FACULDADE DE TEOLOGIA
TESTEMUNHAS HOJE
CURSO LIVRE
HISTÓRIA DA IGREJA
E
A VIDA
DOS APOSTOLOS
SEGUNDA PARTE
HISTÓRIA
DA IGREJA
E A VIDA DOS APOSTOLOS
O FIM DOS TRABALHOS DE PAULO EM LIBERDADE
Chegamos
agora a uma questão importante, e a um ponto de virada na história de Paulo
daqui para a frente. Iria ele direto para o ocidente, em direção a Roma, ou
iria passar por Jerusalém? Tudo depende disso. Jerusalém também estava em seu
coração. Mas se Cristo o tinha enviado tão longe, para os gentios, poderia o
Espírito, da parte de Cristo, conduzi-lo a Jerusalém? Foi apenas aqui,
acreditamos, que foi permitido ao grande apóstolo seguir os desejos de seu
próprio coração, cujos desejos eram corretos e belos em si mesmos, mas não
estavam de acordo com a mente de Deus naquele momento. Ele amava profundamente
sua nação, e especialmente os santos pobres em Jerusalém; e, tendo sido muito
mal representado ali, ele esperava provar seu amor pelos pobres dentre seu povo
levando as ofertas dos gentios pessoalmente. "Assim que", diz ele,
"concluído isto, e havendo-lhes consignado este fruto, de lá, passando por
vós, irei à Espanha." (Romanos 15:28). Certamente isto era amável e
louvável! Sim, mas isto vinha de um lado apenas, e este era o lado da natureza
- da carne - e não do Espírito. "E, achando discípulos, ficamos ali sete
dias; e eles pelo Espírito diziam a Paulo que não subisse a Jerusalém."
(Atos 21:4). Isto parece claro o bastante, mas Paulo naquele momento se
inclinou para o lado de suas afeições "pelos pobres do rebanho" em
Jerusalém.
Será
que poderia haver um erro mais perdoável que este? Impossível! Foi seu amor
pelos pobres, e o prazer de levar a eles as ofertas dos gentios, que o conduziu
a passar por Jerusalém em seu caminho a Roma. No entanto, foi um erro, e um
erro que custou a Paulo sua liberdade. Seu trabalhos em liberdade acabam aqui.
Ele permitiu liberdade à sua carne, e Deus permitiu que os gentios o prendessem
em correntes. Esta era a expressão de puro amor do Mestre para com Seu servo.
Paulo era muito precioso para que o Senhor o deixasse sem a justa disciplina
nessa ocasião. Também provaria que nem Jerusalém nem Roma poderiam ser a
metrópole do cristianismo. Cristo, a Cabeça da igreja, estava no céu, e lá é o
único lugar em que a metrópole do cristianismo deve estar. Jerusalém perseguiu
o apóstolo, Roma o aprisionou e martirizou. No entanto, o Senhor estava com Seu
servo para o seu próprio bem, para o avanço da verdade, para a bênção da
igreja, e para a glória de Seu próprio grandioso nome.
Aqui
podemos tomar a permissão para mais uma reflexão. Em quantas histórias, desde a
quinta visita de Paulo a Jerusalém, essa cena solene tem sido reproduzida!
Quantos santos têm sido amarrados com correntes de diferentes tipos, mas quem
pode dizer para quê, ou para quem? Todos nós teríamos dito - se não iluminados
pelo Espírito - que o apóstolo não podia ter atuado por um motivo mais digno ao
passar por Jerusalém em seu caminho a Roma. Mas o Senhor não havia dito para
ele fazer isso. Tudo depende disso. Quão necessário é ver, em cada estágio de
nossa jornada, que temos a palavra de Deus para nossa fé, o serviço de Cristo
para nossos motivos, e o Espírito Santo para nossa direção. Retornemos agora ao
relato dos eventos.
Deixamos
Paulo sentado com os anciãos na casa de Tiago. Eles tinham sugerido a ele um
modo de conciliar os crentes judeus, e de refutar as acusações de seus
inimigos. Deslealdade para com sua nação e com a religião de seus pais era a
principal acusação levantada contra ele. Mas sob a superfície dos eventos
exteriores, e especialmente tendo a luz das epístolas derramada sobre eles,
descobrimos a raiz de toda a questãona inimizade do coração humano contra a
graça de Deus. De modo a entender isso, devemos observar que o ministério de
Paulo tinha um duplo caráter: (1) Sua missão era pregar o evangelho "a
toda criatura debaixo do céu" - não foi apenas além dos limites do
judaísmo, como também estava em perfeito contraste com esse sistema; (2) Ele
era também o ministro da igreja de Deus, e pregava sua exaltada posição, e seus
benditos privilégios, como estando unida a Cristo, o Homem glorificado no Céu.
Essas verdades benditas serão vistas erguendo a alma do crente muito acima da
religião da carne, sempre tão penosa - sempre tão abundante em ritos e
cerimônias. Votos de jejum, festas, ofertas, purificações, tradições e
filosofia, são todas excluídas como nada dignas diante de Deus, e opostas à
própria natureza do cristianismo. Isto exasperava o judeu religioso com suas
tradições, e o grego incircunciso com sua filosofia; e ambos se uniram para
perseguir o verdadeiro portador deste duplo testemunho. E assim tem sido
sempre. O homem religioso com suas ordenanças, e o homem meramente natural com
sua filosofia, por um processo natural, prontamente se uniram em oposição ao
testemunho de um cristianismo celestial. Veja Colossenses 1 e 2.
Se
Paulo tivesse pregado a circuncisão, a ofensa da cruz teria cessado, pois isto
teria dado lugar, e a oportunidade, de ser alguma coisa e fazer alguma coisa, e
até mesmo de tomar parte com Deus em Sua religião. Isto era o judaísmo, e isto
dava ao judeu sua preeminência. Mas o evangelho da graça de Deus se dirige ao
homem como já perdido - como "morto em delitos e pecados" - e não tem
mais respeito para com os judeus do que para com os gentios. Assim como o sol
no firmamento, ele brilha para todos. Nenhuma nação, tribo, língua ou povo é
excluído de seus raios celestiais. "Pregar o evangelho a toda criatura que
está debaixo do céu" é a divina comissão e a esfera mais ampla do
evangelista; ensinar aqueles que acreditam neste evangelho sua perfeição em
Cristo é o privilégio e dever de cada ministro do Novo Testamento.
Tendo
assim limpado o terreno quanto aos motivos, objetivos e posição do grande
apóstolo, vamos agora traçar brevemente o restante de sua vida agitada. Chegou
o tempo em que ele seria levado diante dos reis e governantes, e até mesmo
diante do próprio César, por causa do nome do Senhor Jesus.
PAULO NO TEMPLO
De
acordo com a proposta de Tiago e dos anciãos, Paulo agora prossegue ao templo
com "os quatro homens que fizeram voto" (Atos 21:23). Então lemos:
"Então Paulo, tomando consigo aqueles homens, entrou no dia seguinte no
templo, já santificado com eles, anunciando serem já cumpridos os dias da
purificação; e ficou ali até se oferecer por cada um deles a oferta."
(Atos 21:26). Na conclusão do voto do nazireado a lei requeria que certas
ofertas fossem apresentadas no templo. Estas ofertas envolviam um preço
considerável, como podemos ver em Números 6; e era considerado um ato de grande
mérito e piedade para um irmão rico prover estas ofertas para um irmão pobre, e
assim permitir que ele completasse seu voto. Paulo não era rico, mas ele tinha
um grande e terno coração, e ele generosamente comprometeu-se a pagar os custos
para os quatro pobres nazireus. Tal prontidão da parte de Paulo em agradar
alguns e ajudar outros deveria ter pacificado e conciliado os judeus e,
provavelmente, teria se tão somente estivessem presentes os que estavam
associados a Tiago. Mas isto teve um efeito oposto nos inveterados zelotes:
eles ficaram apenas mais furiosos contra ele. A celebração da festa atraía
multidões à cidade santa, de modo que o templo estava repleto de adoradores de
todos os lugares.
Dentre
esses judeus estrangeiros estavam alguns da Ásia, provavelmente alguns dos
velhos antagonistas de Paulo em Éfeso, que ansiavam por uma oportunidade de se
vingarem dele, que tinha anteriormente os derrotado. Perto do fim dos sete dias
em que os sacrifícios deveriam ser ofertados, estes judeus asiáticos viram
Paulo no templo, e imediatamente caíram encima dele, "clamando: homens
israelitas, acudi; este é o homem que por todas as partes ensina a todos contra
o povo e contra a lei, e contra este lugar; e, demais disto, introduziu também
no templo os gregos, e profanou este santo lugar... E alvoroçou-se toda a
cidade, e houve grande concurso de povo; e, pegando Paulo, o arrastaram para
fora do templo, e logo as portas se fecharam." (Atos 21:28,30). A cidade
toda estava agora em polvorosa, e a multidão correu furiosamente ao ponto de
ataque. A multidão estava à beira da loucura, e se não fosse pelo zelo deles em
não derramar sangue no lugar santo, Paulo teria sido feito em pedaços no mesmo
instante. O objetivo deles agora era levá-lo para fora do recinto sagrado. Mas
antes que os planos assassinos deles fossem executados, a ajuda do Senhor
chegou, e eles foram inesperadamente interrompidos.
