sexta-feira, 6 de março de 2020


FACULDADE DE TEOLOGIA
TESTEMUNHAS HOJE


CURSO LIVRE
FILOSOFIA DA RELIGIÃO







CONCEITO GERAL DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO
INTRODUÇÃO
Depois de conceituarmos filosofia, fazermos uma amostragem geral da religião e suas nuanças, apresentamos de forma topical, embora não cronológica, uma abordagem sinóptica da filosofia da religião, bem como as diferentes escolas históricas, teológicas e filosóficas que nos dão uma visão panorâmica desta disciplina.

Termo e definição de Filosofia
O homem sempre se questionou sobre temas como a origem e o fim do universo, as causas, a natureza e a relação entre as coisas e entre os fatos. Essa busca de um conhecimento que transcende a realidade imediata constitui a essência do pensamento filosófico, que ao longo da história percorreu os mais variados caminhos, seguiu interesses diversos, elaborou muitos métodos de reflexão e chegou a várias conclusões, em diferentes sistemas filosóficos.

O termo filosofia deriva do grego phílos (“amigo”, “amante”) e sophía (“conhecimento”, “saber”) e tem praticamente tantas definições quantas são as correntes filosóficas. Aristóteles a definiu como a totalidade do saber possível que não tenha de abranger todos os objetos tomados em particular; os estóicos, como uma norma para a ação; Descartes, como o saber que averigua os princípios de todas as ciências; Locke, como uma reflexão crítica sobre a experiência; os positivistas, como um compêndio geral dos resultados da ciência, o que tornaria o filósofo um especialista em idéias gerais. Já se propuseram outras definições mais irreverentes e menos taxativas. Por exemplo, a do britânico Samuel Alexander, para quem a filosofia se ocupa “daqueles temas que a ninguém, a não ser a um filósofo, ocorreria estudar”.

Pode-se definir filosofia, sem trair seu sentido etimológico, como uma busca da sabedoria, conceito que aponta para um saber mais profundo e abrangente do homem e da natureza, que transcende os conhecimentos concretos e orienta o comportamento diante da vida. A filosofia pretende ser também uma busca e uma justificação racional dos princípios  primeiros e universais das coisas, das ciências e dos valores, e uma reflexão sobre a origem e a validade das idéias e das concepções que o homem elabora sobre ele mesmo e sobre o que o cerca.
CLASSIFICAÇÃO, CARACTERÍSTICA E SIGNIFICAÇÃO DE RELIGIÃO
O medo do desconhecido e a necessidade de dar sentido ao mundo que o cerca levaram o homem a fundar diversos sistemas de crenças, cerimônias e cultos -- muitas vezes centrados na figura de um ente supremo -- que o ajudam a compreender o significado último de sua própria natureza. Mitos, superstições ou ritos mágicos que as sociedades primitivas teceram em torno de uma existência sobrenatural, inatingível pela razão, eqüivaleram à crença num ser superior e ao desejo de comunhão com ele, nas primeiras formas de religião.
Religião (do latim religio, cognato de religare, “ligar”, “apertar”, “atar”, com referência a laços que unam o homem à divindade) é como o conjunto de relações teóricas e práticas estabelecidas entre os homens e uma potência superior, à qual se rende culto, individual ou coletivo, por seu caráter divino e sagrado. Assim, religião constitui um corpo organizado de crenças que ultrapassam a realidade da ordem natural e que tem por objeto o sagrado ou sobrenatural, sobre o qual elabora sentimentos, pensamentos e ações.
Essa definição abrange tanto as religiões dos povos ditos primitivos quanto as formas mais complexas de organização dos vários sistemas religiosos, embora variem muito os conceitos sobre o conteúdo e a natureza da experiência religiosa. Apesar dessa variedade e da universalidade do fenômeno no tempo e no espaço, as religiões têm como característica comum o reconhecimento do sagrado (definição do filósofo e teólogo alemão Rudolf Otto) e a dependência do homem de poderes supramundanos (definição do teólogo alemão Friedrich Schleiermacher). A observância e a experiência religiosas têm por objetivo prestar tributos e estabelecer formas de submissão a esses poderes, nos quais está implícita a idéia da existência de ser ou seres superiores que criaram e controlam o cosmos e a vida humana.
Aquelas características, que de certa forma não distinguem uma religião de outra, levaram ao debate sobre religião natural e religião revelada, o que recebeu significação especial nas teologias judaica e cristã. O americano Mircea Éliade, historiador das religiões, denominou “hierofania” a essa manifestação do sagrado, ou seja, algo sagrado que é mostrado ao homem. Seja a manifestação do sagrado uma pedra ou uma árvore, seja a doutrina da encarnação de Deus em Jesus Cristo, trata-se sempre de uma hierofania, de um ato misterioso que revela algo completamente diferente da realidade do mundo natural, profano.

Por mais que a mentalidade ocidental moderna possa repudiar certas expressões rudimentares ou exóticas das religiões primitivas, na realidade a pedra e a árvore não são adoradas enquanto tais, como expressões de algo sagrado, que paradoxalmente transforma o objeto numa outra realidade. O sagrado e o profano configuram duas modalidades de estar no mundo e duas atitudes existenciais do homem ao longo de sua história. Contudo, as reações do homem frente ao sagrado, em diferentes contextos históricos, não são uniformes e expressam um fenômeno cultural e social complexo, apesar da base comum.

Embora não seja fácil elaborar uma classificação sistemática das religiões, pode-se agrupá-las em duas categorias amplas: religiões primitivas e religiões superiores. Nessa divisão, o qualificativo superior refere-se ao desenvolvimento cultural e não ao nível de religiosidade.

1.1. Religiões primitivas

A importância do culto aos antepassados levou filósofos e historiadores -- como Evêmero, no século IV a.C. -- a considerá-lo a origem da religião. As sepulturas paleolíticas corroboram essa opinião, pois comprovam já haver, naquele período, a crença numa vida depois da morte e no poder ou influência dos antepassados sobre a vida cotidiana do clã familiar. Os integrantes do clã obrigavam-se a praticar ritos em homenagem a seus defuntos pelo temor a represálias ou pelo desejo de obter benefícios ou, ainda, por considerá-los divinizados.

No século XIX, os estudos realizados pelo antropólogo britânico Edward Burnett Tylor deram origem ao conceito de animismo, aplicado desde então a todas as religiões primitivas. Tylor sustentou que o homem primitivo, a partir da experiência do sonho e do fenômeno da respiração, concebeu a existência de uma alma ou princípio vital imaterial que habitava todos os seres dotados de movimento e vida. O temor diante dos fenômenos naturais ou a necessidade de obter seus benefícios impeliu-o a render-lhes veneração e culto.

O fetichismo e o totemismo podem ser considerados variantes do animismo. O fetichismo refere-se à denominação que os portugueses deram à religião dos negros da África ocidental e que se ampliou até confundir-se com o animismo. Consiste na veneração a objetos aos quais se atribuem poderes sobrenaturais ou que são possuídos por um espírito. Mais que uma religião, o totemismo seria um sistema de crenças e práticas culturais que estabelece relação especial entre um indivíduo ou grupo de indivíduos e um animal -- às vezes também um vegetal, um fenômeno natural ou algum objeto material -- ao qual se rende algum tipo de culto e respeito e em relação ao qual se estabelecem determinadas proibições (uso como alimento, contato etc.).

1.2. Religiões superiores

À medida que o homem passou a organizar sua existência numa base racional, a multiplicidade de poderes divinos e sobre-humanos do primitivo animismo não conseguiu mais satisfazer a necessidade de estabelecer uma relação coerente com as múltiplas forças espirituais que povoavam o universo. Surgiram assim as religiões politeístas, panteístas, deístas e monoteístas, expressões das condições sociais e culturais de cada época e das características dos povos em que surgiram.

1.2.1. O politeísmo

As religiões politeístas afirmam a existência de vários deuses, aos quais rendem culto. Existem duas teorias contraditórias sobre a origem do politeísmo: para alguns, é a forma primitiva da religião, que mais tarde teria evoluído até o monoteísmo; para outros, ao contrário, é uma degeneração do monoteísmo primitivo. O politeísmo reflete a experiência humana de um universo no qual se manifestam diversas formas de poder sobre-humano; no entanto, nas religiões politeístas ocorre com freqüência uma hierarquia, com um deus supremo que reina e que, em geral, pode ser a origem dos demais deuses. O problema do politeísmo seria delimitar o que se entende como deus ou como algo sobre-humano. Politeístas foram a religião grega e a romana.

1.2.2. O panteísmo
O panteísmo é uma filosofia que, por levar a extremos as noções de absoluto e de infinito, próprias do conceito de Deus, chega a considerá-lo como a única realidade existente e, portanto, a identificá-lo com o mundo. É clássica a formulação do filósofo Baruch Spinoza, no século XVII: Deus sive natura (Deus ou natureza). Alguns filósofos gregos e estóicos foram panteístas, doutrina que também é a base fundamental do budismo.
1.2.3. O   deísmo

Também uma corrente filosófica, o deísmo reconhece a existência de Deus enquanto constitui um ser supremo de atributos totalmente indeterminados. Essa doutrina funda-se na religião natural, que nega a revelação. O que o homem conhece a respeito de Deus não decorre apenas das deduções da própria razão humana. Se o universo físico é regulado por leis segundo a vontade de Deus, as relações entre Deus e o mundo moral e espiritual devem ser similares, reguladas com a mesma precisão e, portanto, naturais. O período do Iluminismo (séculos XVII-XVIII) proclamou o culto à deusa razão e a revolução francesa ajudou a organizá-lo.




1.2.4. O monoteísmo

As religiões monoteístas professam a crença num Deus único, transcendente -- distinto e superior ao universo -- e pessoal. Um dos grandes problemas do monoteísmo é a explicação da existência do mal no mundo, o que levou diversas religiões a adotarem um sistema dualista, o maniqueísmo, fundado nos princípios supremos do bem e do mal.

As grandes religiões monoteístas são o judaísmo, o cristianismo -- que professa a existência de um só Deus, apesar de reconhecer, como mistério, três pessoas divinas -- e o islamismo.

Elementos característicos dos sistemas religiosos. Os princípios elementares comuns à maioria das religiões conhecidas na história podem agrupar-se nos seguintes capítulos: crenças, ritos, normas de conduta e instituições.

Toda religião pressupõe algumas crenças básicas, como a sobrevivência depois da morte, mundo sobrenatural etc., ao menos como fundamento dos ritos que pratica. Essas crenças podem ser de tipo mitológico -- relatos simbólicos sobre a origem dos deuses, do mundo ou do próprio povo; ou dogmático -- conceitos transmitidos por revelação da divindade, que dá origem à religião revelada e que são recolhidos nas escrituras sagradas em termos simbólicos, mas também conceituais.

Os conceitos fundamentais organizam-se, de modo geral, em um credo ou profissão de fé; as deduções ou explicações de tais conceitos constituem a teologia ou ensinamento de cada religião, que enfoca temas sobre a divindade, suas relações com os homens e os problemas humanos cruciais -- a morte, a moral, as relações humanas etc. Entre as crenças destaca-se, em geral, uma visão esperançosa sobre a salvação definitiva das calamidades presentes, que pode ir desde a mera ausência de sofrimento até a incógnita do nirvana ou a felicidade plena de um paraíso.
A manifestação das próprias crenças e anseios mediante ações simbólicas é inerente à expressividade humana. Da mesma forma, as crenças e sentimentos religiosos têm se manifestado através dos ritos, ou ações sagradas, praticados nas diferentes religiões. Até no budismo, contra o ensinamento de Buda, desenvolveram-se desde o começo diversas classes de rituais. Toda religião que seja mais do que uma filosofia gera uma série de ritos ao ser vivida pelo povo. Existem ritos culturais em honra à divindade, ritos funerários, ritos de bênçãos ou de consagração e muitos outros.

Observa-se em geral, nas diversas religiões, a existência de ministros ou sacerdotes encarregados de celebrar os principais rituais e, em especial, o culto à divindade. Os atos mais importantes desse culto são oferendas e sacrifícios praticados em conjunto, com invocações e orações. Com freqüência celebram-se os ritos em lugares e épocas considerados sagrados, especialmente dedicados à divindade, e observados com escrupulosa exatidão através dos tempos.

O terceiro elemento característico de toda religião é o estabelecimento, mais ou menos coercitivo, de normas de conduta do indivíduo ou do grupo no que se refere a Deus, a seus semelhantes e a si mesmo. O primeiro comportamento exigido é a conversão ou mudança para um novo modo de vida. Com relação a Deus, destacam-se as atitudes de veneração, obediência, oração e, em algumas religiões, o amor. Na conduta no âmbito da esfera humana entra, em maior ou menor medida, um sistema de normas éticas.

