecado contribui para os problemas da saúde e do meio ambiente.
Os efeitos mais variados do pecado podem ser notados na mais complexa
criação de Deus: a pessoa humana. Ironicamente, o pecado traz benefícios
(segundo as aparências). O pecado pode até mesmo produzir uma alegria
transitória (Sl 10.1-11; Hb 11.25,26). O
pecado também produz pensamentos enganosos,
segundo os quais
o mal parece bem. Como
conseqüência, as pessoas mentem e distorcem a verdade (Gn 4.9; Is 5.20; Mt
7.3-5), negando o pecado pessoal (Is 29.13) e até mesmo a Deus (Rm 1. 20; Tt
1.16). Em última análise, o engano do que parece ser bom revela-se como mau. A
culpa, a insegurança, o tumulto, o medo do juízo e coisas semelhantes
acompanham a iniqüidade (Sl 38.3,4; Is
57.20,21; Rm 2.8,9; 8.15; Hb 2.15; 10.27).
O pecado é futilidade. A palavra hebraica 'awen (“dano”, “aflição”,
“engano”, “nulidade”) evoca a imagem da infrutuosidade do pecado. É o mal angustioso
ceifado por quem semeia iniqüidade (Pv 22.8) e é a inutilidade prevalecente em
Betel (chamada com desprezo: Beth’ Awen - “casa de nulidade”) apesar da grande
tradição de que antes desfrutava (Os 4.15; 5.8; 10.5, 8; Am 5.5; cf. Gn
28.10-22). Hevel (“nada”, “vazio”) é a repetida “vaidade” - ou “irrelevância” -
de Eclesiastes e do frio consolo dos ídolos (Zc 10.2). Seu equivalente em
grego, mataiotês, retrata o vazio ou a futilidade da criação amaldiçoada pelo
pecado (Rm 8.20) e as palavras enfatuadas dos falsos mestres (2Pe 2.18). Em
Efésios 4.17, os incrédulos são apanhados “na vaidade do seu sentido” por causa
do seu entendimento entenebrecido e da separação de Deus causada pela dureza de
coração.
O pecado envolve o pecador numa dependência cada vez mais exigente (Jo
8.34; Rm 6.12-23; 2Pe 2.12-19), tornando-se uma lei ímpia no íntimo (Rm
7.23,25; 8.2). Desde Adão até ao Anticristo, o pecado é caracterizado pela
rebelião, que pode assumir a forma de “tentar a Deus” (1Co 10.9) ou de
hostilidade contra Ele (Rm 8.7; Tg 4.4). O pecado nos separa de Deus (Gn 2.17,
cf. 3.22-24; SI 78.58-60; Mt 7.21-23; 25.31-46; Ef 2.12-19; 4.18). O resultado
pode ser não somente a ira de Deus, mas também o seu silêncio (Sl 66.18; Pv 1. 28; Mq 3.4-7; Jo 9.3 1).
A morte (heb. maweth, gr. thanatos) teve sua origem no pecado, e é o
resultado final do pecado (Gn 2.17; Rm 5.12-21; 6.16,23; 1Co 15.21,22,56; Tg
1.15). É possível distinguir entre a morte física e a espiritual (Mt 10.28; Lc
12.4). A morte física é uma penalidade ao pecado (Gn 2.17; 3.19; Ez 18.4,20; Rm
5.12-17; 1Co 15.21,22) e pode vir como um juízo específico (Gn 6-7,11-13; 1Cr
10.13,14; At 12.23). Entretanto, para os crentes (que estão mortos para o
pecado, Rm 6.2; Cl 3.3; em Cristo, Rm 6.3,4; 2Tm 2.11) significa uma
restauração mediante o sangue de Cristo (Jó 19.25-27; 1Co 15.21,22) porque Deus
tem triunfado sobre a morte (Is 25.8; 1Co 15.26,55-57; 2Tm 1.10; Hb 2.14,15; Ap
20.14).
Os não-salvos vivem na morte espiritual (Jo 6.50-53; Rm 7.11; Ef 2.1-6;
5.14; Cl 2.13; 1Tm 5.6; Tg 5.20; 1Pe 2.24; 1Jo 5. 12), que é a derradeira
expressão da alienação entre a alma e Deus. Até mesmo os crentes, quando pecam,
experimentam uma separação parcial de Deus (Sl
66.18), mas Ele está sempre disposto a perdoar (Sl 32.1-6; Tg 5.16; 1Jo 1.8,9).
A morte espiritual e a morte física estão associadas e serão plenamente
realizadas após o Juízo Final (Ap 20.12-14). Embora Deus tenha ordenado o
triste fim dos pecadores (Gn 2.17; Mt 10.28; Lc 12.4), este fim não lhe dá
prazer (Ez 18.23; 33. 11; 1Tm 2.4; 2Pe 3.9).
A única maneira de se lidar com o pecado é amando a Deus em primeiro
lugar, e então passar a ser um canal para levar ao próximo o seu amor, mediante
a graça divina. Somente o amor é capaz de opor-se ao pecado, que se opõe a tudo
(Rm 13.10; 1Jo 4.7 -8). Somente o amor pode cobrir o pecado (Pv 10.12; 1Pe 4.8)
e, em último lugar, ser o remédio contra ele (1Jo 4.10). E somente “Deus é
amor” (1Jo 4.8). No que diz respeito ao pecado, o amor pode expressar-se de
maneiras específicas.
O conhecimento do pecado deve gerar santidade na vida do indivíduo e uma
ênfase à mesma santidade, na pregação e no ensino à igreja.
A Igreja deve reafirmar a sua identidade, a de uma comunidade de
pecadores salvos por Deus, ministrando na confissão, no perdão e na cura. A
humildade deve caracterizar todos os relacionamentos cristãos, à medida que os
crentes tomam consciência, não somente da vida e morte terríveis das quais foram salvos, mas
também do preço ainda mais terrível daquela salvação. Quando uma pessoa é salva
da mesma natureza pecaminosa, nenhuma quantidade de dons espirituais,
ministérios ou autoridade pode justificar a elevação de uma pessoa acima de
outra. Pelo contrário, cada pessoa deve preferir e honrar as outras mais que a
si mesma (Fp 2.3).
A amplidão universal e a profundidade sobrenatural do pecado devem levar
a Igreja a corresponder, com a dedicação de todos os membros e o revestimento
do poder milagroso do Espírito Santo, ao imperativo da Grande Comissão (Mt
28.18-20).
A compreensão da natureza do pecado deve renovar a nossa sensibilidade
diante das questões do meio ambiente e levar-nos a retomar a comissão original
de cuidar do mundo de Deus, o qual não devemos deixar nas mãos daqueles que
preferem adorar a criação ao invés de ao Criador.
Questões de justiça social e necessidade humana devem ser advogadas pela
Igreja como testemunho da veracidade do amor, em contraste à mentira que é o
pecado. Mesmo assim, semelhante testemunho deve apontar sempre para o Deus da
justiça e do amor, que enviou o seu Filho a morrer por nós. Somente a salvação,
e não a legislação ou um evangelho social que desconsidera a cruz ou ainda a
ação violenta ou militar, pode curar o problema e seus sintomas.
Finalmente, a vida deve ser vivida na esperança certa de um futuro além
do pecado e da morte (Ap 21 e 22). Então, purificados e regenerados, os crentes
verão a face daquele que já não lembra mais do seu pecado (Jr 31.34; Hb 10.17).
Nenhum comentário:
Postar um comentário