As
sentinelas nos portões sem dúvida comunicaram imediatamente a guarnição romana,
situada defronte do templo, de que havia um tumulto próximo à corte. O tribuno,
Cláudio Lísias, imediatamente correu ele mesmo ao local, levando com ele
soldados e centuriões. Quando os judeus viram o tribuno e os soldados romanos
se aproximando, eles pararam de espancar Paulo. O governador, percebendo que
era ele a causa de toda a agitação, prontamente o mandou prender com duas correntes,
ou por correntes entre dois soldados. Veja Atos 12:6.
Tendo
feito isto, Lísias prosseguiu a fazer um inquérito quanto à real causa do
distúrbio, mas, como nenhuma informação certa podia ser obtida da ignorante e
agitada multidão, ele ordenou que Paulo fosse levado à fortaleza. A desapontada
massa agora vai atrás de sua vítima com enorme ímpeto. Eles viram ele sendo
tirado de suas mãos, e pressionaram tão violentamente os soldados que Paulo foi
levado em seus braços até para cima das escadas do fortaleza. Enquanto isso,
gritos ensurdecedores se erguiam da multidão enraivecida abaixo, como fizeram
cerca de trinta anos antes: "Fora com ele, fora com ele".
Neste
momento de grande interesse, o apóstolo preservou grande presença de espírito,
e perfeitamente controlou a agitação de seus sentimentos. Ele age prudentemente
sem comprometer a verdade. Assim que alcançaram a entrada da fortaleza, Paulo
dirige-se da maneira mais cortês ao tribuno, e diz: "É-me permitido
dizer-te alguma coisa?", e ele disse: "Sabes o grego? Não és tu
porventura aquele egípcio que antes destes dias fez uma sedição e levou ao
deserto quatro mil salteadores?".
Mas Paulo lhe disse:"Na verdade que sou um homem judeu, cidadão de
Tarso, cidade não pouco célebre na Cilícia; rogo-te, porém, que me permitas
falar ao povo." (Atos 21:37-39). Por incrível que pareça, esse pedido lhe
foi concedido. Paulo já tinha ganhado o respeito do governador romano. Mas a
mão do Senhor estava nisso, Ele estava vigiando sobre Seu servo. Paulo havia
jogado a si mesmo nas mãos de seus inimigos ao procurar agradar os crentes
judeus. Mas Deus estava com ele, e sabia como livrá-lo de seu poder, e usá-lo
para a glória de Seu próprio grandioso nome. (Atos 21:26-40)
O DISCURSO DE PAULO NAS ESCADARIAS DA FORTALEZA
Para
o tribuno ele tinha falado em grego; para os judeus ele fala em hebraico. Estes
pequenos detalhes e considerações são as belas mesclas do amor e da sabedoria,
e devem servir de lição para nós. Ele estava sempre pronto para vencer, ao
"fazer-se tudo para todos, para por todos os meios chegar a salvar
alguns." (1Coríntios 9:22). Vemos os efeitos maravilhosos de sua
influência sobre a massa enfurecida, assim como sobre o oficial comandante. No
momento em que ele se dirige a eles, a cena toda muda. Ele acalmou o tumultuoso
mar das paixões humanas pelo som de sua língua sagrada, que caiu como óleo
sobre as águas agitadas, e então houve imediatamente "grande
silêncio". Lemos sua nobre defesa, dirigida a seus irmãos e pais, por
extenso em Atos 22:1-21.
Observa-se,
ao ler o discurso, que seus compatriotas ouviam com grande atenção, enquanto
ele falava a eles sobre sua vida passada, sua perseguição à igreja, sua missão
a Damasco, sua miraculosa conversão, sua visão no templo, e sua conversa com
Ananias. Mas no momento em que ele menciona sua missão aos gentios, uma
explosão de indignação se levanta da multidão, silenciando o apóstolo. Eles não
podiam suportar a ideia da graça de Deus se derramar sobre os gentios. Aquele
odioso nome os levava à fúria. O orgulho nacional deles se rebelava contra a
ideia de que pagãos incircuncisos pudessem ser feitos iguais aos filhos de
Abraão. Eles gritavam com desdenhoso desprezo contra cada argumento, humano ou
divino, que pudesse influenciar suas mentes. Em vão o apóstolo deu tanta ênfase
sobre o que tinha acontecido entre ele e o devoto Ananias. Todo apelo era em
vão quando se tratava dos gentios. Uma cena da mais selvagem confusão se
seguiu. Eles arrancaram suas roupas, jogaram terra para o ar, "e
levantaram a voz, dizendo: Tira da terra um tal homem, porque não convém que
viva." (Atos 22:22)
O
tribuno, vendo a violência frenética do povo, e não entendendo o que
significava, foi lançado em nova perplexidade. Ele viu os resultados de um
discurso na língua hebraica - que ele provavelmente não entendia - e,
naturalmente concluindo que seu prisioneiro deveria ser culpado de algum crime
terrível, ordenou que o prendessem e açoitassem para fazê-lo confessar sua
culpa. Mas esse proceder foi imediatamente cancelado quando Paulo torna conhecido
o fato de que ele era um cidadão romano.
Os
soldados que estavam engajados em prendê-lo retiraram-se alarmados, e alertaram
o governador quanto ao que ele estava fazendo. Lísias perguntou de pronto:
"Dize-me, és tu romano? E ele disse: Sim. E respondeu o tribuno: Eu com
grande soma de dinheiro alcancei este direito de cidadão. Paulo disse: Mas eu o
sou de nascimento." (Atos 22:27,28). Lísias se encontrava agora em uma
situação difícil, pois tinha violado uma lei romana. Expor um cidadão a tal
indignidade era considerado traição contra a majestade do povo romano. Mas a
única maneira de salvar a vida de Paulo era mantê-lo sob custódia, e ele
felizmente pensou em um outro modo mais brando de determinar a natureza da
ofensa de seu prisioneiro.
PAULO DIANTE DO SINÉDRIO
No
dia seguinte ele "mandou vir o principais dos sacerdotes, e todo o seu
conselho; e, trazendo Paulo, o apresentou diante deles." (Atos 22:30). A
política de Lísias aqui é interessante. Ele é ativo em suprimir o tumulto; ele
protege um cidadão romano; ele demonstra respeito para com a religião e
costumes dos judeus. Esta mistura de política e cortesia em um romano
arrogante, sob tais circunstâncias, é digna de um momento de reflexão, mas
temos de prosseguir.
Paulo
se dirige ao conselho com dignidade e seriedade, mas com uma evidente expressão
de integridade consciente. "E, pondo Paulo os olhos no conselho, disse:
Homens irmãos, até ao dia de hoje tenho andado diante de Deus com toda a boa
consciência." (Atos 23:1). Este inabalável senso de retidão enfureceu
tanto Ananias, o sumo sacerdote, que ele ordenou àqueles que estavam próximos a
golpeá-lo na boca. Esta arbitrária violação da lei por parte do chefe do
conselho despertou tanto os sentimentos do apóstolo, que ele destemidamente
exclamou: "Deus te ferirá, parede branqueada; tu estás aqui assentado para
julgar-me conforme a lei, e contra a lei me mandas ferir?" (Atos 23:3). É
evidente que o sumo sacerdote não estava vestido de modo a ser reconhecido como
tal. Portanto Paulo se desculpa por sua ignorância do fato, e cita a formal
proibição da lei: "Não dirás mal do príncipe do teu povo"(Atos 23:5).
O
apóstolo logo percebeu, como nos é dito, que o conselho estava dividido em duas
partes - alguns eram fariseus e outros eram saduceus - e portanto clamou:
"Homens irmãos, eu sou fariseu, filho de fariseu; no tocante à esperança e
ressurreição dos mortos sou julgado." (Atos 23:6). Esta declaração, seja
intencionalmente ou não, teve o efeito de dividir a assembleia, colocando um
partido contra o outro. E tão ferozes suas dissensões se tornaram que alguns
dos fariseus acabaram ficando do lado de Paulo, dizendo: "Nenhum mal
achamos neste homem, e, se algum espírito ou anjo lhe falou, não lutemos contra
Deus." (Atos 23:9). A sala de julgamento imediatamente se tornou cenário
da mais violenta contenda, e a presença de Cláudio Lísias se fez absolutamente
necessária. Paulo é mais uma vez levado recluso à fortaleza.