Quase todas as religiões cristalizam-se em algumas instituições dogmáticas (doutrinárias) e cultuais (sacerdócio, hierarquia). Muitas delas chegam a institucionalizar a conduta, com a criação até mesmo de tribunais de justiça e sanções e a organizar administrativamente as diversas comunidades de crentes e suas propriedades. Essas instituições dão forma e coesão aos crentes como um grupo social -- religião, povo, igreja, comunidade; a elas somam-se outras instituições voluntárias de tipo assistencial ou de plena dedicação religiosa, que correspondem a grupos informais dentro do grupo institucionalizado. As instituições consideram imprescindível a forma externa, enquanto que a fé considera o espírito interno como essencial à religião.

1.3. O significado de  “Filosofia da religião”

A filosofia, tal como a religião, como um sistema,  começou como uma defesa das crenças religiosas, através do raciocínio filosófico. Assim, temos as provas racionais da existência da alma e de Deus, como exemplos desse tipo de atividade. Porém, uma verdadeira filosofia da religião não é especialmente defensiva,  e nem especificamente  negativa. Antes, é a consideração de assuntos religiosos mediante a crítica  analítica e avaliação feitas pela filosofia. O propósito disso não é, em primeiro lugar, aceitar ou rejeitar as crenças religiosas e, sim, compreender e descrever as mesmas de formas mais exatas e abrangente. “A filosofia da religião é o estudo lógico dos conceitos religiosos e dos conceitos, argumentos e expressões teológicos: o escrutínio de várias interpretações  da experiência e das atividades  religiosas. O filósofo que pratica a mesma não precisa dedicar-se a religião que estiver estudando... A filosofia da religião deve ser destinguida da apologética. Novamente, não é idêntica à teologia natural, visto que o filósofo da religião também pode ocupar-se na avaliação de alegadas revelações”.

1.4. Animismo

O deus sol, a divindade lunar, o trovão, a montanha sagrada, os espíritos da água, do fogo, do vento... A crença de que fenômenos e forças da natureza são capazes de intervir nos assuntos humanos constitui o fundamento de todas as idéias religiosas consideradas animistas.

1.4.1. A teoria animista

Em sentido mais técnico, conhece-se por esse nome a teoria formulada pelo antropólogo inglês Sir Edward B. Tylor em sua obra Primitive Culture (1871; A cultura primitiva). O animismo, segundo essa teoria, é a primeira grande etapa da evolução do pensamento religioso, que indefectivelmente continua pelo politeísmo até culminar no monoteísmo. Para Tylor, a origem da noção de alma está nas experiências do adormecimento, da doença, da morte e, sobretudo, dos sonhos, que levam a imaginar a existência de um “duplo” insubstancial do corpo. Esse princípio da vida e do pensamento pode atuar com independência e até sobreviver ao corpo depois de sua morte. A crença em que a alma perdura explica o culto aos mortos e aos antepassados.

Mais tarde, por analogia com os seres humanos, começa-se a considerar dotados de alma os animais e as plantas. Desde o momento em que, dando um passo além, se alcança a concepção de espíritos independentes que podem encarnar-se nos mais diversos objetos, aparece o fetichismo e, com ele, o culto à natureza, isto é, a rios, árvores, fenômenos atmosféricos etc. Quando se chega a venerar um só deus dos rios, outro das árvores etc., alcança-se a etapa politeísta, própria dos povos “semicivilizados”, em que são cultuadas personificações das forças da natureza, das quais dependem a prosperidade e até a sobrevivência do grupo.

Por fim, a transição para o monoteísmo pode produzir-se de vários modos; o mais simples deles é atribuir a supremacia a um dos deuses, diante do qual os outros acabam empalidecendo.

1.4.2. Críticas e vigência da teoria

Por sua clareza, sugestibilidade e grande simplicidade evolutiva, a obra de Tylor exerceu grande influência. Contudo, os estudos posteriores abalaram quase todas as suas teses. Em primeiro lugar, não se pode afirmar hoje que todas as religiões se tenham constituído seguindo a pauta que ele propõe. E mais: existem comunidades arcaicas em que surge a crença num ser supremo sem que tenha havido a fase do animismo. Também não é certo que o fetichismo esteja sempre ligado ao animismo; muitas vezes, aparece unido à magia. Por outro lado, existem crenças segundo as quais os homens possuem não só uma, mas várias almas, fenômeno em que Tylor nunca reparou. Isso sem mencionar a objeção prévia da inexistência de um procedimento certo que permita conhecer as primeiras crenças dos homens.

Apesar de tudo, reconhece-se na teoria de Tylor o grande valor de ter mostrado a conexão entre o animismo e o culto aos mortos, o xamanismo etc., e sobretudo de ter iniciado uma forma de abordar as crenças dos povos primitivos, as quais ele viu como uma tentativa de racionalizar a experiência, e não como manifestações de uma mentalidade pré-lógica ou como meras representações simbólicas da ordem social.

1.5. Fetichismo

O conceito de fetichismo ficou inicialmente restrito ao campo da antropologia, mas foi depois utilizado pela psicologia, principalmente por Freud, e pela sociologia, sobretudo por Marx.

Fetichismo é a atribuição simbólica, a pessoas, partes do corpo ou coisas, de propriedades ou características que emanam de outros objetos ou indivíduos.

1.5.1. Conceito antropológico

Em antropologia, o conceito de fetichismo descreve os sistemas de crenças, de índole geralmente animista, que atribuem a determinados objetos propriedades mágicas ou divinas, ou que consideram esses mesmos objetos representações ou transposições de um ser superior, de cujas características seriam possuidores.
Esse fetichismo animista, muito comum em algumas religiões primitivas da África e de crenças afro-americanas do Caribe e da América do Sul, representa a aceitação de uma manifestação primária do sobrenatural no natural. Tal manifestação tem um caráter de presença, que exige reverência, adoração, gratidão e oferendas, e também um caráter ativo, de forma que o objeto representante da divindade pode intervir na natureza para conceder graças ou bens e administrar castigos e vinganças.

Em cultos como o vodu, que integrou elementos litúrgicos muito distintos, mas sobretudo católicos, as crenças fetichistas se transferiram também para esses elementos e dotaram-nos de poderes mágicos.


1.5.2. Perspectiva psicopatológica

Por analogia, foi cunhada a expressão fetichismo erótico para definir a tendência de um indivíduo a sentir atração sexual por uma parte especial ou particularidade do corpo, ou por algum objeto a ele associado. Em psicopatologia,  fetichismo refere-se à atribuição de significado erótico a roupas e objetos que, em si mesmos, não carregam tal significado. No fetichismo erótico, esses objetos perdem o papel acessório que têm na atividade sexual para se converter em pontos focais dela.

O fetichismo, considerado como desvio sexual, também aparece como ingrediente de outros comportamentos sexuais de caráter mais complexo, como as práticas sadomasoquistas. Nesse tipo de desvio, a atividade sexual se cerca de rituais em que intervêm objetos que atuam como estimulantes eróticos, com uma carga de significado específico.

1.5.3. Fetichismo cultural
Fala-se igualmente de um fetichismo cultural, vinculado não a fenômenos religiosos ou a comportamentos de caráter psicopatológico, mas a um valor atribuído a objetos, em determinados meios culturais. Alguns sociólogos consideram que as relações socioeconômicas nas sociedades avançadas criam uma cultura fetichista, pela qual a posse de certos objetos confere uma valorização pessoal especial ao indivíduo. A sociedade de consumo tenderia assim a produzir desvios sociais e a provocar o abandono de objetivos vitais básicos, pela adoção de estereótipos dos grupos sociais privilegiados, como automóveis, iates, alimentos exóticos e caros etc. Marx utiliza o conceito de fetiche no sentido original de “feitiço”, para referir-se ao duplo aspecto - econômico e ideológico - que a mercadoria assume na sociedade capitalista.

Outra importante manifestação do comportamento fetichista são certos movimentos juvenis espontâneos,  em torno de fenômenos como a música moderna, a moda na indumentária etc., os quais às vezes adquirem um valor “transcendente” e acabam por desempenhar, além de suas funções imediatas, o papel de elementos de identificação com o grupo, de afirmação dos próprios valores ou de rebeldia ante a ordem estabelecida.

1.6. Maniqueísmo

Considerado durante muito tempo uma heresia cristã, possivelmente por sua influência sobre algumas delas, o maniqueísmo foi uma religião que, pela coerência da doutrina e a rigidez das instituições, manteve firme unidade e identidade ao longo de sua história.


Denomina-se maniqueísmo a doutrina religiosa pregada por Maniqueu -- também chamado Mani ou Manes -- na Pérsia, no século III da era cristã. Sua principal característica é a concepção dualista do mundo como fusão de espírito e matéria, que representam respectivamente o bem e o mal.

1.6.1. Maniqueu e sua doutrina

Maniqueu nasceu em 14 de abril do ano 216, no sul da Babilônia, região atualmente situada no Iraque, e na juventude sentiu-se chamado por um anjo para pregar uma nova religião. Pregou na Índia e em todo o império persa, sob a proteção do soberano Sassânida Sapor (Shapur) I. Durante o reinado de Bahram I, porém, foi perseguido pelos sacerdotes do zoroastrismo e morreu em cativeiro entre os anos 274 e 277, na cidade de Gundeshapur.

Maniqueu se acreditava o último de uma longa sucessão de profetas, que começara com Adão e incluía Buda, Zoroastro e Jesus, e portador de uma mensagem universal destinada a substituir todas as religiões. Para garantir a unidade de sua doutrina, registrou-a por escrito e deu-lhe forma canônica. Pretendia fundar uma religião ecumênica e universal, que integrasse as verdades parciais de todas as revelações anteriores, especialmente as do zoroastrismo, budismo e cristianismo.

O maniqueísmo é fundamentalmente um tipo de gnosticismo, filosofia dualista segundo a qual a salvação depende do conhecimento (gnose) da verdade espiritual. Como todas as formas de gnosticismo, ensina que a vida terrena é dolorosa e radicalmente perversa. A iluminação interior, ou gnose, revela que a alma, a qual participa da natureza de Deus, desceu ao mundo maligno da matéria e deve ser salva pelo espírito e pela inteligência.

O conhecimento salvador da verdadeira natureza e do destino da humanidade, de Deus e do universo é expresso no maniqueísmo por uma mitologia segundo a qual a alma, enredada pela matéria maligna, se liberta pelo espírito. O mito se desdobra em três estágios: o passado, quando estavam radicalmente separadas as duas substâncias, que são espírito e matéria, bem e mal, luz e trevas; um período intermediário (que corresponde ao presente) no qual as duas substâncias se misturam; e um período futuro no qual a dualidade original se restabeleceria. Na morte, a alma do homem que houvesse superado a matéria iria para o paraíso, e a do que continuasse ligado à matéria pelos pecados da carne seria condenada a renascer em novos corpos.

1.6.2. Maniqueísmo como religião

A ética maniqueísta justifica a gradação hierárquica da comunidade religiosa, uma vez que varia o grau de compreensão da verdade entre os homens, fato inerente à fase de interpenetração entre luz e trevas. Distinguiam-se os eleitos, ou perfeitos, que levavam vida ascética em conformidade com os mais estritos princípios da doutrina. Os demais fiéis, chamados ouvintes, contribuíam com trabalho e doações. Por rejeitar tudo o que era material, o maniqueísmo não admitia nenhum tipo de rito nem símbolos materiais externos. Os elementos essenciais do culto eram o conhecimento, o jejum, a oração, a confissão, os hinos espirituais e a esmola.

Por sua própria concepção da luta entre o bem e o mal e sua vocação universalista, o maniqueísmo dedicou-se a intensa atividade missionária. Como religião organizada, expandiu-se rapidamente pelo Império Romano. Do Egito, disseminou-se pelo norte da África, onde atraiu um jovem pagão que mais tarde, convertido ao cristianismo, seria doutor da igreja cristã e inimigo ferrenho da doutrina maniqueísta: santo Agostinho. No início do século IV, já havia chegado a Roma.

Enquanto Maniqueu foi vivo, o maniqueísmo se expandiu para as províncias ocidentais do império persa. Na Pérsia, apesar da intensa perseguição, a comunidade maniqueísta se manteve coesa até a repressão dos muçulmanos, no século X, que levou à transferência da sede do culto para Samarcanda. Missionários maniqueístas chegaram no fim do século VII à China, onde foram reconhecidos oficialmente até o século IX. Depois foram perseguidos, mas persistiram comunidades de adeptos no país até o século XIV. No Turquestão oriental, o maniqueísmo foi reconhecido como religião oficial durante o reino Uighur -- séculos VIII e IX -- e perdurou até a invasão dos mongóis, no século XIII.