Assim
se passou essa agitada manhã na história de nosso apóstolo. À noite, quando
sozinho, será que o coração dele estava desanimado? Pelo que havia acontecido,
e pela aparência sombria de tudo à sua volta, o apóstolo nunca esteve em maior
necessidade de consolo e força que só a presença do Mestre concede. Mas quem
poderia saber disso tão bem, ou poderia sentir tão profundamente pelo solitário
prisioneiro como o Próprio Mestre? E assim Ele aparece na mais rica graça para
confortar e animar o coração de Seu servo. Foi um conforto divinamente
cronometrado. O Senhor apareceu-lhe, como tinha feito em Corinto, e como Ele
mais tarde faria em sua viagem a Roma, "e disse: Paulo, tem ânimo; porque,
como de mim testificaste em Jerusalém, assim importa que testifiques também em
Roma." (Atos 18:9,10; 23:11; 27:23,24). Uma conspiração tramada por mais
de quarenta homens para assassinar Paulo é descoberta, e todos os planos
malignos, frustrados. Cláudio Lísias imediatamente convoca seus centuriões e
soldados, dando-lhes ordens estritas de conduzir Paulo em segurança para
Cesareia. Os detalhes sobre este assunto são relatados por Lucas com singular
riqueza de detalhes (Atos 23:12-25).
PAULO COMPARECE DIANTE DE FÉLIX
Como
alguns de nossos leitores podem ter observado, o caráter dos modos de Deus para
com Seu servo de certa forma muda aqui. Pode ser interessante uma pausa por um
momento para reverentemente investigar as aparentes causas dessa mudança. E,
como muitos têm dado livremente suas opiniões quanto a esse difícil ponto,
vamos aqui citar algumas linhas de alguém que parece ter captado a mente do
Espírito.
"Eu
creio que a mão de Deus estava nesta viagem de Paulo - que, em Sua soberana
sabedoria, Ele desejou que Seu servo a empreendesse, tendo também a abençoado -
mas que os meios empregados para conduzi-lo de acordo com essa sabedoria
soberana foram as afeições humanas do apóstolo pelas pessoas que eram seus
parentes segundo a carne; e que ele não foi conduzido a isso pela ação do
Espírito Santo da parte de Cristo na igreja. Este apego a seu povo, esta
afeição humana, resultou naquilo que acabou por colocá-lo em seu próprio lugar.
Humanamente falando, foi um sentimento amável; mas não era o poder do Espírito
Santo fundamentado na morte e ressurreição de Cristo. Aqui, não havia mais
judeu ou gentio... a afeição de Paulo era boa em si mesma, mas como fonte de
ação não chegava à altura da obra do Espírito que, da parte de Cristo, o tinha
conduzido para longe de Jerusalém, para os gentios, de modo a revelar a igreja
como Seu corpo unido a Ele no céu."
"Ele
era o mensageiro da glória celestial, que trouxe à tona a doutrina da igreja
composta por judeus e gentios, unidos sem distinção no um só corpo de Cristo,
deixando de lado o judaísmo. Mas seu amor por sua nação o levou, repito, ao
centro do judaísmo hostil - o judaísmo enfurecido contra a igualdade
espiritual."
"Contudo,
a mão de Deus estava, sem dúvida, nisso. Paulo, individualmente, estava
realizado."
"Aquilo
que Paulo disse levanta um tumulto, e o tribuno o tira do meio deles. Deus tem
tudo à Sua disposição. Um sobrinho de Paulo, nunca antes mencionado, ouve falar
de uma emboscada armada contra ele e o avisa. Paulo o envia ao tribuno, que
agiliza a partida de Paulo sob guarda até Cesareia. Deus cuidava dele, mas tudo
aqui está no nível dos modos humanos e providenciais. Não há um anjo como no
caso de Pedro, nem um terremoto como em Filipos.
Os
acusadores de Paulo não tardaram em partir também para Cesareia. "E, cinco
dias depois, o sumo sacerdote Ananias desceu com os anciãos, e um certo
Tértulo, orador, os quais compareceram perante o presidente contra Paulo."
(Atos 24:1). Em um breve discurso, cheio de bajulação e insinuação, Tértulo
acusa Paulo de sedição [motim], heresia e profanação do templo.
Félix
então fez um sinal permitindo que Paulo respondesse por si. E agora, podemos
dizer, o apóstolo dos gentios está mais uma vez no lugar certo. Mesmo humilhado
pelas circunstâncias, ele é ainda o mensageiro de Deus para os gentios, e Deus
está com Seu amado servo. Os judeus ficaram em silêncio, e Paulo, com sua
maneira direta como de costume, rebateu as acusações.
Félix,
aparentemente, sabia muito sobre essas coisas, e é evidente que uma forte
impressão foi deixada em sua mente. Muitos anos antes, o cristianismo tinha
penetrado no exército romano em Cesareia (Atos 10), de modo que ele
provavelmente sabia algo sobre isso, e estava convencido da verdade das
afirmações de Paulo, mesmo não dando o devido valor às suas convicções e de seu
prisioneiro. Ele "adia" maiores investigações, com a desculpa de que
estaria esperando a chegada de Lísias.
Enquanto
isso, no entanto, ele dá ordens para que Paulo fosse tratado com gentileza e
consideração, e que seus amigos deveriam ter livre acesso a ele.
Não
muitos dias depois, Félix entrou na sala de audiências com sua esposa Drusila,
e mandou chamar Paulo. Eles estavam evidentemente curiosos para ouvi-lo
falar" acerca da fé em Cristo" (Atos 24:24). Mas não seria Paulo quem
iria gratificar a curiosidade de um romano libertino e de uma devassa princesa
judia. O fiel apóstolo, ao pregar Cristo, falou de modo claro e ousado à
consciência de seus ouvintes. Ele tinha, agora, uma oportunidade ao seu alcance
que ele dificilmente poderia ter obtido."E, tratando ele da justiça, e da
temperança, e do juízo vindouro, Félix, espavorido..." (Atos 24:25). Não é
de se estranhar. Se devemos acreditar nos historiadores de seus dias, como
Josefo e Tácito, nunca um casal tão sem princípios e dissoluto havia se sentado
diante de um pregador. Mas, embora com a consciência atingida, Félix continuou
impenitente. Que temível condição! "Por agora vai-te", disse ele,
"e em tendo oportunidade te chamarei." (Atos 24:25). Mas tal
oportunidade jamais chegou, embora tenha visto o apóstolo com frequência mais
tarde, sem dúvidas, dando a entender que queria fazer um suborno para garantir
sua liberdade. O governador romano nem imaginava que sua mercenária justiça
seria recordada no livro de Deus, e levada adiante para todas as gerações que
se sucederam. Seu caráter é representado como mesquinho, cruel e dissoluto;
capaz de qualquer impiedade, ele exerceu o poder de um rei com o temperamento
de um escravo. "Mas, passados dois anos, Félix teve por sucessor a Pórcio
Festo; e, querendo Félix comprazer aos judeus, deixou a Paulo preso."
(Atos 24:27)
PAULO COMPARECE DIANTE DE FESTO E AGRIPA
Imediatamente
após a chegada de Festo à província, ele visitou Jerusalém. Lá, os líderes
judeus aproveitaram a oportunidade para exigir o retorno de Paulo. Seus
argumentos, sem dúvida, era de que ele deveria novamente ser julgado perante o
Sinédrio, mas a verdadeira intenção deles era matá-lo no caminho. Festo recusou
o pedido. No entanto, ele os convidou a ir com ele para a Cesareia e acusá-lo
lá. O julgamento ocorreu e assemelhou-se ao que ocorreu diante de Félix. É bem
evidente que Festo viu claramente que a verdadeira ofensa de Paulo estava
ligada às opiniões religiosas dos judeus, e que ele não tinha cometido ofensa
alguma contra a lei. Mas ao mesmo tempo, tendo desejo de agradar os judeus,
pergunta a Paulo se ele não iria a Jerusalém para ser ali julgado. Isto era
apenas um pouco melhor do que uma proposta de sacrificá-lo ao ódio judaico.
Paulo, estando bem consciente disso, apelou de vez ao Imperador - "Eu
apelo para César" (Atos 25:11).
Festo
estava sem dúvidas surpreso com a dignidade e independência de seu prisioneiro.
Mas era seu privilégio como cidadão romano ter sua causa transferida ao supremo
tribunal do Imperador de Roma. "Então Festo, tendo falado com o conselho,
respondeu: Apelaste para César? para César irás." (Atos 25:12).
Até
onde os olhos do homem podem enxergar, este era o único recurso de Paulo sob
tais circunstâncias. Mas a mão e propósito do Senhor estava nisto. Paulo
deveria dar testemunho de Cristo e da verdade também em Roma. Jerusalém tinha
rejeitado o testemunho aos gentios; Roma também deve ter tido sua porção na
rejeição ao mesmo testemunho, se tornando também a prisão do testemunho. Mas em
tudo isso Paulo é altamente favorecido pelo Senhor.
Sua
posição lembra a de seu bendito Senhor, quando Ele foi entregue aos gentios
pelo ódio dos judeus. Apenas o Senhor foi perfeito em tudo isto, e Ele estava
em Seu verdadeiro ligar diante de Deus. Ele veio para os judeus - esta era Sua
missão. Paulo foi enviado dos judeus - tal era a diferença. Cristo se entregou
a Si mesmo, como lemos: "Que pelo Espírito eterno se ofereceu a si mesmo imaculado
a Deus" (Hebreus 9:14). Parte da comissão de Paulo é assim:
"Livrando-te deste povo, e dos gentios, a quem agora te envio" (Atos
26:17). Mas Paulo retornou àquele "povo" (os judeu) na energia de
suas afeições humanas, após ter sido colocado fora deles na energia do Espírito
Santo. Jesus tinha tirado ele de ambos judeus e gentios para exercer um
ministério que unia ambos em um só corpo em Cristo. Como o próprio Paulo diz:
"Assim que daqui por diante a ninguém conhecemos segundo a carne" (2
Coríntios 5:16). Em Cristo Jesus não há judeu nem grego.
PAULO COMPARECE DIANTE DE
AGRIPA E BERENICE
Aconteceu
nessa época que Agripa, rei dos judeus, e sua irmã Berenice, foram fazer uma
visita de cortesia a Festo. E como Festo não sabia como levar o caso de Paulo
ao Imperador, ele aproveitou a oportunidade de consultar Agripa, que estava
mais bem informado que ele sobre os pontos em questão. O príncipe judeu, que
devia saber algo sobre o cristianismo, e que sem dúvidas havia ouvido falar de
Paulo, expressou o desejo de ouvi-lo falar. Festo prontamente acedeu ao pedido.
"Amanhã", disse ele, "o ouvirás" (Atos 25:22).
O
apóstolo teria agora o privilégio de levar o nome de Jesus diante da mais
digníssima assembleia que ele já tinha abordado. Reis judeus, governadores
romanos, oficiais militares e comandantes da Cesareia se reuniram "com
grande pompa" para ouvir o prisioneiro dar conta de si mesmo a Agripa. Não
era uma audiência qualquer, e está perfeitamente claro que eles não
consideravam o prisioneiro como uma pessoa qualquer. Festo, tendo reconhecido a
dificuldade na qual se encontrava, remeteu a questão ao melhor conhecimento do
rei judeu. Agripa cortesmente deu sinal a Paulo, permitindo que falasse.
A
dignidade de seus modos perante seus juízes, embora preso por correntes a um
soldado, deve ter impressionado profundamente sua audiência. A profundidade de
sua humilhação apenas manifestava mais acentuadamente a elevação moral de sua
alma. Ele não pensava nem em suas correntes nem em sua pessoa. Perfeitamente
feliz em Cristo, e ardente de amor por aqueles ao seu redor, o bem-estar e as
circunstâncias foram completamente esquecidas. Com uma digna consideração para
com a posição daqueles ao seu redor, levantou-se, na honesta declaração de uma
boa consciência, infinitamente acima de todos. Ele se dirigiu à consciência de
sua audiência, com a ousadia e retidão de um homem acostumado a andar com Deus,
e de agir por Ele. O caráter e conduta dos governadores são lançadas em
doloroso contraste com o caráter e conduta do apóstolo, e nos mostra o que o
mundo é quando desmascarado pelo Espírito Santo.
Certo
autor escreveu: "Não mencionarei a vaidade mundana que se revela em Lísias
e Festo por meio da conjectura de toda classe de boas qualidades e boa conduta
- mistura de uma consciência tocada e falta de princípios nos líderes - e do
desejo de agradar os judeus pela sua própria importância, ou de facilitar seu
governo sobre um povo rebelde. A posição de Agripa e todos os detalhes da
história têm o extraordinário cunho da verdade, cujos vários personagens são
apresentados de maneira tão vívida que parece que estamos presenciando a cena
aqui descrita, e vendo as pessoas se movendo nela. Além do mais, essa é uma
característica marcante dos escritos de Lucas”.
Capítulo
26. Paulo se dirige ao rei Agripa como alguém bem versado nos costumes e
questões que prevalecem entre os judeus. E assim ele relata sua miraculosa
conversão e sua subsequente carreira de modo a agir na consciência do rei. Pela
clara e direta narrativa do apóstolo, ele não estava longe de ser convencido.
Sua consciência foi despertada. Mas o mundo e suas próprias paixões estavam no
caminho. Festo ridicularizou. Para ele não passava de um entusiasmo
extravagante - um delírio. Ele interrompeu o apóstolo abruptamente e
"disse em alta voz: Estás louco, Paulo; as muitas letras te fazem
delirar." (Atos 26:24). A resposta do apóstolo foi digna e segura de si,
mas intensamente séria e, com grande sabedoria e discernimento, ele apela por
fim a Agripa: "Não deliro, ó potentíssimo Festo; antes digo palavras de
verdade e de um são juízo. Porque o rei, diante de quem também falo com
ousadia, sabe estas coisas, pois não creio que nada disto lhe é oculto; porque
isto não se fez em qualquer canto." (Atos 26:25,26)
Então,
voltando-se ao rei judeu, que se sentava ao lado de Festo, ele fez este direto
e solene apelo:
"Crês
tu nos profetas, ó rei Agripa? Bem sei que crês." (Atos 26:27)
"E
disse Agripa a Paulo: Por pouco me queres persuadir a que me faça
cristão!" (Atos 26:28)
No
momento, o rei foi levado pelo poder do discurso de Paulo, e pela afiada picada
de seus apelos. Então Paulo deu sua resposta - uma resposta que se sobressai. É
caracterizada pelo zelo piedoso, pela cortesia cristã, pelo ardente amor pelas
almas, e por grande alegria pessoal no Senhor:
"E
disse Paulo: Prouvera a Deus que, ou por pouco ou por muito, não somente tu,
mas também todos quantos hoje me estão ouvindo, se tornassem tais qual eu sou,
exceto estas cadeias." (Atos 26:29)
Com
a expressão deste nobre desejo, a conferência foi encerrada. A reunião foi
dissolvida. Agripa não queria ouvir mais. Os apelos tinham sido tão penetrantes
e tão pessoais, ainda que misturados com dignidade, afeição e solicitude, que
ele não aguentou mais. Então "levantou-se o rei, o presidente, e Berenice,
e os que com eles estavam assentados." (Atos 26:30). Após uma breve
consulta, Festo, Agripa e sua companhia chegaram à conclusão de que Paulo não
era culpado de nada digno de morte ou mesmo prisão. "Bem podia soltar-se
este homem", disse Agripa, "se não houvera apelado para César."
(Atos 26:32)
Este
era o cuidado do Senhor para com Seu amado servo. Ele teria sua inocência
provada e reconhecida por seus juízes, e plenamente estabelecida perante o
mundo. Sendo isto cumprido, o rei e sua companhia retomam seus lugares no mundo
e seus divertimentos, e Paulo retorna à sua prisão. Mas nunca seu coração
esteve mais feliz ou mais cheio do Espírito de Seu Mestre do que naquele
momento.
A VIAGEM DE PAULO A ROMA (60 D.C.)
Atos
27. Chegou a hora em que Paulo viajaria a Roma. Nenhum julgamento formal do
apóstolo tinha acontecido. E, sem dúvidas, cansado da oposição dos judeus - com
dois anos de prisão em Cesareia - e com repetidos exames diante dos governantes
e de Agripa, ele tinha solicitado um julgamento perante a corte imperial.
Lucas, o historiador de Atos, e Aristarco de Tessalônica, tiveram o privilégio
de acompanhá-lo. Paulo foi entregue aos cuidados de um centurião chamado Júlio,
da guarda imperial: um oficial que, em todas as ocasiões, tratou o apóstolo com
grande gentileza e consideração.
Foi
então determinado que Paulo deveria ser enviado juntamente com "alguns
outros presos" pelo mar até a Itália. "E, embarcando nós", diz
Lucas, "em um navio adramitino, partimos navegando pelos lugares da costa
da Ásia, estando conosco Aristarco, macedônio, de Tessalônica. E chegamos no
dia seguinte a Sidom, e Júlio, tratando Paulo humanamente, lhe permitiu ir ver
os amigos, para que cuidassem dele." (Atos 27:2,3). Partindo de Sidom eles
foram forçados a navegar por baixo do Chipre, pois os ventos eram contrários, e
chegaram a Mirra, uma cidade na Lícia. Aqui o centurião teve seus prisioneiros
transferidos para um navio de Alexandria em rota para a Itália. Neste navio,
após deixarem Mirra, "por muitos dias navegaram vagarosamente", pois
o clima era desfavorável. Mas navegando por baixo de Creta, eles chegaram em
segurança em Bons Portos.