1.6.3. Posteridade do maniqueísmo
Embora não haja dados que permitam estabelecer uma vinculação histórica direta, o pensamento maniqueísta inspirou na Europa medieval diversas seitas ou heresias dualistas surgidas no seio do cristianismo. Entre elas, cabe citar a dos bogomilos, na Bulgária (século X) e, sobretudo, a dos cátaros ou albigenses, que se propagou no sul da França no século XII. Este último movimento foi uma das mais poderosas heresias da Europa, sufocada de modo sangrento no início do século seguinte

1.7. Zoroastrismo

Dois princípios supremos, o bem e o mal, caracterizavam o zoroastrismo. Substituído pelo islamismo, o zoroastrismo reduziu-se a grupos de guebros no Irã e de parses na Índia, mas deixou traços nas principais religiões, como o judaísmo, o cristianismo e o islamismo.

Zoroastrismo é um antigo sistema religioso-filosófico que repousa no postulado básico de uma contradição dualista, a do bem e do mal, inerente a todos os elementos do universo. Os pressupostos do sistema foram estabelecidos por Zoroastro, ou Zaratustra, que, nascido na Pérsia no século VI a.C., que parece ter sido um reformador do masdeísmo ou mazdeísmo, antiga religião da Média. A doutrina de Zoroastro foi transmitida oralmente e recolhida nos gathas, os cânticos do Avesta, conjunto de livros sagrados da religião.

As reformas de Zoroastro não podem ser entendidas fora de seu contexto social. A sociedade dividia-se em três classes: a dos chefes e sacerdotes, a dos guerreiros e a dos criadores de gado. Essa estrutura se refletia na religião, e determinadas deidades (daivas), estavam associadas a cada uma das classes. Ao que parece os ahuras (senhores), que incluíam Mitra e Varuna, só tinham relação com a primeira classe. Os servos, mercadores, pastores e camponeses eram considerados insignificantes demais para ser mencionados nas crônicas e estelas, embora tivessem seus próprios deuses.

O zoroastrismo prescreve a fé em um deus único, Ahura Mazda, o Senhor Sábio, a quem se credita o papel de criador e guia absoluto do universo. Dessa divindade suprema emana seis espíritos, os Amesas Spenta (Imortais Sagrados), que auxiliam Ahura Mazda na realização de seus desígnios: Vohu-Mano (Espírito do Bem), Asa-Vahista (Retidão Suprema), Khsathra Varya (Governo Ideal), Spenta Armaiti (Piedade Sagrada), Haurvatat (Perfeição) e Ameretat (Imortalidade). Juntos, Ahura Mazda e esses entes travam luta permanente contra o princípio do mal, Angra Mainyu (ou Ahriman), por sua vez acompanhado de entidades demoníacas: o mau pensamento; a mentira, a rebelião, o mau governo, a doença e a morte.

Como fruto dessa noção, há no zoroastrismo uma série de exortações e interdições destinadas a dirigir a conduta dos homens, para reprimir os maus impulsos. Através do combate cotidiano a Angra Mainyu e sua coorte (que se manifestam, por exemplo, nos animais de presa, nos ladrões, nas plantas venenosas etc.), o indivíduo torna-se merecedor das recompensas divinas, embora tenha liberdade para decidir-se pelo mal, caso em que será punido após a morte. Enquanto religião, o zoroastrismo reduziu sensivelmente a importância de certos rituais indo-arianos, repelindo alguns elementos cerimoniais correntes no Irã, como as bebidas estimulantes e os sacrifícios sangrentos.

Após a adoção oficial do zoroastrismo pelos aquemênidas, no reinado de Dario I, redigiu-se o Avesta ou Zend-Avesta, livro sagrado no qual -- na parte denominada gathas, hinos metrificados em língua arcaica -- encontra-se a sistematização tardia dessa religião, que teria sido feita pelo próprio Zoroastro. Entretanto, sob os sucessores de Dario, o zoroastrismo transformou seu caráter, convertendo-se em mazdeísmo (ou masdeísmo), impregnado de crenças populares e mais complexo dos pontos de vista escatológico e ritualístico. Apesar dos pontos de contato entre o zoroastrismo clássico e o mazdeísmo aquemênida (como a purificação ritual pelo fogo), permanecem sem resposta conclusiva.

1.8. Patrística

A patrística procurou conciliar as verdades da revelação bíblica com as construções do pensamento próprias da filosofia grega. A maior parte de suas obras foi escrita em grego e latim, embora haja também muitos escritos doutrinários em aramaico e outras línguas orientais.

Patrística é o corpo doutrinário que se constituiu com a colaboração dos primeiros pais da igreja, veiculado em toda a literatura cristã produzida entre os séculos II e VIII, exceto o Novo Testamento.

1.8.1. Histórico

O conteúdo do Evangelho, no qual se apoiava a fé cristã nos primórdios do cristianismo, era um saber de salvação, revelado, não sustentado por uma filosofia. Na luta contra o paganismo greco-romano e contra as heresias surgidas entre os próprios cristãos, no entanto, os pais da igreja se viram compelidos a recorrer ao instrumento de seus adversários, ou seja, o pensamento racional, nos moldes da filosofia grega clássica, e por meio dele procuraram dar consistência lógica à doutrina cristã.

O cristianismo romano atribuía importância maior à fé; mas entre os pais da igreja oriental, cujo centro era a Grécia, o papel desempenhado pela razão filosófica era muito mais amplo e profundo. Os primeiros escritos patrísticos falavam de martírios, como A paixão de Perpétua e Felicidade, escrito em Cartago por volta de 202, durante o período em que sua autora, a nobre Perpétua, aguardava execução por se recusar a renegar a fé cristã. Nos séculos II e III surgiram muitos relatos apócrifos que romantizavam a vida de Cristo e os feitos dos apóstolos.

Em meados do século II, os cristãos passaram a escrever para justificar sua obediência ao Império Romano e combater as idéias gnósticas, que consideravam heréticas. Os principais autores desse período foram são Justino mártir, professor cristão condenado à morte em Roma por volta do ano 165; Taciano, inimigo da filosofia; Atenágoras; e Teófilo de Antioquia. Entre os gnósticos, destacaram-se Marcião, que rejeitava o judaísmo e considerava antitéticos o Antigo e o Novo Testamento.
No século III floresceram Orígenes, que elaborou o primeiro tratado coerente sobre as principais doutrinas da teologia cristã e escreveu Contra Celsum e Sobre os princípios; Clemente de Alexandria, que em sua Stromata expôs a tese segundo a qual a filosofia era boa porque consentida por Deus; e Tertuliano de Cartago. A partir do Concílio de Nicéia, realizado no ano 325, o cristianismo deixou de ser a crença de uma minoria perseguida para se transformar em religião oficial do Império Romano. Nesse período, o principal autor foi Eusébio de Cesaréia. Dentre os últimos pais gregos destacaram-se, no século IV, Gregório Nazianzeno, Gregório de Nissa e João Damasceno.

Os maiores nomes da patrística latina foram santo Ambrósio, são Jerônimo (tradutor da Bíblia para o latim) e santo Agostinho, este considerado o mais importante filósofo em toda a patrística. Além de sistematizar as doutrinas fundamentais do cristianismo, desenvolveu as teses que constituíram a base da filosofia cristã durante muitos séculos. Os principais temas que abordou foram as relações entre a fé e a razão, a natureza do conhecimento, o conceito de Deus e da criação do mundo, a questão do mal e a filosofia da história.

1.9. Epicurismo

Os princípios enunciados por Epicuro e praticados pela comunidade epicurista resumem-se em evitar a dor e procurar os prazeres moderados, para alcançar a sabedoria e a felicidade. Cultivar a amizade, satisfazer as necessidades imediatas, manter-se longe da vida pública e rejeitar o medo da morte e dos deuses são algumas das fórmulas práticas recomendadas por Epicuro para atingir a ataraxia, estado que consiste em conservar o espírito imperturbável diante das vicissitudes da vida.

Epicuro nasceu na ilha grega de Samos, no ano 341 a.C., e desde muito jovem interessou-se pela filosofia. Assistiu às lições do filósofo platônico Pânfilo, em Samos, e às de Nausífanes, discípulo de Demócrito, em Teos. Aos 18 anos viajou para Atenas, onde provavelmente ouviu os ensinamentos de Xenócrates, sucessor de Platão na Academia. Após diversas viagens, ensinou em Mitilene e em Lâmpsaco e amadureceu suas concepções filosóficas. Em 306 a.C. voltou a Atenas e comprou uma propriedade que se tornou conhecida como Jardim, onde formou uma comunidade em que conviveu com amigos e discípulos, entre os quais Metrodoro, Polieno e a hetaira Temista, até o fim de seus dias.

Segundo Diógenes Laércio, principal fonte de informações sobre Epicuro, o mestre desenvolveu sua filosofia em mais de 300 volumes, mas esse legado escrito se perdeu. Epicuro elaborou estudos sobre física, astronomia, meteorologia, psicologia, teologia e ética, mas do que escreveu só se conhecem três cartas e uma coleção de sentenças morais e aforismos. A física epicurista inspirou-se na doutrina de Demócrito e propõe um universo, infinito e vazio, que contém corpos constituídos de átomos, elementos indivisíveis que se acham em constante movimento. Contrapõe ao determinismo de Demócrito a tese segundo a qual esses átomos experimentam em seu movimento um desvio (clinamen) espontâneo, que explica a maior ou menor densidade da matéria que forma os corpos a partir das colisões e rejeições entre os átomos. Segundo Epicuro, a alma é uma entidade física, distribuída por todo o corpo. Quando o indivíduo morre, ela se desintegra nos átomos que a constituem. A percepção sensorial, por meio da alma, é a única fonte de conhecimento e, por isso, os epicuristas recomendavam o estudo da natureza para alcançar a sabedoria.

Para chegar à ataraxia, o homem deve perder o medo da morte. Como corpo e alma são entidades materiais, não existem sensações boas ou más depois da morte; assim, o temor da morte não se justifica. Epicuro aceitava a existência dos deuses, mas acreditava que eles estavam muito afastados do mundo humano para preocupar-se com este. Logo, o homem não tem porque temer os deuses, embora possa imitar sua existência serena e beatífica.

De seus estudos científicos, Epicuro derivou uma filosofia essencialmente moral. À semelhança de outras correntes filosóficas da época, como o estoicismo e o ceticismo, suas concepções vieram ao encontro das necessidades espirituais de seus contemporâneos, preocupados com a desintegração da polis (cidade) grega. O prazer sensorial converteu-se na única via de acesso à ataraxia. Esse prazer, porém, não consiste numa busca ativa da sensualidade e do gozo corporal desenfreado, como interpretaram erroneamente outras escolas filosóficas e também o cristianismo, mas baseia-se no afastamento das dores físicas e das perturbações da alma. O maior prazer, segundo Epicuro, é comer quando se tem fome e beber quando se tem sede. O “tetrafármaco”, receita do mestre para a vida tranqüila, tem o seguinte teor: “O bem é fácil de conseguir, o mal é fácil de suportar, a morte não deve ser temida, os deuses não são temíveis.”

No ano 270 a.C., Epicuro morreu e tornou-se objeto de culto para os epicuristas, o que contribuiu para aumentar a coesão da seita e para conservar e propagar a doutrina. O epicurismo foi a primeira filosofia grega difundida em Roma, não apenas entre os humildes, mas também entre figuras importantes como Pisão, Cássio, Pompônio Ático e outros. O epicurismo romano contou com autores como Lucrécio e se manteve vivo até o princípio do século IV da era cristã, como poderoso rival do cristianismo.

1.10. Agnosticismo

A identificação do agnosticismo com o ceticismo  filosófico, de um lado, e com o ateísmo religioso, de outro, deu ao adjetivo “agnóstico”, de uso muito amplo, uma pluralidade de significados que induz à confusão.

O termo “agnosticismo” apareceu pela primeira vez em 1869 num texto do inglês Thomas H. Huxley, Collected Essays (Ensaios reunidos). O autor criou-o como antítese ao “gnóstico” da história da igreja, que sempre se mostrava, ou pretendia mostrar-se, sabedor de coisas que ele, Huxley, ignorava. E foi como naturalista que Huxley usou do vocábulo. Com ele, aludia à atitude filosófica que nega a possibilidade de dar solução a todas as questões que não podem ser tratadas de uma perspectiva científica, especialmente as de índole metafísica e religiosa. Com isso, pretendia refutar os ataques da igreja contra o evolucionismo de Charles Darwin, que também se havia declarado agnóstico.

1.10.1. Bases históricas

A definição de Huxley viria possibilitar diferentes concepções do agnosticismo. O propriamente filosófico seria o que limita o conhecimento ao âmbito puramente racional e científico, negando esse caráter à especulação metafísica. Tais concepções, que podem ser rastreadas já nos sofistas gregos, tiveram formulação precisa, no século XVIII, nas teses empiristas do inglês David Hume, que negava a possibilidade de se estabelecer leis universais válidas a partir dos conteúdos da experiência, e no idealismo transcendental do alemão Immanuel Kant, que afirmou que o intelecto humano não podia chegar a conhecer o númeno ou coisa-em-si, isto é, a essência real da coisa. O positivismo lógico do século XX levou ainda mais longe essas afirmações, negando não só que seja possível demonstrar as proposições metafísicas mas também que elas tenham significado.