O
inverno estava próximo, e se tornou uma séria questão qual curso deveria ser
tomado - se eles deviam permanecer em Bons Portos durante o inverno, ou se
deveriam procurar algum porto melhor.
Aqui
devemos fazer uma breve pausa e contemplar a maravilhosa posição de nosso
apóstolo nessa séria consulta. Como anteriormente com Festo e Agripa, ele se
põe diante do capitão, do proprietário do navio, do centurião e de toda
tripulação, tendo a mente de Deus. Ele aconselha, dirige e age como se ele
fosse realmente o mestre do navio, no lugar de ser um prisioneiro sob custódia
de soldados. Ele aconselha para que fiquem onde estão. Ele adverte-lhes de que
iriam se encontrar com um clima violento se se aventurassem ao alto mar, e que
muito prejuízo seria feito ao navio e sua carga, e que colocaria em risco a
vida dos que estavam a bordo. Mas o mestre e o proprietário do navio, que
tinham o máximo interesse no próprio navio, se deixaram guiar pelas
circunstâncias e não pela fé; eles desejavam correr o risco de buscar por um
porto mais cômodo para invernar, e o centurião naturalmente cedeu ao julgamento
deles. Todos estavam contra o julgamento do homem de fé - o homem de Deus - o
homem que estava falando e agindo por Deus. Até mesmo as circunstâncias no
cenário ao redor deles parecia favorável à opinião dos marinheiros, e não do
apóstolo. Mas nada pode falsificar o julgamento da fé. Este deve ser verdade a
despeito de qualquer circunstância.
Foi,
portanto, resolvido pela maioria de que eles deveriam deixar Bons Portos, e
navegar para Fenice como um porto mais seguro para o inverno. O vento mudou
nesse exato momento. Tudo parecia favorecer os marinheiros. "E, soprando o
sul brandamente...". Eles estavam
tão otimistas que Lucas nos diz que eles supunham que o propósito deles já
estava realizado (v. 13). Estando em acordo, eles levantaram âncora e, com uma
brisa suave vinda do sul, o navio, com suas "duzentas e setenta e seis
almas" a bordo, partiu do porto de Bons Portos. Mas mal eles contornaram o
Cabo Matala, uma distância de apenas quatro ou cinco milhas, e um vento forte
vindo da costa pegou o navio, e o lançou de tal maneira que já não era possível
para o timoneiro mantê-lo em seu curso. E, como observa Lucas, "nos
deixamos ir à toa"(Atos 27:15), ou seja, eles foram obrigados a deixar o
navio ser levado pelo vento.
Mas
nossa principal preocupação aqui é com Paulo como o homem da fé. Quais devem
ter sido os pensamentos e sentimentos de seus companheiros passageiros nesse
momento? Eles tinham confiado no vento, e agora eles tinham que enfrentar a
tempestade. Os solenes conselhos e avisos da fé tinham sido rejeitados. Muitos,
infelizmente, sem se importarem com os avisos aqui registrados, e sob o
lisonjeiro vento de circunstâncias favoráveis, se lançaram na grande viagem da
vida, totalmente desatentos e independentes da voz da fé. Mas como o lisonjeiro
vento que traiu o navio depois que saiu do porto, tudo logo se torna uma
furiosa tempestade no agitado mar da vida.
A TEMPESTADE NO MAR ADRIÁTICO
O
termo "euro-aquilão" dado a este tempestuoso vento indica, como nos é
dito, uma tempestade de extrema violência. Veio acompanhada pela agitação e
rodopio das nuvens, e por um grande abalo marítimo, com enormes ondas. O
historiador sagrado agora procede dando um relato preciso sobre o que foi feito
do navio nessas perigosas circunstâncias. Tendo corrido para o sotavento de
Clauda, eles parecem ter escapado por um momento da violência da tempestade.
Isso lhes deu então uma oportunidade de fazer preparações para a tempestade.
O
dia após terem deixado Clauda - e a violência da tempestade continuando - eles
começaram a aliviar o navio, lançando ao mar tudo o que poderia ser poupado.
Todas as mãos pareciam estar trabalhando. "E, andando nós agitados por uma
veemente tempestade, no dia seguinte aliviaram o navio. E ao terceiro dia nós
mesmos, com as nossas próprias mãos, lançamos ao mar a armação do navio. E, não
aparecendo, havia já muitos dias, nem sol nem estrelas, e caindo sobre nós uma
não pequena tempestade, fugiu-nos toda a esperança de nos salvarmos."
(Atos 27:18-20)
Nada
poderia ser mais terrível para os marinheiros antigos do que um céu
continuamente cheio de nuvens, já que estavam acostumados a serem guiados pela
observação dos corpos celestiais. Foi nesse momento de perplexidade e desespero
que o apóstolo "pôs-se em pé" e ergueu sua voz em meio à tempestade.
E de suas palavras de simpatia aprendemos que todo o sofrimento deles foi
agravado pela dificuldade de se preparar comida. "E, havendo já muito que
não se comia, então Paulo, pondo-se em pé no meio deles, disse: Fora, na
verdade, razoável, ó senhores, ter-me ouvido a mim e não partir de Creta, e
assim evitariam este incômodo e esta perda. Mas agora vos admoesto a que
tenhais bom ânimo, porque não se perderá a vida de nenhum de vós, mas somente o
navio. Porque esta mesma noite o anjo de Deus, de quem eu sou, e a quem sirvo,
esteve comigo, dizendo: Paulo, não temas; importa que sejas apresentado a
César, e eis que Deus te deu todos quantos navegam contigo. Portanto, ó
senhores, tende bom ânimo; porque creio em Deus, que há de acontecer assim como
a mim me foi dito. É contudo necessário irmos dar numa ilha." (Atos
27:21-26)
O NAUFRÁGIO
O
naufrágio não estava muito distante. "E, quando chegou a décima quarta
noite, sendo impelidos de um e outro lado no mar Adriático, lá pela meia-noite
suspeitaram os marinheiros que estavam próximos de alguma terra. E, lançando o
prumo, acharam vinte braças; e, passando um pouco mais adiante, tornando a
lançar o prumo, acharam quinze braças." (Atos 27:27,28).
Por
quatorze dias e noites o pesado vendaval continuou sem parar, tempo durante o
qual o sofrimento deles deve ter sido além de qualquer descrição.
No
fim do décimo quarto dia, "lá pela meia-noite", os marinheiros
ouviram um som que indicava que eles estavam se aproximando da terra. O som,
sem dúvidas, vinha das ondas de arrebentação, que se quebram nos rochedos. O
tempo não podia ser desperdiçado, então eles imediatamente lançaram quatro
âncoras da popa, e ansiosamente esperaram pelo amanhecer. Aqui houve uma
tentativa natural, porém mesquinha, dos marinheiros para salvarem suas próprias
vidas. Eles baixaram o bote com o professo propósito de lançar as âncoras da
proa, porém com a intenção de abandonar o navio a afundar. Paulo, vendo isso, e
conhecendo seus verdadeiros desígnios, imediatamente "disse ao centurião e
aos soldados: Se estes não ficarem no navio, não podereis salvar-vos. Então os
soldados cortaram os cabos do batel (bote), e o deixaram cair." (Atos
27:31,32). Assim, o conselho divino do apóstolo foi o meio de salvar todos a
bordo. "Se estes não ficarem no navio, não podereis salvar-vos."
(Atos 27:31). Já não mais o capitão do navio ou sua tripulação eram procurados
para buscar sabedoria e segurança. Todo olho se voltava para Paulo, o
prisioneiro - o homem da fé - o homem que acredita e age de acordo com a
revelação de Deus. Circunstâncias frequentemente enganam quando olhamos para
sua direção; a palavra de Deus é nosso único guia seguro, seja em clima calmo
ou desagradável.
Durante
o ansioso intervalo que se manteve até o amanhecer do dia, Paulo teve uma
oportunidade de levantar sua voz a Deus, e para o encorajamento de toda a
companhia. Que cena de intenso interesse deve ter sido!
A
noite escura e tempestuosa - o navio em perigo de afundar ou de se despedaçar
nos rochedos. Mas havia alguém a bordo que estava perfeitamente feliz em meio a
tudo isto. O estado do navio, as águas rasas e o alarmante som das ondas não
surtiam terror nele. Ele estava feliz no Senhor, e em plena comunhão com Seus
próprios pensamentos e propósitos. Tal é o lugar do cristão em meio a toda
tempestade, embora comparativamente poucos tomam esse lugar: somente a fé pode
alcançá-lo. Esta foi a última exortação de Paulo à companhia do navio.