No âmbito religioso, o agnosticismo tem sentido mais restrito. O agnóstico não nega nem afirma a existência de Deus, mas considera que não se pode chegar a uma demonstração racional dela; essa seria, em essência, a tese de Hume e de Kant, muito embora este considerasse possível demonstrar a existência de Deus como fundamento da moralidade. Por outro lado, já na Idade Média a chamada “teologia negativa” questionava a cognoscibilidade de Deus, se bem que para enfatizar que só era possível chegar a Ele pela via mística ou pela fé. Essa seria uma das bases da “douta ignorância” postulada no século XV por Nicolau de Cusa, e sua influência é visível em filósofos dos séculos XIX e XX, como o dinamarquês SØren Kierkegaard e o espanhol Miguel de Unamuno, os quais, embora admitam a necessidade de um absoluto, não aceitam sua personalização.

Agnosticismo, ateísmo e ceticismo. Como se vê, a rigor não se pode falar de agnosticismo, mas de agnosticismos e, melhor ainda, de agnósticos, já que existe notável variedade tanto no processo intelectual pelo qual se chega às teses agnósticas, como na formulação dessas teses.
Em essência, o agnosticismo emana de uma fonte profundamente racionalista, isto é, da atitude intelectual que considera a razão o único meio de conhecimento suficiente, e o único aplicável, pois só o conhecimento por ela proporcionado satisfaz as exigências requeridas para a construção de uma ciência rigorosa. E isso tanto no caso de doutrina que se mostre claramente racionalista -- é o que ocorre em relação a Kant --, como no caso de filosofias nas quais o racionalismo oculte-se sob a aparência de positivismo ou materialismo.

Como conseqüência, o agnosticismo circunscreve o conhecimento humano aos fenômenos materiais, e rejeita qualquer tipo de saber que se ocupe de seres espirituais, transcendentes ou não visíveis. Não nega -- nem afirma -- a possível existência destes, e sim deixa em suspenso o juízo, abstém-se de pronunciar-se sobre sua existência e realidade e atua de acordo com essa atitude. Nessa ordem de coisas, ainda que admita a possível existência de um ser supremo, ordenador do universo, sustenta que, científica e racionalmente, o homem não pode conhecer nada sobre a existência e a essência de tal ser. É isso que distingue o agnosticismo do ateísmo, pois este nega radicalmente a existência desse ser supremo.

Por outro lado, o agnosticismo se distingue também claramente do ceticismo, que, segundo a formulação clássica do grego Sexto Empírico (século III a.C.), não se limita a negar a possibilidade do conhecimento metafísico ou religioso, mas também a de tudo aquilo que vá além da experiência imediata. Assim, o ceticismo, pelo menos em seu grau extremo, não é compatível com a ciência positiva.

No século XX, “agnosticismo” tende a ser interpretado como um posicionamento diante das questões religiosas. Nesse sentido, costuma-se distinguir entre um agnosticismo em sentido estrito e outro “dogmático”: o primeiro sustentaria que é impossível demonstrar tanto a existência quanto a inexistência de Deus; o segundo se manifestaria em favor da primeira, mas negaria que se possa chegar a conhecer alguma coisa a respeito do modo de ser divino. Esta última via é a habitualmente defendida pelos pensadores que postulam um caminho místico ou irracional de abordagem do absoluto.

1.11. Gnosticismo

A progressiva divulgação no mundo romano, a partir do século I da era cristã, de doutrinas religiosas orientais -- dentre as quais o cristianismo não foi a primeira, e sim apenas mais uma -- e o apogeu de uma série de escolas filosóficas helenísticas de perfil acentuadamente místico, como o neopitagorismo e o neoplatonismo, estabeleceram o clima espiritual em que brotaram as concepções gnósticas.

A palavra gnose (do grego gnosis, “conhecimento”) emprega-se, ao se tratar do movimento filosófico e religioso a que deu nome, para designar o conhecimento adquirido não por aprendizagem ou observação empírica, mas por revelação divina. À gnose, privilégio dos iniciados, opõe-se a pistis, ou mera crença. Os eleitos que recebiam a gnose experimentavam uma iluminação que era regeneração e divinização, e conheciam simultaneamente sua verdadeira natureza e origem. Reconheciam-se em Deus, conheciam a Deus e apareciam diante de si mesmos como emanados de Deus e estranhos ao mundo. Assim, adquiriam a certeza definitiva de sua salvação para toda a eternidade.

Até a descoberta, no século XX, de diversas coleções de manuscritos, entre os quais os de Nag Hammadi, Egito, era comum considerar o gnosticismo como uma forma de heresia cristã inspirada na filosofia grega. Atualmente, tende-se a falar num conjunto de escolas que, em virtude de princípios comuns, formam o movimento gnóstico. As noções compartilhadas pelas diversas escolas gnósticas podem resumir-se em três grandes temas:

1)a miséria do homem, prisioneiro de seu corpo, pois o gnóstico considerava a alma procedente de uma realidade supramundana;
2)a dualidade cósmica, na qual o mundo visível, mau e tenebroso, teria sido criado por um demiurgo perverso -- elemento tipicamente neoplatônico -- oposto a outro Deus, bom mas desconhecido; 
3)o apocalipse gnóstico, em virtude do qual o mundo perverso seria substituído pelo reino divino. Os pneumáticos (conhecedores puros da gnose) ascenderiam até o pleroma, reino da luz e da perfeição, e o fogo latente oculto no cosmos se avivaria e consumiria toda a matéria.
3)
As escolas gnósticas empregaram diferentes métodos de especulação. A maior parte dos estudiosos tende a considerar a existência de uma gnose não cristã, que englobaria movimentos como o hermetismo e o maniqueísmo, e de uma gnose cristã, herética. Esta última, formulada no século II por Basilides e Valentim, afirmava a realidade de um Deus transcendente e desconhecido, enquanto identificava o demiurgo criador do mundo físico com o Iavé bíblico. Os ataques a essa tese por parte de teólogos cristãos dos séculos II e III, como Hipólito e santo Irineu, fizeram com que o gnosticismo tenha sido considerado um desvio do cristianismo.

Por fim, alguns autores opinam que as teses enunciadas por Orígenes de Alexandria (séculos II-III), segundo as quais o objetivo da encarnação e morte de Jesus teria sido trazer o conhecimento ao homem enganado por seus sentidos, constituíram na realidade uma tentativa de assimilar a gnose à ortodoxia cristã.


1.12. Neoplatonismo

Mais que simples retomada das idéias de Platão -- que sustentava existirem dois mundos: o visível, objeto dos sentidos, e o das idéias, objeto da inteligência -- e ao contrário do que o nome pode sugerir, o neoplatonismo foi uma verdadeira refundação da metafísica clássica.

Última grande corrente filosófica da Grécia antiga, o neoplatonismo é a doutrina que se definiu no século III da era cristã e predominou na filosofia pagã do período tardio da antigüidade, até o ano 529. Na época, três correntes ideológicas disputavam a primazia: o cristianismo, em ascensão; as religiões politeístas do paganismo; e as correntes filosóficas gregas e, em particular, o estoicismo.

O grande expoente do neoplatonismo foi Plotino, que elaborou a teoria da emanação ou panteísmo neoplatônico, segundo a qual o ser divino e o mundo são, em última análise, idênticos. Para Plotino, o mundo não foi produzido do nada, mas emanou do próprio Uno, Divindade e Bem Supremo do qual procedem por emanação todas as coisas.

Do Uno deriva, primeiramente, o nous ou espírito, explicação de todas as coisas ao nível ideal e que eqüivale claramente ao mundo das idéias platônico. Do nous emana a alma, nome genérico que abrange três níveis distintos e hierarquizados: a alma suprema, que permanece em estreita união com o nous; a alma do todo, criadora do universo físico; e as almas particulares, que animam os corpos, os astros e todos os seres vivos.

O mais inferior grau da emanação divina é a matéria, ou o mundo perceptível pelos sentidos. Plotino afirma que, ao chegar a esse nível extremo, a potência do Uno está enfraquecida a ponto de exaurir-se. A matéria sofre, pois, a privação do Bem Supremo e pode-se-lhe chamar de mal -- não uma força negativa autônoma que se opõe ao bem, mas a ausência do bem.

Se der atenção apenas a seu corpo, o homem -- alma (preexistente) que habita um corpo -- se vincula ao mal e esquece suas origens. A alma precisa despojar-se da ilusão da matéria, e só o consegue por meio do êxtase místico, no qual é exaltada e preenchida pelo Uno. Esse êxtase não é um dom gratuito de Deus, mas fruto do esforço do homem para unir-se à Divindade.

Amônio Sacas, fundador da escola de Alexandria (em torno do ano 200), foi o mestre com quem Plotino estudou por 11 anos (de 232 a 243) e de quem recebeu influência decisiva. Em 244, Plotino mudou-se para Roma e fundou sua própria escola. Após ensinar por dez anos, escreveu 54 tratados, posteriormente dispostos em seis grupos de nove por seu discípulo Porfírio, que deu à obra o título de Enéadas.

Outras escolas neoplatônicas se formaram, como a da Síria, fundada por Jâmblico, pouco depois do ano 300; a de Pérgamo, fundada por Edésio, discípulo de Jâmblico; a de Atenas, iniciada por Plutarco entre os séculos IV e V, que teve em Proclo seu representante mais insigne. Com o célebre edito de 529, Justiniano proibiu o funcionamento das escolas filosóficas de Atenas. O neoplatonismo persistiu ainda na segunda escola de Alexandria, que renascera na mesma época da fundação da escola de Atenas e sobreviveu até princípios do século VII.

1.13. Estoicismo

A necessidade de um guia moral na época de transição da Grécia clássica para a helênica explica por que o estoicismo ganhou rapidamente adeptos no mundo antigo e também porque renasceu todas as vezes em que os valores de uma sociedade entraram em crise profunda.

O estoicismo foi criado pelo cipriota Zenão de Cício por volta do ano 300 a.C. O termo tem origem em Stoà poikilé, espécie de pórtico adornado com quadros de várias cores, onde Zenão se reunia com seus discípulos. Cleantes e Crisipo, entre os discípulos oriundos da Anatólia, tiveram papel relevante na escola estóica.

Os estóicos se vangloriavam da coerência de seu sistema filosófico. Afirmavam que o universo pode ser reduzido a uma explicação racional e que ele próprio é uma estrutura racionalmente organizada. A capacidade do homem de pensar, projetar e falar (logos) está plenamente incorporada ao universo. A natureza cósmica -- ou Deus, pois os termos são sinônimos para o estoicismo -- e o homem se relacionam um com o outro, intimamente, como agentes racionais. O homem pode alcançar a sabedoria se harmonizar sua racionalidade com a natureza. Lógica e filosofia natural estão, portanto, em íntima e essencial relação. Na história do estoicismo, apontam-se três períodos básicos: antigo, helenístico-romano e imperial romano.

1.14. Período antigo

A doutrina ética, como forma de ajudar o indivíduo a aceitar a adversidade, representou o principal apelo do estoicismo nesse período. O homem deve viver de acordo com a razão e ser indiferente a desejos e paixões. A verdadeira felicidade não está no sucesso material, mas na busca da virtude. Alegrias e infortúnios devem ser igualmente aceitos, porque seguem o ritmo natural do universo. Os mais importantes filósofos desse período são Zenão, Cleantes e Crisipo.
1.15. Período helenístico-romano

Com assimilação de elementos ecléticos e adaptações adequadas, o estoicismo adquiriu uma nova função, como sistema ético sobre o qual a república romana pretendia assentar-se. Destacaram-se no período Panécio de Rodes, Posidônio de Apaméia e Cícero. O homem político, segundo Cícero, só atinge a virtude suprema se sua atuação estiver voltada para o bem de seu povo.

1.15.1. Período imperial romano

O império oferecia a pax romana, mas, ao mesmo tempo, o fastio e a dissolução dos princípios morais da sociedade. Musônio Rufo, Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio criaram os alicerces teóricos que deveriam dignificar o poder imperial. Alguns preceitos de sua poderosa doutrina moral foram adotados pela igreja cristã.

1.16. Dualismo

Coube a René Descartes estabelecer a doutrina dualista no campo da filosofia, e foi Christian von Wolff quem primeiro utilizou o conceito em sua concepção moderna.

Dualismo é o sistema filosófico ou doutrina que admite, como explicação primeira do mundo e da vida, a existência de dois princípios, de duas substâncias ou duas realidades irredutíveis entre si, inconciliáveis, incapazes de síntese final ou de recíproca subordinação. Na acepção filosófica moderna, refere-se à dualidade de corpo e espírito como entidades inconfundíveis e irredutíveis, em oposição ao monismo.