"E,
entretanto que o dia vinha, Paulo exortava a todos a que comessem alguma coisa,
dizendo: É já hoje o décimo quarto dia que esperais, e permaneceis sem comer,
não havendo provado nada. Portanto, exorto-vos a que comais alguma coisa, pois
é para a vossa saúde; porque nem um cabelo cairá da cabeça de qualquer de vós.
E, havendo dito isto, tomando o pão, deu graças a Deus na presença de todos; e,
partindo-o, começou a comer. E, tendo já todos bom ânimo, puseram-se também a
comer." (Atos 27:33-36)
O
único desejo deles agora era chegar com o navio em terra e escapar. Embora não
tivessem ainda conhecido a terra, "enxergaram uma enseada que tinha
praia" e se determinaram a encalhar o navio ali. Então eles lançaram
âncoras, largaram as amarras do leme, içaram a vela maior e dirigiram-se para a
praia. O navio, assim, conduzido, com a proa encravada na praia, permaneceu
imóvel, mas a popa se quebrou em pedaços pela violência das ondas.
O
navio de Paulo tinha agora alcançado a costa, e mais uma vez o homem da fé foi
necessário para a salvação das vidas de todos os prisioneiros. O centurião,
grandemente influenciado pelas palavras de Paulo, e temendo por sua segurança,
previne que os soldados matem os prisioneiros, e ordena que aqueles que sabiam
nadar deveriam se lançar primeiro ao mar e chegar à terra, e que o resto
deveria seguir em tábuas ou pedaços do navio disponíveis. "E assim
aconteceu que todos chegaram à terra a salvo." (Atos 27:44). O salvamento
deles foi completo, como Paulo tinha predito que seria.
PAULO EM MALTA
Atos
28. Os habitantes da ilha receberam os náufragos estrangeiros com muita
gentileza, e imediatamente acenderam um fogo para aquecê-los. O historiador
sagrado nos pinta um quadro vivo de toda a cena. Vemos as pessoas descritas se
movendo nela: o apóstolo recolhendo lenha para o fogo - a víbora mordendo sua
mão - os nativos pensando, a princípio, que ele fosse um assassino, e depois
que fosse um deus, pelo fato de ter escapado ileso da mordida. Públios, o
principal líder da ilha, os recebeu com cortesia por três dias, e seu pai, que
estava de cama com febre, foi curado por Paulo ao impor suas mãos sobre ele e
orar. Permitiram que o apóstolo obrasse muitos milagres durante sua estadia na
ilha, e toda companhia, por causa dele, foram tidos com muita honra. Vemos que
Deus está com Seu amado servo, e que ele exercita, como de costume, seu poder
entre os habitantes. Como a parte final da viagem de Paulo a Roma é bastante
próspera, havendo poucos incidentes registrados, vamos tomar nota brevemente:
Após
uma estadia de três meses em Malta, os soldados e seus prisioneiros partiram em
um navio de Alexandria para a Itália. Eles passaram por Siracusa, onde ficaram
por três dias: e em Régio, a partir de onde tiveram um vento bom até Potéoli.
Aqui eles" acharam alguns irmãos", e enquanto passavam alguns dias
com eles, desfrutando do ministério do amor fraternal, as novidades sobre a
chegada de Paulo chegaram aos ouvidos dos cristãos de Roma. Eles logo enviaram
alguns dos seus, que se encontraram com Paulo e seus amigos na Praça de Ápio e
nas Três Vendas. Um belo exemplo e ilustração da comunhão dos santos. Quais
deveriam ter sido os sentimentos de nosso apóstolo nessa primeiro encontro com
os cristãos da igreja em Roma! Seu desejo há muito acalentado estava finalmente
cumprido. Seu coração estava cheio de louvor. "Ele deu graças a
Deus", como diz Lucas, "e tomou ânimo."(Atos 28:15)
A CHEGADA DE PAULO A ROMA
Ao
longo da Via Ápia, muito provavelmente, Paulo e seus companheiros viajaram até
Roma. Ao chegarem, "o centurião (O sábio e humano Burrus era prefeito da
guarda pretoriana quando Júlio chegou com seus prisioneiros. Ele era um romano
virtuoso e sempre tratou Paulo com grande consideração e gentileza. -
Dicionário de Biografias do Dr. Smith ) entregou os presos ao capitão da
guarda*; mas a Paulo se lhe permitiu morar por sua conta à parte, com o soldado
que o guardava."(Atos 28:16). Embora ele não tenha sido libertado do
constante aborrecimento de estar acorrentado a um soldado, todas as
indulgências permitidas a um prisioneiro lhe foram concedidas.
Paulo tinha agora o privilégio "de
anunciar o evangelho aos que estavam em Roma"(Romanos 1:15); e prosseguiu
sem demora a agir de acordo com sua regra divina:" primeiro aos
judeus". Ele chama os principais dos judeus e explica a eles sua
verdadeira posição. Ele lhes assegura que não tinha cometido ofensa alguma
contra sua nação, ou contra os costumes dos pais, mas que ele tinha sido
trazido a Roma para responder a certas acusações feitas contra ele pelos judeus
na Palestina: e tão infundadas eram acusações, que até mesmo o governador
romano estava disposto a libertá-lo, mas os judeus se opunham à sua liberdade.
De fato era, como ele disse, que"pela esperança de Israel estou com esta
cadeia". (Atos 28:20). Seu único crime tinha sido sua firme fé nas
promessas de Deus a Israel através do Messias.
Os
judeus romanos, em resposta, asseguraram a Paulo que nenhum relato sobre os
preconceitos sofridos tinha chegado a Roma, e que eles desejavam ouvir dele
mesmo uma declaração de sua fé; e além disso, que em toda parte se falava mal
dos cristãos. Um dia foi então marcado para um encontro em seu próprio
aposento. Na hora marcada muitos vieram, "aos quais declarava com bom
testemunho o reino de Deus, e procurava persuadi-los à fé em Jesus, tanto pela
lei de Moisés como pelos profetas, desde a manhã até à tarde." (Atos
28:23). Mas os judeus em Roma, assim como em Antioquia e Jerusalém, foram
tardios de coração em crer."E alguns criam no que se dizia; mas outros não
criam." (Atos 28:24). Mas quão séria e incansavelmente ele trabalhava para
ganhar seus corações para Cristo! De manhã até à tarde ele não apenas pregava a
Cristo, mas procurava convencê-los a respeito dEle. Ele procurou, podemos estar
certos, persuadi-los a respeito da Divindade e humanidade do Senhor - Seu
perfeito sacrifício - Sua ressurreição, ascensão e glória. Que lição e que
assunto para o pregador em todas as épocas. Persuadir homens a respeito de Jesus
desde a manhã até à tarde.
A
condição dos judeus é agora posta diante de nós pela última vez. O juízo
pronunciado por Isaías estava para cair sobre eles em todo o seu poder
fulminante - um juízo sob o qual permanecem até hoje - um juízo que deve continuar
até que Deus se interponha para dar-lhes arrependimento, e para livrá-los por
Sua graça à glória de Seu próprio nome. Mas, em meio a tudo isso, "a
salvação de Deus é enviada aos gentios, e eles a ouvirão." (Atos 28:28),
e, como sabemos - bendito seja Seu nome - eles ouviram, e nós mesmos somos
testemunhas disso.
"E
Paulo ficou dois anos inteiros na sua própria habitação que alugara, e recebia
todos quantos vinham vê-lo; pregando o reino de Deus, e ensinando com toda a
liberdade as coisas pertencentes ao Senhor Jesus Cristo, sem impedimento
algum." (Atos 28:30,31)
Estas
são as últimas palavras de Atos. A cena na qual as cortinas se fecham é
bastante sugestiva - a oposição da incredulidade judaica quanto às coisas
relacionadas à salvação de suas almas sugerem, infelizmente, o que em breve se
abateria sobre eles. E aqui, também, acaba a história desse precioso servo de
Deus, até onde nos foi diretamente revelada. A voz do Espírito da verdade sobre
este assunto torna-se silenciosa. O conhecimento que temos sobre a subsequente
história de Paulo deve agora ser coletado quase que exclusivamente de suas
próximas epístolas. E delas aprendemos mais que mera história: elas nos dão um
bendito vislumbre dos sentimentos, conflitos, afetos e simpatias do grande
apóstolo, e da condição da igreja de Deus em geral, até o momento de seu
martírio.
O LIVRO DE ATOS COMO UM LIVRO
TRANSICIONAL ENTRE DISPENSAÇÕES
Vamos
contemplar por um momento nosso apóstolo como prisioneiro na cidade imperial. O
evangelho tinha agora sido pregado de Jerusalém a Roma. Grandes mudanças tinham
ocorrido nos modos dispensacionais de Deus.
Nota
do T.: os modos como Deus trata com o ser humano. O livro de Atos é
transicional neste caráter. Os judeus, como vemos, são agora deixados de lado -
ou melhor, eles mesmos se deixaram ficar de lado por rejeitarem aquilo que Deus
estava fazendo. Os conselhos de Sua graça dirigidos a eles, sem dúvida,
permanecem para sempre; mas, entretanto, eles são deixados de lado e outros vêm
e tomam o lugar do bendito relacionamento com Deus. Paulo era uma testemunha da
graça de Deus para com Israel. Ele mesmo era um israelita, mas também escolhido
de Deus para introduzir algo inteiramente novo - a igreja, o corpo de Cristo,
"do qual fui feito ministro... de anunciar entre os gentios, por meio do
evangelho, as riquezas incompreensíveis de Cristo, e demonstrar a todos qual
seja a comunhão do mistério, que desde os séculos esteve oculto em Deus, que
tudo criou por meio de Jesus Cristo" (Efésios 3:7-9). Esta nova coisa pôs
de lado qualquer distinção entre judeu e gentio, como pecadores e na unidade
desse corpo. A hostilidade dos judeus contra essas verdades nunca diminuíram,
como temos sempre visto, assim como vemos os resultados desta inimizade. Os
judeus desaparecem da cena inteiramente, e a igreja se torna o vaso do
testemunho de Deus na terra, e Sua habitação pelo Espírito (Efésios 2:22).
Indivíduos judeus, é claro, que creem em Jesus, são abençoados em conexão com
um Cristo celestial e com o "um só corpo". Mas Israel, por um tempo,
é deixado sem Deus, e sem a presente comunicação com Ele. As Epístolas aos
Romanos e aos Efésios estabelecem plenamente essa doutrina (especialmente
Romanos, capítulos 9, 10 e 11). Agora retornamos à ocupação de Paulo durante
sua prisão.
A OCUPAÇÃO DE PAULO DURANTE SUA PRISÃO
Embora
um prisioneiro, ele foi autorizado a manter livre relação com seus amigos, e
foi então cercado de muitos de seus mais antigos e fiéis companheiros. Das
Epístolas aprendemos que Lucas, Timóteo, Tíquico, Epafras, Aristarco e outros
estavam com o apóstolo durante esse tempo. Ainda assim, devemos nos lembrar que
ele estava, como prisioneiro, preso em cadeias a um soldado e exposto ao rude
controle de tal. Devido ao longo atraso de seu julgamento, ele permaneceu nessa
condição por dois anos, durante o qual ele pregou o evangelho e abriu as
escrituras às congregações que vinham ouvi-lo. Ele também escreveu várias
epístolas para as igrejas em lugares distantes.
Tendo
plena e fielmente cumprido o dever que tinha para com os judeus, o povo
favorecido de Deus, ele agora se dirige aos gentios, embora não deixasse
totalmente de lado os judeus. Sua porta estava aberta de manhã até a noite para
todos que quisessem vir e ouvir as grandes verdades do cristianismo. E, em
alguns aspectos, ele nunca teve oportunidade melhor, uma vez que, sob proteção
dos romanos, os judeus não tinham permissão para incomodá-lo.
Os
efeitos da pregação de Paulo através da bênção do Senhor logo foram manifestos.
Os guardas romanos, a família de César, e pessoas de "todos os demais
lugares" foram abençoados através dele. "E quero, irmãos, que
saibais", escreve ele aos filipenses," que as coisas que me
aconteceram contribuíram para maior proveito do evangelho; de maneira que as
minhas prisões em Cristo foram manifestas por toda a guarda pretoriana, e por
todos os demais lugares". E depois, o apóstolo diz: "Todos os santos
vos saúdam, mas principalmente os que são da casa de César." (Filipenses
1:12,13;4:22).
A
bênção parece ter sido primeiramente manifesta ao pretório, ou entre os guardas
pretorianos. "As minhas prisões em Cristo foram manifestas por toda a
guarda pretoriana", isto é, no alojamento dos guardas e tropas. O
evangelho da glória que Paulo pregava foi ouvido por todos eles. Até mesmo o
gentil prefeito romano Burrus, com seu amigo íntimo Sêneca, tutor de Nero, pode
ter ouvido o evangelho da graça de Deus. Os modos corteses de Paulo, e suas
grandes habilidades, tanto naturais quanto adquiridas, eram bem adequadas para
atrair tanto o estadista quanto o filósofo. Sua estadia ali por dois anos lhe
trouxe muitas oportunidades.
Ele
deve ter ficado conhecido, podemos dizer, entre quase todos os guardas. Com
cada mudança de guarda, a porta para o evangelho se abria cada vez mais.
Estando constantemente preso a um dos soldados como sentinela, e sendo tal
sentinela constantemente substituído, ele então se familiarizou com muitos; e
com que amor, fervor e ardente eloquência ele deve ter falado com eles sobre
Jesus e sobre a necessidade que tinham dEle! Mas devemos esperar até a manhã da
primeira ressurreição para vermos os resultados da pregação de Paulo naquele
lugar. O dia o declarará, e Deus terá toda a glória.
O
apóstolo também nos faz saber que o evangelho tinha penetrado no próprio
palácio.Havia santos na casa de César. O cristianismo foi plantado dentro das
paredes imperiais, "e por todos os demais lugares". Sim, "por
todos os demais lugares", disse o historiador sagrado. Não apenas Paulo
estava trabalhando dentro dos recintos imperiais, como também seus
companheiros, a quem ele chama de "cooperadores", estavam sem dúvidas
pregando o evangelho "por todos os demais lugares", dentro e fora da
cidade imperial, de modo que o sucesso do evangelho pudesse ser atribuído aos
esforços de outros, assim como aos incansáveis esforços do grande apóstolo em
seu cativeiro.
O ESCRAVO FORAGIDO, ONÉSIMO
De
todos os convertidos que o Senhor deu ao apóstolo estando preso, nenhum deles
parece ter ganho tão inteiramente seu coração como o pobre escravo fugitivo,
Onésimo. Uma bela imagem de força, humildade e ternura do divino amor no
coração que trabalha pelo Espírito, e docemente brilha em todos os detalhes da
vida individual! O sucesso do apóstolo no palácio imperial não enfraquece seu
interesse em um jovem discípulo da mais baixa condição da sociedade. Nenhuma
porção da comunidade era mais depravada do que os escravos. Mas quem se
associaria a um escravo fugitivo naquela devassa cidade? Mesmo assim, a partir
destas profundezas, Onésimo é tirado pelas mãos invisíveis do amor eterno. Ele
cruza o caminho do apóstolo, ouve-o pregar o evangelho, é convertido, dedica-se
de uma vez por todas ao Senhor e a Seu serviço, e encontra em Paulo um amigo e
irmão, assim como um líder e mestre. E agora resplandecem as virtudes e o valor
do cristianismo, e as mais doces aplicações da graça de Deus para com um
escravo pobre, sem amigos, destituído e foragido.
"O
que é o cristianismo?", podemos perguntar, e qual sua origem, em vista de
tais novidades em Roma. O que é o cristianismo no mundo? Será que foi aos pés de
Gamaliel que Paulo aprendeu a amar assim? Não, querido leitor. Foi aos pés de
Jesus. Que bom seria se o eloquente historiador de "O Declínio e a Queda
do Império Romano" tivesse entrado nesta cena e aprendido o valor do
cristianismo divino, em vez de ter se delongado em ridicularizá-lo com desdém!
Se pensarmos por um momento nos trabalhos do apóstolo nesse tempo - sua idade -
suas fraquezas - suas circunstâncias (para não falar dos assuntos elevados, e
das imensas verdades fundamentais que então ocupavam sua mente) - podemos muito
bem admirar a graça que podia entrar em cada detalhe do relacionamento de
mestre e escravo, e isto com tal delicada consideração por cada pedido. A carta
que ele enviou, com Onésimo, ao seu injuriado mestre Filemom, é claramente a
mais tocante já escrita. Lendo-a por alto, perderemos o calor e seriedade de
suas afeições, a delicadeza e equidade de seus pensamentos, ou a sublime
dignidade que permeia por toda a epístola.
EPÍSTOLAS DE PAULO DA PRISÃO
Não
pode haver dúvida de que a Epístola a Filemom, aos Colossenses, aos Efésios e
aos Filipenses foram escritas por volta dos últimos tempos de Paulo como
prisioneiro em Roma. Ele se refere a suas "prisões" em todas essas
cartas, e fala repetidamente sobre a expectativa de sua libertação (Compare
Filemom 1:22; Colossenses 4:18;Efésios 3:1; 4:1; 6:20; Filipenses 1:7, 25;
2:24; 4:22). Além disso, ele deve ter estado por tempo o bastante em Roma para
que as novidades sobre sua prisão chegassem aos afetuosos filipenses, e para
que eles tivessem lhe enviado refrigério.