No sentido religioso e ético, são classificadas como dualistas as religiões ou doutrinas que admitem uma divindade criadora positiva, princípio de todo bem, e outra, que se lhe opõe, destruidora, negativa, princípio do mal, sempre em luta com o bem. Incluem-se aí o masdeísmo, os escritos morais de Plutarco (45-127), o gnosticismo e o maniqueísmo. Ainda em sentido religioso, e metafísico, é dualista a filosofia pitagórica, com suas dicotomias entre o perfeito e o imperfeito, o limitado e o ilimitado, o masculino e o feminino etc., como elementos de explicação da criação do mundo e de seu movimento.

Na teoria do conhecimento, são dualistas as doutrinas que distinguem, como irredutíveis, o sujeito e o objeto (como no kantismo), a consciência e o ser, o eu e o não-eu, como realidades irredutíveis. Do ponto de vista ético, são dualistas as teorias que distinguem como inconciliáveis o bem e o mal, a liberdade e a necessidade, o dever e a inclinação, como acontece com o estoicismo e com a moral kantiana.

A oposição entre dualismo e monismo não pode ser tomada como marco definitivo e radical nas concepções filosóficas. Não só há os sistemas ecléticos, e os que admitem mais de dois princípios, como ainda os que superam a oposição, sem lhe reconhecer a irredutibilidade radical.

1.17. Monismo

O termo monismo, que significa literalmente doutrina da unidade, foi cunhado no século XVIII pelo pensador alemão Christian Wolff e, posteriormente, vulgarizado por Ernst Haeckel e Wilhelm Ostwald.

Monismo é a teoria filosófica que toma como base de todo ser uma única substância ou uma única espécie de substância. Opõe-se ao dualismo e ao pluralismo, pois reduz as relações a um princípio fundamental, único ou unitário, que tudo explica e contém.

Encontram-se concepções monistas na filosofia hindu, no pensamento chinês e na filosofia grega, desde a pré-socrática até a pós-clássica. A nota comum entre todos os sistemas monistas é a redução de todas as coisas e princípios à unidade, quer quanto à substância (monismo ontológico, metafísico ou religioso), quer quanto às leis lógicas ou físicas (monismo lógico ou gnosiológico), ou quanto às bases do comportamento moral (monismo ético).

Para o hilozoísmo grego, toda matéria é viva, ou em si mesma ou porque participa da alma do mundo. Compartilham essa concepção Tales de Mileto, Anaximandro, Heráclito, Parmênides, Demócrito, Epicuro e Lucrécio. O hilozoísmo se manifesta ainda na física dos estóicos, para quem o pneuma, composto de ar (substância fria) e fogo (substância quente), é o princípio de todas as coisas.

Depois do Renascimento, o monismo ontológico ou religioso encontrou um de seus maiores pensadores no italiano Giordano Bruno, para quem Deus, suprema unidade de todas as coisas, se confunde com a natureza, de que é vida, força e matéria. Outro monista foi o holandês Baruch de Spinoza, defensor da idéia segundo a qual espírito e corpo são atributos da substância divina, sendo Deus e a natureza a mesma coisa. A monadologia de Leibniz representa um monismo espiritualista, também cabível a Berkeley e a Rudolf Hermann Lotze. No monismo materialista, em oposição, incluem-se Thomas Hobbes, John Toland, Dietrich Holbach, Pierre Maupertuis e Diderot, também hilozoístas. Na passagem para o século XIX, Herder e Goethe representaram um monismo panteísta, como o de Bruno e Spinoza.

Com Haeckel, o monismo como sistema filosófico materialista prevaleceu sobre as tendências idealistas no pensamento contemporâneo. No Brasil, a difusão das idéias de Haeckel se deu por meio da chamada escola de Recife, com Tobias Barreto e seus discípulos. Dentro do monismo naturalista, à maneira de Haeckel, inclui-se ainda a doutrina de Ostwald, para quem a única e última realidade é a energia.

1.18. Escolásticismo

Com a Idade Média e as invasões bárbaras, a filosofia cristã centrou-se no ensino e na manutenção do legado clássico nas escolas monacais. A cultura, representada especialmente pelos livros, refugiou-se nos mosteiros e conventos, motivo pelo qual costuma-se dizer que a igreja, sobretudo pela ação de seus monges copistas, salvou a cultura e acabou por absorver os bárbaros da mesma maneira que Roma absorvera culturalmente a Grécia.

Entende-se em geral por escolástica o ensino teológico-filosófico da doutrina aristotélico-tomista ministrado nas escolas de conventos e catedrais e também nas universidades européias da Idade Média e do Renascimento. Como sistema filosófico e teológico, a escolástica tentou resolver, a partir do dogma religioso e mediante um método especulativo, problemas como a relação entre fé e razão, desejo e pensamento; a oposição entre realismo e nominalismo; e a probabilidade da existência de Deus.

A noção de filosofia cristã, embora constantemente empregada, a rigor representa uma contradição em termos, pois o cristianismo é religião e a filosofia é conhecimento racional. Historicamente, porém, a escolástica consiste nesse paradoxo de uma filosofia que é, ao mesmo tempo, racional e religiosa, motivo pelo qual seu problema mais grave é o das relações entre a razão e a fé. Que liberdade terá a razão, se o dogma limita a priori seus movimentos? Há, entretanto, um conteúdo filosófico na obra dos doutores da igreja e dos escolásticos levado em conta na história da filosofia. Esse conteúdo encontra sua última justificativa na doutrina da igreja. O pensamento devia demonstrar que a igreja, por seu método próprio, já havia estabelecido a Verdade.

Surgindo em um mundo cristão, seus pressupostos eram as crenças básicas em que o mundo então se fundamentava, radicalmente distintas das que configuravam o mundo antigo, greco-romano. Os problemas que se apresentavam à filosofia eram suscitados pela Revelação. A idéia de Deus, uno e trino ao mesmo tempo, da criação do mundo a partir do nada, da imortalidade pessoal, do homem à imagem e semelhança de Deus, a noção de história, implícita no relato bíblico, criação, pecado original, redenção e juízo final são idéias religiosas que provocavam especulação tipicamente metafísica ou filosófica.
1.19. Filosofia cristã
A filosofia dita cristã compreende a escolástica mas não se confunde com ela e apresenta três fases: a patrística; a medieval, que é escolástica; e a escolástica pós-medieval. A patrística é a filosofia dos primeiros doutores da igreja, que, em luta com o paganismo e as heresias, se utilizaram da filosofia grega, especialmente do platonismo e do neoplatonismo, na formulação, elucidação e defesa do dogma. No mundo moderno romano, até a conversão de Constantino, no século IV, os cristãos representavam a oposição, com a negação do status quo, do politeísmo tradicional e da escravidão. Perseguidos e martirizados, eram compelidos, no trabalho de catequese, a fazer do pensamento uma arma de defesa e propagação da fé. Embora contenha elementos filosóficos, a patrística é essencialmente apologética, sendo a primeira reflexão sobre o dogma em um mundo ainda não cristão.

Na Idade Média, a situação histórica se alterou radicalmente, pois o mundo no qual pensavam os cristãos era um mundo cristão, quer dizer, determinado pelo cristianismo na totalidade de suas manifestações. Havia uma crença vigente, ponto de referência para o pensamento e critério da verdade. As divergências ocorriam num mesmo contexto espiritual e não punham em dúvida o fundamento desse mundo, o conteúdo da revelação, o dogma. As exigências que se apresentavam aos filósofos cristãos já não eram as mesmas, pois o pressuposto de que partiam não era o paganismo, mas o próprio cristianismo. Tratava-se então de pensar em um mundo convertido, configurado em função das crenças e dos valores cristãos. A filosofia pôde, assim, deixar de ser apologética, para tornar-se docente, magistral ou escolástica.

1.20. Ensino cristão

Após o longo interregno que se seguiu à morte de santo Agostinho, no ano 430, o chamado renascimento carolíngio assinalou o advento de nova época na história do pensamento cristão. As capitulares do ano 787 recomendavam, em todo o império, a restauração das antigas escolas e a fundação de novas. As que então se inauguraram podiam ser monacais, junto aos mosteiros, interiores para religiosos, exteriores para leigos; as catedrais, junto à sede dos bispados, umas para clérigos e outras para seculares; e as palatinas, junto às cortes, religiosas, mas abertas a clérigos e leigos.

O programa de ensino compreendia as artes chamadas liberais, que se desdobravam em trivium (gramática, retórica e dialética) e quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música). A escola, assim como a corporação, era uma comunidade de trabalho, que funcionava em estreita colaboração com a igreja, o que lhe assegurava organização estável e continuidade de pensamento. A escolástica tornou-se, assim, um patrimônio comum, um saber tradicional, que se transmitia e enriquecia de geração em geração.
O ensino era, em geral, ministrado na forma de leitura, lectio, e comentário dos textos. Além das Sagradas Escrituras, entre os livros mais estudados estavam o Organon, de Aristóteles, traduzido em parte, o Timeu, de Platão, os comentários de Porfírio e Boécio às obras desses filósofos, as obras de Cícero e de Sêneca; e os textos dos Pais: Orígenes, Clemente de Alexandria, santo Ambrósio, Pedro Lombardo e, de modo especial, santo Agostinho, que, até o século XIII, dominou o pensamento medieval. À simples leitura comentada dos textos, acrescentou-se, com o tempo, a discussão, questio, e a elaboração de trabalhos e composições pessoais.

Tal modalidade de prática docente suscitou diversos gêneros literários, característicos da escolástica: os commentaria (comentários), exegese dos textos; as quaestiones (questões), que incluíam as quaestiones disputatae (questões discutidas) e as quaestiones quodlibetales (questões abertas), compilação de debates, registrando os argumentos apresentados e as soluções encontradas; os trabalhos individuais, dissertações e monografias, opuscula (opúsculos); e finalmente, as grandes sínteses, que procuravam sistematizar a totalidade do saber, as summae (sumas), teológicas e filosóficas, entre as quais devem ser mencionadas, por sua excepcional importância, a Summa Theologica e a Summa contra gentiles (Suma contra os pagãos), de santo Tomás de Aquino.

1.21. Evolução histórica

Às etapas da evolução da filosofia no interior do cristianismo correspondem, historicamente, as fases: de formação, do século IX ao XII; de apogeu, no século XIII; e decadência, do século XIV ao XVII, da filosofia escolástica. Da submissão à fé, representada esta pela igreja, instância heterônoma em face da razão e da posição de compromisso, a filosofia evoluiu, acompanhando a desintegração do feudalismo e o advento do mundo burguês, até alcançar, com Descartes e o idealismo alemão, sua plena autonomia.

A história da escolástica apresenta-se, assim, como a história da razão humana em determinado momento de sua evolução, exprimindo inicialmente a alienação, na sujeição ao dogma; em seguida, a consciência da alienação, na doutrina das duas verdades; e finalmente a negação da alienação (da negação), na ruptura definitiva entre razão e fé, e na afirmação de que o real, em sua totalidade, natureza e história, é racional.


A decadência da escolástica, a partir do século XIII, exacerbou seus caracteres formais. Desde que, com Guilherme de Ockham, as verdades da fé são consideradas inacessíveis à razão, a filosofia, que procura compreender e explicar essas verdades, converteu-se numa discussão de textos e temas que perderam vigência histórica. O ensino fez emprego abusivo do silogismo, no verbalismo das fórmulas abstratas. A complacência no debate e o dogmatismo levaram a que a palavra escolástica passasse a ter conotação pejorativa.

1.22. Tomismo

O pensamento aristotélico, que se tornou conhecido no Ocidente no século XIII em traduções do árabe, serviu de fundamento ao pensamento racionalista e ameaçou a concepção cristã da realidade, tradicionalmente apoiada no platonismo. A filosofia de santo Tomás de Aquino compatibilizou o pensamento lógico e racional com a fé cristã. No Concílio de Trento, a doutrina tomista ocupou lugar de honra e, a partir do papa Leão XIII, foi tomada como pensamento oficial da Igreja Católica.

Tomismo é a doutrina filosófico-cristã elaborada no século XIII pelo dominicano Tomás de Aquino, estudioso dos então polêmicos textos do filósofo grego Aristóteles, recém-chegados ao Ocidente. Tomás de Aquino dedicou-se ao esclarecimento das relações entre a verdade revelada e a filosofia, isto é, entre a fé e a razão. Segundo sua interpretação, tais conceitos não se chocam nem se confundem, mas são distintos e harmônicos. A teologia é a ciência suprema, fundada na revelação divina, e a filosofia, sua auxiliar. À filosofia cabe demonstrar a existência e a natureza de Deus, de acordo com a razão. Só pode haver conflito entre filosofia e teologia caso a primeira, num uso incorreto da razão, se proponha explicar o mistério do dogma religioso sem auxílio da fé.
O pensamento de Tomás de Aquino foi alvo de muita polêmica e violentas críticas dos teólogos de seu tempo, que o consideravam “excessivamente filosófico”. No entanto, o racionalismo da doutrina foi justamente o traço que fez com que ela promovesse a sobrevivência do cristianismo nos tempos em que o pensamento filosófico passou a ser o saber dominante. As grandes transformações contemporâneas de Tomás de Aquino -- o surgimento do racionalismo, apoiado no pensamento aristotélico; o progresso tecnológico e a conseqüente transformação da estrutura social agrária em urbana; a nova organização comunitária, surgida nas cidades, vinculada à economia de mercado e às guildas de artesãos; a mudança de mentalidade, que levava as novas gerações a pretender controlar as forças naturais com o uso da razão -- devem ser levadas em conta para compreender as condições que propiciaram o surgimento do tomismo.

1.23. Doutrina tomista

Segundo a doutrina neoplatônica de santo Agostinho, que dominou o pensamento cristão nos primeiros 12 séculos da era cristã, a alma é superior ao corpo, pois pode transcender a realidade imediata, percebida pelos sentidos, e alcançar as verdades universais. Essa capacidade demonstra o caráter extra-humano da alma -- que não poderia originar-se no homem ou no mundo exterior, ambos imperfeitos -- e atesta a existência de Deus. O conhecimento é decorrente da iluminação divina e só pode ser adquirido pela interiorização contemplativa: o mundo sensorial é mera aparência.

Tomás de Aquino, ao contrário, não partiu de Deus para explicar o mundo mas, sobre a experiência sensorial, empregou o conhecimento racional para demonstrar a existência do Criador. A partir da máxima aristotélica segundo a qual “nada está na inteligência sem antes ter estado nos sentidos”, formulou as famosas “cinco vias”, cinco argumentos que provariam a existência de Deus a partir dos efeitos por ele produzidos, e não da idéia -- no sentido platônico -- de Deus.

Ao atribuir à matéria conceitos positivos, relacionados ao grau de perfeição inerente às criaturas divinas, o tomismo alterou o equilíbrio de forças entre corpo e alma, admitindo ambos como princípios igualmente necessários da natureza humana. O homem situa-se no universo entre os anjos e os animais. Os anjos seriam substâncias espirituais e puras, isentas de matéria. Nesse sentido, a alma humana também seria pura, ou seja, apesar de unida ao corpo, independeria da matéria enquanto ser.

1.23.1. Provas da existência de Deus

Os cinco argumentos que para Tomás de Aquino demonstram a existência de Deus são:

O “primeiro motor imóvel”: o movimento existe, é evidente aos nossos sentidos. Ora, tudo aquilo que se move é movido por outra força, ou motor. Não é lógico que haja um motor, outro e outro, e assim indefinidamente; há de haver uma origem primeira do fenômeno do movimento, um motor que move sem ser movido, que seria Deus.

A “causa primeira”: toda causa é efeito de outra, mas é necessário que haja uma primeira, causa não causada, que seria Deus.

O “ser necessário”: todos os seres são finitos e contingentes (“são e deixam de ser”). Se tudo fosse assim, todos os seres deixariam de ser e, em determinado momento, nada existiria. Isto é absurdo; logo, a existência dos seres contingentes implica o ser necessário, ou Deus.
O “ser perfeitíssimo”: os seres finitos realizam todos determinados graus de perfeição, mas nenhum é a perfeição absoluta; logo, há um ser sumamente perfeito, causa de todas as perfeições, que seria Deus.

A “inteligência ordenadora”: todos os seres tendem para uma finalidade, não em virtude do acaso, mas segundo uma inteligência que os dirige. Logo, há um ser inteligente que ordena a natureza e a encaminha para seu fim; esse ser inteligente seria Deus.
1.24. Aspectos gerais do tomismo

A originalidade do pensamento de Tomás de Aquino evidencia-se em sua concepção de existência, vista como ato supremo e como a perfeição de estar em Deus e, ao mesmo tempo, entre as coisas criadas; na atribuição do ato criativo unicamente a Deus; na negação da existência de matéria nos seres angelicais e, conseqüentemente, na distinção entre Deus e as criaturas, definidas como uma composição de existência e essência. Todas as criaturas teriam o amor a Deus como tendência natural.
Na visão de Tomás de Aquino, o teólogo aceita a autoridade e a fé como pontos de partida e procede então a conclusões mediante o uso da razão. O filósofo é aquele que se atém à razão. Pela primeira vez, a teologia foi expressamente definida dessa maneira, o que ocasionou um sem-número de oposições, algumas das quais perduram ainda, sobretudo entre religiosos para os quais a razão é sempre vista como intrusa em questões de fé.

Embora afirmasse ao mesmo tempo a crença num Deus criador e a ordem imanente da natureza, Tomás de Aquino não considerava o mundo como mera sombra do sobrenatural. Para ele, a natureza criada é regida por leis necessárias -- o que autoriza a construção de uma ciência racional -- e, descoberta em sua realidade profana, acabaria por revelar seu valor religioso e levar até Deus por conclusões lógicas. A afirmação de um valor religioso imanente ao mundo natural era um dos pontos que escandalizava os agostinianos, para quem a natureza, feita em pedaços pelo pecado, dependia do poder e da graça divinas para se redimir.

Assim como Aristóteles, Tomás de Aquino sustentava que conhecer não é lembrar-se, como pretendia Platão, mas extrair, por meio de um intelecto agente, a forma universal que se acha contida nos objetos sensíveis e particulares. O conhecimento parte dos sentidos e chega ao inteligível pela abstração intelectual.

Segundo a concepção tomista de um processo contínuo de criação, a ordem do mundo manifesta a onipresente providência divina, da qual as criaturas são eternamente dependentes. Tal providência age de forma criativa e permite que cada criatura siga sua natureza intrínseca, o que se expressa no homem, ser racional, em sua forma máxima. Dependente da providência divina mas livre para seguir sua natureza, o homem, ao manter-se próximo a Deus, realiza mais plenamente sua liberdade, pois “afastar algo do estado de perfeição da criatura é afastá-lo da própria perfeição do poder criador”. A graça sobrenatural eleva e torna perfeitas as habilidades naturais do ser.

Evolução do tomismo até o século XIX. O complexo e coerente corpo doutrinário tomista foi criticamente analisado e desenvolvido durante os séculos subseqüentes. A condenação de diversas teses tomistas pela Inquisição, em 1277, levou a uma febril produção, sobretudo pelos dominicanos durante o século XIII, de comentários “corretivos” à obra de Tomás de Aquino. A adoção oficial da doutrina tomista pela ordem dominicana, assim como a canonização de seu autor em 1323 e o destaque conferido à obra pelo Concílio de Trento, encorajaram um retorno aos textos originais. O francês Jean Capréolus, chamado o “príncipe dos tomistas”, empreendeu os primeiros estudos sistemáticos da obra de santo Tomás de Aquino, trabalho que seria continuado, já no início do século~XVI, pelo italiano Tomaso de Vio, ou cardeal Cajetano.

No Renascimento, predominou a tendência a dar tratamento em separado a questões filosóficas e teológicas. A nova abordagem está presente na obra do dominicano português frei João de Santo Tomás, que publicou um Cursus philosophicus (Curso filosófico) e um Cursus theologicus (Curso teológico) segundo o ponto de vista tomista. Embora continuasse a merecer destaque entre os teólogos, o tomismo, assim como o pensamento cristão em geral, experimentou certo declínio durante o auge do racionalismo e do empirismo, representados por Descartes, Locke e Wolff.

As revoluções européias de 1848 tiveram influência preponderante, tanto junto à Santa Sé como à Sociedade de Jesus, para a recuperação de princípios ortodoxos quanto a Deus, o homem e a sociedade, o que trouxe novo apogeu aos textos de santo Tomás de Aquino. A partir da encíclica Aeterni patris, publicada em 1879 pelo papa Leão XIII, que enfatizava a importância da ortodoxia com especial destaque para os textos de santo Tomás de Aquino, o tomismo foi reconhecido como doutrina oficial da Igreja Católica.

1.25. Humanismo

Como primeira tentativa coerente de elaborar uma concepção do mundo cujo centro fosse o próprio homem, pode-se considerar o humanismo a origem de todo o pensamento moderno.


Conhece-se por humanismo o movimento intelectual que germinou durante o século XIV, no final da Idade Média, e alcançou plena maturidade no Renascimento, orientado no sentido de reviver os modelos artísticos da antigüidade clássica, tidos como exemplos de afirmação da independência do espírito humano.

Nos últimos séculos da Idade Média, sobretudo nas cidades da Itália, ocorrera um notável crescimento da burguesia urbana. Os nobres e burgueses enriquecidos adquiriram condições de dar à cultura um apoio antes exclusivo da igreja e dos grandes soberanos. A necessidade de conhecimentos que habilitassem os burgueses a gerir e multiplicar suas fortunas também os impelia na direção da cultura. Juntaram-se portanto duas linhas com um mesmo fim: maior valorização da cultura e necessidade de uma educação mais prática do que a teologia medieval podia oferecer.

Retornou-se assim à fonte do saber, a antigüidade greco-romana, despojada dos acréscimos teológicos medievais, e adaptaram-se seus ensinamentos à nova época. O programa de estudos, orientado para facilitar conhecimentos profissionais e atitudes mundanas, compreendia a leitura de autores antigos e o estudo da gramática, da retórica, da história e da filosofia moral. A partir do século XV deu-se a esses cursos o nome de studia humanitatis ou “humanidades”, e os que os ministravam ficaram conhecidos como humanistas. No Renascimento, o humanismo representou também uma ideologia que, sem deixar de aceitar a existência de Deus, partilhava muitas das atitudes intelectuais e existenciais do mundo antigo, integradas com as contínuas descobertas sobre a natureza e as novas condições de vida geradas pelo auge do comércio e da burguesia mercantil. Os mestres deram as costas à idealização medieval da pobreza, do celibato e da solidão, e em seu lugar destacaram a vida familiar e o uso judicioso da riqueza.

1.25.1. Gênese do humanismo italiano

Enquanto reflexão sobre o homem, o humanismo sempre existiu. Como movimento cultural coerente e programático, ocorreu num lugar e numa época histórica determinados: as cidades-estado italianas do século XV, de onde logo se estenderia por toda a Europa. Esse movimento, iniciado já no século XIV por autores como Petrarca e Boccaccio, defendia a capacidade do homem de pensar por si mesmo, sem entraves nem tutelas, e admitir diferentes soluções para qualquer problema, entre eles os filosóficos, ainda quando tivessem caráter “pagão”. Assim, frente ao pensamento teocêntrico medieval, a religiosidade humanista quis chegar a Deus por meio do exercício da razão.

Produziu-se, além disso, uma inversão de valores fundamental, que logo seria denominada “giro copernicano”, em alusão ao sistema heliocêntrico desenvolvido por Nicolau Copérnico. Inicialmente era o celeste que dava sentido ao terrestre; para os humanistas, ao contrário, seria o terrestre que daria sentido -- um sentido novo e reprovável, na visão da ortodoxia oficial -- ao celeste. Na Terra seria o homem, destronado do centro do universo junto com seu planeta, que mediria o celeste; e o faria segundo sua própria proporção. Isso ficou muito patente na arte renascentista (Leone Battista Alberti, Leonardo da Vinci). O corpo humano passou a ser a unidade com que se comparavam as coisas naturais, e assim se tornou certa a máxima do sofista grego Protágoras: “O homem é a medida de todas as coisas.”

O humanismo atacou vigorosamente a divisão aristotélica estática entre mundo lunar e mundo sublunar, que subordinava o homem. Aristóteles, pelo menos na interpretação que dele fizera a escolástica medieval, foi o grande perdedor na renovação clássica realizada pelo humanismo, já que surgiram escolas neo-aristotélicas que tentaram reelaborar seu pensamento. Galileu, uma das grandes figuras do Renascimento, deu combate sem trégua a Aristóteles por sua ignorância em matemática e sua incapacidade para compreendê-la. Em oposição a ele glorificou-se Platão, que em seu sistema idealista dera à matemática um lugar destacado, e exaltou-se a concepção neoplatônica do universo como um todo harmônico em que o homem constitui o traço de união entre Deus e o mundo sensível. Não só renascia a filosofia de Platão, mas toda a física -- Demócrito, Epicuro, Lucrécio -- que os intérpretes de Aristóteles haviam considerado ultrapassada. A revalorização desses filósofos contribuiu para evidenciar que a teoria de Aristóteles não constituía a única hipótese da realidade e que seus livros não eram “a física”, mas uma física entre outras. A discussão científica pôde prosseguir, não nos limites da obra aristotélica, mas à margem dela. E nesse sentido, a tarefa dos humanistas revelou-se decisiva.

A ruptura com o mito de um livro humano depositário privilegiado da “verdade” deu também lugar ao desenvolvimento das disciplinas que se ocupavam do Homo faber, construtor de seu mundo e de sua felicidade, que encarava a ética como norma para construir a si mesmo, a economia como instrumento para administrar seus bens e a política como a arte de gerir sua cidade-estado. Esse novo enfoque reativou a discussão sobre as artes e as técnicas. Vivendo entre pintores, arquitetos e engenheiros, os pensadores humanistas abriram caminho para uma revisão fundamental das relações entre o plano prático e o teórico.

Chegou-se, em suma, a uma concepção integradora do saber humano, que espelhava a harmonia do mundo. Assim, Leonardo da Vinci, que afirmou que “nenhuma pesquisa humana pode denominar-se ciência verdadeira se não passa pelas demonstrações matemáticas”, não hesitou em considerar que a pintura era “ciência e filha legítima da natureza, porque esta natureza a gerara”. A exaltação do homem foi característica comum a todos os humanistas italianos. Para Marsilio Ficino, o homem era vicário de Deus, imagem de Deus, nascida para reger o mundo, e podia pretender todas as coisas. Pico della Mirandola, com expressão dramática, pôs na boca de Deus a seguinte imprecação: “Tu, que não estás sujeito a nenhum limite, determinarás por ti mesmo tua própria natureza, segundo tua livre vontade.”

1.25.2. Traços básicos do programa humanista

Pode-se sintetizar o programa humanista em três pontos fundamentais:

1) o objetivo básico do conhecimento é o homem e o significado da vida, e em função dele devem-se estabelecer as questões cosmológicas;
2) nenhum filósofo detém o monopólio da verdade;
3) e existe uma afinidade entre a cultura clássica pagã e o cristianismo, já que o ensinamento sobre o homem, a vida e a virtude ministrado pelos autores clássicos pode ser integrado ao cristianismo.

Nem todos os humanistas, no entanto, acataram a doutrina cristã. O italiano Giordano Bruno, queimado pela Inquisição, negou o cristianismo que separava Deus do mundo e refutou toda espécie de hierarquia ontológica e cosmológica, pois para ele o universo constituía um único nível de ser. Outro pensador italiano, Pietro Pomponazzi, não hesitou em refutar a imortalidade da alma individual.

Enquanto na Itália o humanismo foi antes de tudo artístico e filosófico, no centro e norte da Europa apresentou um matiz religioso muito acentuado. Seu principal representante, o holandês Erasmo de Rotterdam, uniu a sua devoção pela antigüidade uma dura crítica à escolástica e a formulação de uma reforma da espiritualidade cristã. Destacados humanistas não italianos, além dos citados, foram os franceses Jacques Lefèvre d'Étaples e François Rabelais e os ingleses Thomas More e Francis Bacon.

1.25.3. Agonia do humanismo

Com o tempo o humanismo degenerou num culto puramente lingüístico e formal da antigüidade, voltado para uma erudição que carecia de vitalidade criadora. Desde meados do século XVI, se tornara pedante e livresco. As teses do reformador Martinho Lutero, com ênfase na especificidade do cristão em oposição à cultura pagã, bem como o retorno à ortodoxia estrita encarnada pelos teólogos contra-reformistas, representaram um golpe de misericórdia para o humanismo.

As guerras que assolaram a Europa após a Reforma contribuíram igualmente para quebrantar os ideais humanistas de harmonia natural e social. Contudo, a noção de racionalidade e a nova visão do mundo difundidas pelo humanismo sobreviveram nos pensadores racionalistas e empiristas e formaram a base do pensamento iluminista.

1.26. Racionalismo

O desenvolvimento do método matemático, considerado como instrumento puramente teórico e dedutivo, que prescinde de dados empíricos, e sua aplicação às ciências físicas conduziram, no século XVII, a uma crescente fé na capacidade do intelecto humano para isolar a essência no real e ao surgimento de uma série de sistemas metafísicos fundados na convicção de que a razão constitui o instrumento fundamental para a compreensão do mundo, cuja ordem interna, aliás, teria um caráter racional. Essa era a idéia central comum ao conjunto de doutrinas conhecidas tradicionalmente como racionalismo, e cuja primeira manifestação aparece na obra de René Descartes.

O termo racionalismo pode aludir a diferentes posições filosóficas. Primeiro, a que sustenta a primazia, ou o primado da razão, da capacidade de pensar, de raciocinar, em relação ao sentimento e à vontade. Tal forma ou modalidade de racionalismo seria mais propriamente chamada intelectualismo, pressupondo uma hirarquia de valores entre as faculdades psíquicas. Em segundo lugar, racionalismo significa a posição segundo a qual só a razão é capaz de propiciar o conhecimento adequado do real. Por fim, o racionalismo ontológico ou metafísico consiste em considerar a razão como essência do real, tanto natural quanto histórico.

Respectivamente, essas posições correspondem ao racionalismo psicológico, racionalismo gnoseológico ou epistemológico e racionalismo metafísico. Em comum, existe a convicção de que a razão constitui o instrumento fundamental para compreensão do mundo, cuja ordem interna seria também racional. O sentido filosófico de razão, todavia, não pode ser fixado apenas a partir da linguagem corrente. O termo grego que a designa desde o nascimento da filosofia grega, logos, indica, embora não deixe de se referir à noção de cálculo, o discurso coerente, compreensível e universalmente válido. Caracteriza, além do discurso, o que ele revela, os princípios daquilo que “é” verdadeiramente. Em contraposição, os sofistas defenderam um pensamento “desse mundo”, o da consciência comum.

1.26.1. Racionalismo psicológico

O intelectualismo sustenta que as duas faculdades especificamente humanas são a vontade e a inteligência ou razão. A inteligência é vista como a mais importante sob a alegação de que a vontade ou a capacidade de querer, de decidir, é faculdade cega, cujas operações dependem da inteligência que, por definição, é a capacidade de iluminar e de ver. As filosofias intelectualistas opõem-se às filosofias voluntaristas e sensualistas.

1.26.2. Racionalismo epistemológico

Posição filosófica que afirma a razão como única faculdade de propiciar o conhecimento adequado da realidade. A razão, por iluminar o real e perceber as conexões e relações que o constituem, é a capacidade de apreender ou de ver as coisas em suas articulações ou interdependência em que se encontram umas com as outras. Ao partir do pressuposto de que o pensamento coincide com o ser, a filosofia ocidental, desde suas origens, percebe que há concordância entre a estrutura da razão e a estrutura análoga do real, pois, caso houvesse total desacordo entre a razão e a realidade, o real seria incognoscível e nada se poderia dizer a respeito.

1.26.3. Racionalismo metafísico

O racionalismo gnosiológico ou epistemológico é inseparável do racionalismo ontológico ou metafísico, que enfoca a questão do ser, pois o ser está implicado no pensamento do ser. Declarar que o real tem esta ou aquela estrutura implica em admitir, por parte da razão, enquanto faculdade cognitiva do ser humano, a capacidade de apreender o real e de revelar a sua estrutura. O conhecimento, ao se distinguir da produção e da criação de objetos, implica a possibilidade de reproduzir o real no pensamento, sem alterá-lo ou modificá-lo.

1.26.4. Racionalismo clássico e tendências posteriores

Dois elementos marcariam o desenvolvimento da filosofia racionalista clássica no século XVII. De um lado, a confiança na capacidade do pensamento matemático, símbolo da autonomia da razão, para interpretar adequadamente o mundo; de outro, a necessidade de conferir ao conhecimento racional uma fundamentação metafísica que garantisse sua certeza. Ambas as questões conformaram a idéia basilar do Discours de la méthode (1637; Discurso sobre o método) de Descartes, texto central do racionalismo tanto metafísico quanto epistemológico.

Para Descartes, a realidade física coincide com o pensamento e pode ser traduzida por fórmulas e equações matemáticas. Descartes estava convicto também de que todo conhecimento procede de idéias inatas -- postas na mente por Deus -- que correspondem aos fundamentos racionais da realidade. A razão cartesiana, por julgar-se capaz de apreender a totalidade do real mediante “longas cadeias de razões”, é a razão lógico-matemática e não a razão vital e, muito menos, a razão histórica e dialética.


O racionalismo clássico ou metafísico, no entanto, cujos paradigmas seriam o citado Descartes, Spinoza e Leibniz, não se limitava a assinalar a primazia da razão como instrumento do saber, mas entendia a totalidade do real como estrutura racional criada por Deus, o qual era concebido como “grande geômetra do mundo”.
Spinoza é o mais radical dos cartesianos. Ao negar a diferença entre res cogitans -- substância pensante -- e res extensa -- objetos corpóreos -- e afirmar a existência de uma única substância estabeleceu um sistema metafísico aproximado do panteísmo. Reduziu as duas substâncias, res cogitans e res extensa, a uma só -- da qual o pensamento e a extensão seriam atributos.

Leibniz, o último grande sucessor de Descartes, baseou sua doutrina na “harmonia preestabelecida” da realidade por obra da vontade divina. Distinguiu as verdades de fato -- contingentes e particulares -- das verdades de razão -- necessárias e universais --, porém considerou as primeiras redutíveis às segundas. Desse modo, se conhecêssemos as coisas em seu conceito, como Deus as conhece, poder-se-ia prever os acontecimentos, uma vez que a estrutura do real é racional ou inteligível. Assim sendo, o método da ciência não poderia ser o da indução, mas a dedução.
Sob uma perspectiva contrária, os empiristas britânicos refutaram a existência das idéias inatas e postularam que a mente é uma tabula rasa ou página em branco, cujo material provém da experiência. A oposição tradicional entre racionalismo e empirismo, no entanto, está longe de ser absoluta, pois filósofos empiristas como John Locke e, com maior dose de ceticismo, David Hume, embora insistissem em que todo conhecimento deve provir de uma “sensação”, não negaram o papel da razão como organizadora dos dados dos sentidos. O próprio fato de haver toda esta controvérsia em torno da problemática suscitada por Descartes revela a importância crucial das teses racionalistas.

O racionalismo cartesiano e o empirismo inglês desembocaram no Iluminismo do século XVIII. A razão e a experiência de que resulta o conhecimento científico do mundo e da sociedade bem como a possibilidade de transformá-los são instâncias em nome das quais se passou a criticar todos os valores do mundo medieval.
A nova interpretação dada à teoria do conhecimento pelo filósofo alemão Immanuel Kant, ao desenvolver seu idealismo crítico, representou uma tentativa de superar a controvérsia entre as propostas racionalistas e empiristas extremas.


Entendido como posição filosófica que sustenta a racionalidade do mundo natural e do mundo humano, o racionalismo corresponde a uma exigência fundamental da ciência: discursos lógicos, verificáveis, que pretendem apreender e enunciar a racionalidade ou inteligibilidade do real. Ao postular a identidade do pensamento e do ser, o racionalismo sustenta que a razão é a unidade não só do pensamento consigo mesmo, mas a unidade do mundo e do espírito, o fundamento substancial tanto da consciência quanto do exterior e da natureza, pressuposto que assegura a possibilidade do conhecimento e da ação humana coerente. Para além de seus possíveis elementos dogmáticos, a filosofia racionalista, ao ressaltar o problema da fundamentação do conhecimento como base da especulação filosófica, marcou os rumos do pensamento ocidental.

1.27. Empirismo

Na história do pensamento, o racionalismo fundou-se sobre a crença na capacidade do intelecto humano para compreender a realidade. Incorreu, todavia, em excessos metafísicos que fizeram dele um sistema filosófico fechado. Diante disso, surgiria na Inglaterra o empirismo, segundo o qual nenhuma certeza é possível, nenhuma verdade é absoluta, já que não existem idéias inatas e o pensamento só existe como fruto da experiência sensível.

Empirismo é a doutrina que reconhece a experiência como única fonte válida de conhecimento, em oposição à crença racionalista, que se baseia, em grande medida, na razão. O empirismo deu início a uma nova e transcendental etapa na história da filosofia, tornando possível o surgimento da moderna metodologia científica. Do ponto de vista psicológico, identifica-se com “sensualismo” ou “sensismo”, pelo menos em seus representantes mais radicais. Comparado ao positivismo, designa principalmente o método, enquanto o positivismo designa a doutrina a que esse método conduz. Em termos estritamente gnosiológicos, o que o caracteriza e define é a afirmação de que a validade das proposições depende exclusivamente da experiência sensível. Na perspectiva metafísica, identifica-se o empirismo com a doutrina que nega qualquer outra espécie de realidade além da que se atinge pelos sentidos.

1.27.1. Caracterização

Nem sempre é fácil distinguir empirismo e ceticismo. Considerado o fato de que o empirismo não participa da dúvida universal, muitos entendem válida sua conceituação como forma expressiva de dogmatismo. Todavia a dificuldade de caracterizá-lo decorre do número elevado de suas ramificações. O fenomenismo de David Hume e o imaterialismo de George Berkeley são duas de suas ramificações mais significativas, às quais convém ainda acrescentar o próprio positivismo. Apesar dessas diversificações, alguns autores pretendem caracterizá-lo mediante seis afirmações básicas, algumas delas essencialmente expressivas de suas formas mais radicais. São elas:

1)não há idéias inatas, nem conceitos abstratos;
2)o conhecimento se reduz a impressões sensíveis e a idéias definidas como cópias enfraquecidas das impressões sensoriais;
3)as qualidades sensíveis são subjetivas;
4)as relações entre as idéias reduzem-se a associações;
5)os primeiros princípios, e em particular o da causalidade, reduzem-se a associações de idéias convertidas e generalizadas sob forma de associações habituais;
6)o conhecimento é limitado aos fenômenos e toda a metafísica, conceituada em seus termos convencionais, é impossível.

1.27.2. Histórico

O empirismo revelou-se na filosofia grega sob a forma sensualista, citando-se como seus representantes Heráclito, Protágoras e Epicuro. Na Idade Média seu mais significativo adepto foi Guilherme de Occam; expressou-se então por meio do nominalismo, cuja tese central é a não-existência de conceitos abstratos e universais, mas apenas de termos ou nomes cujo sentido seria o de designar indivíduos revelados pela experiência.
O empirismo moderno tem como seus principais representantes John Locke, Thomas Hobbes, George Berkeley e David Hume. Mas não se esgota aí o movimento. Sem dúvida, Jeremy Bentham, John Stuart Mill (em que o empirismo se converte em associacionismo) e Herbert Spencer podem ser citados como figuras representativas do fenomenismo nos domínios da ética, da lógica e da filosofia da natureza.

Esse empirismo enfrentou uma série de dificuldades, sendo a principal e mais profunda a que Immanuel Kant reconheceu, ao proceder, em sua Kritik der reinem Vernunft (1781; Crítica da razão pura), à distinção entre a experiência enquanto passo inicial do conhecimento e enquanto dado absoluto do conhecimento.

O significado do empirismo pode ser examinado considerando a validade de suas afirmações centrais. Tais afirmações são:
1)a rejeição da tese das idéias inatas;
2)a negação das idéias abstratas;
3)a rejeição do princípio da causalidade e, por decorrência e generalização, dos primeiros princípios da razão. A argumentação contra o inatismo foi esgotada por Locke. Negadas as idéias inatas enquanto idéias explicitadas, elas não poderiam deixar de estar presentes nas crianças e nos selvagens. A possibilidade de sua preexistência, meramente virtualizada ou implícita, desde logo é prejudicada, por se revelar contraditória com a conceituação da consciência tal como a formulou Descartes e tal como a admitiu Locke. A argumentação contra a validade da teoria da abstração é da autoria de Berkeley. Hume considera-a definitiva e irrespondível.

Segundo Berkeley, não se poderia conceber isoladamente qualidades que não podem existir em separado, como cor e superfície. Nenhuma condição existe para se pensar em cor, senão em termos de extensão ou superfície; a vinculação de uma à outra é essencial. De resto esse foi um dos caminhos explorados por Edmund Husserl, em função da técnica das variações imaginárias, para atingir o reino das essências. Ainda segundo Berkeley, qualquer representação será individual. Não se representa o homem, mas Pedro ou José. O triângulo conceituado nunca deixará de ser isósceles ou escaleno.

A crítica ao princípio da causalidade foi feita por Hume e constitui um dos pontos centrais de sua contribuição à epistemologia. A causalidade, entendida como poder de determinação e como relação necessária, é recusada. Nenhuma fundamentação sensorial se lhe poderia oferecer. Apenas se admitem seqüências de eventos reforçadas em termos de hábitos. Aceita e ampliada sua validade, a crítica invalida todos os chamados primeiros princípios. Precisamente assim procederam Stuart Mill, Spencer e, mais modernamente, L. Rougier, Charles Serrus e todo o Círculo de Viena.

1.28. Iluminismo

No decorrer do século XVIII, as idéias do Iluminismo sobre Deus, a razão, a natureza e o homem cristalizaram-se numa cosmovisão que deitou raízes e acabou por produzir avanços revolucionários na arte, na filosofia e na política.

Iluminismo foi o movimento cultural e intelectual europeu que, herdeiro do humanismo do Renascimento e originado do racionalismo e do empirismo do século XVII, fundava-se no uso e na exaltação da razão, vista como o atributo pelo qual o homem apreende o universo e aperfeiçoa sua própria condição. Considerava que os objetivos do homem eram o conhecimento, a liberdade e a felicidade. O Iluminismo foi chamado pelos franceses de Siècle des Lumières, ou apenas Lumières, pelos ingleses e americanos de Enlightenment e pelos alemães de Aufklärung.



1.28.1. Características gerais

O Iluminismo avaliou com otimismo o poder e as realizações da razão humana, e a crença na possibilidade de reorganizar a sociedade segundo princípios racionais. Não ignorou a história, mas a encarou de modo crítico, sem aceitar a idéia de que a evolução da humanidade fosse inexoravelmente determinada pelo passado. Esse enfoque retirou do otimismo dos pensadores iluministas qualquer caráter metafísico. Ao contrário, a visão iluminista tinha por base a possibilidade, aberta a cada ser humano, de ter consciência de si mesmo e de seus erros e acertos, e de ser dono de seu destino: a confiança nos efeitos moralizadores e enobrecedores da instrução se completava na exortação a todas as pessoas para que pensassem e julgassem por si próprias, sem orientação alheia. A crítica iluminista dirigiu-se contra a tradição e a autoridade daqueles que se arrogavam a tarefa de guiar o pensamento, e contra o dogmatismo que os justificava.

Essa luta contra as verdades dogmáticas deu-se, na esfera política, com a oposição ao absolutismo monárquico. É certo que houve alguns casos em que monarcas apoiaram e estimularam as novas idéias, atitude que ficou conhecida como “despotismo esclarecido”. Esse apoio não configurava uma aliança, pois era quase sempre superficial e ditado por conveniências políticas ou estratégicas.

A riqueza e complexidade do movimento iluminista teve como base alguns pontos gerais: em primeiro lugar, a influência que os empreendimentos científicos do século XVII e início do século XVIII tiveram sobre as novas idéias. Na astronomia e na física, por exemplo, Galileu Galilei, Johannes Kepler e Isaac Newton levaram a conceber o universo como “natureza”, ou seja, como um domínio ou realidade dinâmica, regida por leis gerais que a razão sempre poderia acabar por descobrir. Em segundo lugar, e como conseqüência, a substituição da idéia de um Deus pessoal, responsável pelos acontecimentos humanos e eventos naturais, por um deísmo, que valorizava a idéia abstrata de Deus como princípio ordenador da natureza, “arquiteto do mundo” e criador de suas leis, mas que não intervém diretamente nele. Embora a idéia do deísmo não tenha sido compartilhada por todos os pensadores iluministas -- alguns mantiveram a crença em um Deus transcendente ao qual a humanidade concernia diretamente, enquanto outros radicalizaram suas opiniões e chegaram ao ateísmo --, essa foi a tendência dominante do pensamento da época.
Tudo isso levou à crença no “progresso histórico” da humanidade, concebido não como produto de um plano divino, mas como resultado da razão e dos esforços humanos. Formou-se assim pela primeira vez a idéia de “humanidade” como integração de todos os povos, acima de circunstanciais diferenças étnicas ou situações temporais ou espaciais.
Como resultado lógico, a atividade e tarefa que os pensadores iluministas se atribuíam não ficou centrada na criação de grandes sistemas especulativos, e sim na difusão da cultura e na abertura de novas perspectivas para a compreensão da realidade. Os gêneros literários se diversificaram, surgiram inúmeras publicações, e a diversidade de temas de estudo e de reflexão firmou-se como um dos traços que permaneceram na cultura contemporânea.

Para avaliar globalmente o Iluminismo, deve-se levar em conta que, embora houvesse uma atmosfera cultural comum em quase toda a Europa, as diferenças nacionais e a existência de sistemas políticos distintos determinaram condições e pontos de vista diversos. O Iluminismo francês, por exemplo, foi mais anticlerical e de orientação política do que o Iluminismo britânico, o qual se desenvolveu em um país onde já havia se estabelecido uma monarquia liberal; já na Alemanha, o debate intelectual se concentrou em questões metafísicas e religiosas.

1.28.2. Desenvolvimento e principais tendências

O Iluminismo produziu as primeiras teorias modernas seculares sobre a psicologia e a ética. O filósofo empirista inglês John Locke foi, de certo modo, o primeiro iluminista. Em seu Essay Concerning Human Understanding (1689; Ensaio acerca do entendimento humano), Locke rejeitou a escolástica, que baseava a explicação do mundo em conceitos, e recusou também o apriorismo cartesiano: para Locke, os objetos do entendimento ou conhecimento não poderiam ser entidades constituídas prévia e independentemente dele, nem tampouco idéias inatas. Assim, considerou que, na ocasião do nascimento, a mente humana é como uma página em branco, uma tabula rasa na qual a experiência vai formando o caráter individual. Essas idéias, radicalizadas por David Hume, ensejaram uma nova visão da ética e da sociedade. As ações corretas e a organização social justa dependeriam do exercício da faculdade da razão.

Na França, a organização política não tinha a flexibilidade e funcionalidade do sistema inglês, de modo que a reação contra a rigidez hierárquica e a desigualdade levou quase forçosamente a ideais revolucionários, que apareceram de modo bem definido em obras como a do barão de Montesquieu, L'Esprit des lois (1748; O espírito das leis). Nela, o autor postulava um liberalismo de tipo britânico, assegurado -- e essa foi sua grande contribuição à filosofia política -- pela separação dos poderes executivo, legislativo e judiciário. Voltaire foi, em grande medida, o símbolo do “século das luzes” francês; atacou com dureza o absolutismo e a igreja, exaltou a razão e advogou um deísmo que assumiu algumas vezes formas quase místicas e irracionais.


Denis Diderot e Jean Le Rond d'Alembert produziram o grande monumento intelectual do Iluminismo: a Encyclopédie, obra portentosa que consistia numa série de artigos e ensaios de vários pensadores e especialistas, que versavam sobre o homem e suas “ciências, artes e ofícios”. A Encyclopédie, que se estendeu por 35 volumes e teve notável influência intelectual na França e em outros países, deu grande importância ao progresso e à ciência.

Jean-Jacques Rousseau foi uma das grandes figuras das Luzes. Para ele, a moral surge com a sociedade, pressupõe o princípio da ordem e exige a liberdade. A única sociedade política aceitável para o homem é a que está fundada no consentimento geral. Rousseau não preconizou a revolução nem incitou a ela, mas suas idéias influenciaram os revolucionários franceses. Por sua riqueza e originalidade, são também um marco inaugural do romantismo e uma das referências do pensamento moderno.

Na Aufklärung, destacou-se Christian Wolff. Diferente das Lumières, o Iluminismo germânico sofreu influência da reforma luterana e do empirismo de Locke, e apresentou grande atração pelas matemáticas. Todas essas tendências se incorporaram a um núcleo central representado pela problemática metafísica. A estética foi estudada principalmente por Gotthold Ephraim Lessing. Immanuel Kant é o resumo por excelência do Iluminismo e iniciou uma nova forma de pensamento.

Em outros lugares da Europa, as idéias iluministas penetraram menos. Na Itália, Giambattista Vico propôs  uma definição e um projeto racionais da história, na qual distinguia três idades: a dos deuses, a dos heróis e a dos homens. Na península ibérica, o predomínio da teologia cristã tradicional tolheu as novas idéias, que encontraram maior difusão nas colônias hispano-americanas e no Brasil, e contribuíram para a formação do pensamento social e político dos líderes do movimento de independência.

1.28.3. Significado histórico

O Iluminismo extinguiu-se, ao menos em parte, pelos excessos de algumas de suas idéias. A oposição às idéias religiosas e a usurpação da figura de Deus tornaram-no estéril e sem atrativos aos olhos de muitos para quem a religião era fonte de consolo, esperança e sentimento de comunhão. O culto quase ritualístico à razão abstrata, elevada à categoria de autêntica divindade, levou também a cultos de tipo esotérico ou obscurantista. E o período do “Terror”, que se seguiu à revolução francesa foi um golpe para a convicção iluminista de  uma sociedade justa e pacífica, fundada em princípios racionais partilhados por todos os cidadãos.

Os pensadores iluministas deixaram como legado a definição e desenvolvimento de muitos dos conceitos e termos empregados ainda hoje no tratamento de temas estéticos, éticos, sociais e políticos. E o mundo contemporâneo herdou deles a convicção, rica de esperanças e projetos, de que a história humana é uma crônica de contínuo progresso.

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