As
três primeiras parecem ter sido escritas algum tempo antes da Epístola aos
Filipenses. Paulo fala sobre um assunto urgente o qual teve de ser resolvido em
sua epístola a eles: "De sorte que espero vo-lo enviar logo que tenha provido
a meus negócios. Mas confio no Senhor, que também eu mesmo em breve irei ter
convosco."(Filipenses 2:23,24). As três primeiras podem ter sido escritas
por volta da primavera do ano 62 d.C., e enviadas por Tíquico e Onésimo; a
última, no outono e enviada por Epafrodito.
Supõe-se
também que a Epístola aos Hebreus tenha sido escrita por essa época, e cada
justa consideração leva à conclusão de que Paulo foi o escritor. A expressão ao
final da epístola "os da Itália vos saúdam" parecem decisivas quanto a
onde o escritor estava quando a escreveu.
E as seguintes passagens parecem ser decisivas quanto à época: "Sabei
que já está solto o irmão Timóteo, com o qual, se ele vier depressa, vos
verei."(Hebreus 13:23,24).
Compare
isto com o que Paulo escreveu aos filipenses:"E espero no Senhor Jesus que
em breve vos mandarei Timóteo... logo que tenha provido a meus negócios. Mas
confio no Senhor, que também eu mesmo em breve irei ter convosco."
(Filipenses 2:19,23,24). É difícil duvidar que essas passagens não tenham sido
escritas pela mesma caneta por volta da mesma época, e que se referem aos mesmo
movimentos pretendidos. Mas não iremos insistir nesse ponto. Uma coisa, no
entanto, é evidente - que a epístola foi escrita antes da destruição de
Jerusalém em 70 d.C., pois o templo ainda estava de pé, e a adoração no templo
continuava inalterada. Compare Hebreus 8:4; 9:25; 10:11; 13:10-13.
A ABSOLVIÇÃO E LIBERTAÇÃO DE PAULO
Depois
de quatro anos cheios em prisão, parte na Judeia e parte em Roma, o apóstolo
está novamente em liberdade. No entanto, não temos detalhes particulares quanto
ao caráter de seu julgamento, ou quanto aos motivos de sua absolvição. O
historiador sagrado nos conta que ele ficou por dois anos inteiros em sua
própria casa alugada, mas ele não diz o que se seguiu ao final desse período.
Teria se seguido a condenação e morte do apóstolo, ou sua absolvição e
liberação? Esta é a questão, e a única resposta certa para ela deve ser
retirada principalmente das Epístolas Pastorais. A Primeira a Timóteo e a Epístola
a Tito parecem ter sido escritas na mesma época; e a Segunda a Timóteo algum
tempo depois.
É
admitido, cremos, por quase todos os que são competentes para decidir sobre tal
questão, que Paulo foi absolvido, e que ele passou alguns anos em viagem, em
perfeita liberdade, antes de ser novamente preso e condenado. E, embora seja
difícil traçar os passos do apóstolo durante esse período, ainda assim podemos
tirar algumas conclusões pelas suas cartas, sem invadir o domínio da
conjectura. Muito provavelmente ele viajou rapidamente e visitou muitos
lugares. Durante o prolongado período de seu aprisionamento, muito mal tinha
sido feito pelos seus inimigos nas igrejas que foram plantadas por meio dele.
Elas precisavam de sua presença, seu conselho e seu encorajamento. E pelo que
conhecemos quanto à sua energia e zelo, podemos ter certeza de que nenhum
trabalho seria poupado para visitá-las.
A PARTIDA DE PAULO DA ITÁLIA
1.
Ao escrever aos Romanos, antes de seu aprisionamento, Paulo expressou sua
intenção de passar por Roma até a Espanha. "Quando partir para
Espanha", diz ele,"irei ter convosco". E novamente: "Assim
que, concluído isto, e havendo-lhes consignado este fruto, de lá, passando por
vós, irei à Espanha." (Romanos 15:24,28). Alguns pensam que ele tenha ido
à Espanha imediatamente após sua libertação. A principal evidência apresentada
em favor dessa hipótese é suprida por Clemente, um cooperador mencionado em
Filipenses 4:3, que dizem que mais tarde era reconhecido como um bispo de Roma.
O escritor fala de Paulo ter pregado o evangelho do leste a oeste: que ele
tinha instruído o mundo todo (se referindo, sem dúvidas, ao Império Romano), e
que ele tinha ido ao mais extremo oeste - ou seja, até a região da Espanha.
Como Clemente foi um dos próprios discípulos e cooperadores de Paulo, seu
testemunho é digno de nosso respeito. Ainda assim, não está nas Escrituras, e
portanto não pode ser considerado conclusivo.
2.
Pelas cartas mais recentes de Paulo, ele parece ter alterado seus planos e
desistido da ideia de ir à Espanha, pelo menos por um tempo. Podemos tirar isso
principalmente das Epístolas a Filemom e aos Filipenses. Ao primeiro ele
escreve:
"E
juntamente prepara-me também pousada, porque espero que pelas vossas orações
vos hei de ser concedido." (Filemom 1:22). Aqui ele pede a Filemom que
espere pois iria em breve ter com ele em pessoa. Aos filipenses ele escreve, e
falando de Timóteo acrescenta: "De sorte que espero vo-lo enviar logo que
tenha provido a meus negócios. Mas confio no Senhor, que também eu mesmo em
breve irei ter convosco.". E novamente, "E espero no Senhor Jesus que
em breve vos mandarei Timóteo, para que também eu esteja de bom ânimo, sabendo
dos vossos negócios." (Filipenses 2:19,23,24). Os movimentos pretendidos
do apóstolo e de seu amado Timóteo parecem muito claros nessas passagens. Era
evidentemente o propósito do apóstolo enviar Timóteo a Filipos assim que o
julgamento terminasse, e ficar na Itália até que Timóteo retornasse com um
relatório sobre a condição deles.
3.
Pode-se razoavelmente esperar que Paulo tenha cumprido a intenção que ele havia
expressado tão recentemente, de visitar as igrejas na Ásia Menor, algumas das
quais ainda nem mesmo tinha conhecido. Tendo cumprido os objetivos de sua
missão à Ásia Menor, alguns pensam que, depois disso, ele deve ter empreendido
sua viagem à Espanha, mas sobre isso não temos informação confiável, e a mera
conjectura não tem valor.
4.
Outra teoria é que ele tenha ido da Itália para a Judeia, e daí para a
Antioquia, Ásia Menor e Grécia. Este esquema se baseia principalmente em
Hebreus 13:23,24. "Sabei que já está solto o irmão Timóteo, com o qual, se
ele vier depressa, vos verei... Os da Itália vos saúdam." É também suposto
que, enquanto ele estava esperando em Potéoli para a embarcação, imediatamente
após o retorno de Timóteo, notícias chegaram ao apóstolo de que uma grande
perseguição se erguia contra os cristãos em Jerusalém. Esse conhecimento tão
triste encheu tanto o coração de Paulo com tristeza que ele escreveu sua famosa
carta a eles - a Epístola aos Hebreus. Pouco tempo depois Timóteo teria
chegado, e então Paulo e seus companheiros partiram para a Judeia. *
OS LUGARES VISITADOS POR PAULO
DURANTE SUA LIBERDADE
Tendo
conhecido essas diferentes teorias para examinação própria por parte do leitor,
vamos tomar nota dos lugares visitados por Paulo mencionados nas Epístolas.
1.
Algum tempo depois de ter deixado Roma, Paulo e seus companheiros devem ter
visitado a Ásia Menor e a Grécia. "Como te roguei, quando parti para a
macedônia, que ficasses em Éfeso, para advertires a alguns, que não ensinem
outra doutrina." (1 Timóteo 1:3). Sentindo-se, talvez, um pouco ansioso
por seu filho Timóteo e pelo peso das responsabilidades de sua posição em
Éfeso, ele envia uma carta de encorajamento, conforto e autoridade, enquanto
estava ainda na Macedônia - A Primeira Epístola a Timóteo.
2.
Algum tempo depois, Paulo visitou a ilha de Creta em companhia de Tito, e o
deixou lá. Ele também, algum tempo depois, envia a ele uma carta de instrução e
autoridade, a Epístola a Tito. Timóteo e Tito podem ser considerados como
delegados ou representantes do apóstolo. "Por esta causa te deixei em
Creta, para que pusesses em boa ordem as coisas que ainda restam, e de cidade
em cidade estabelecesses presbíteros, como já te mandei." (Tito 1:5)
3.
Paulo pretendia passar o inverno em um lugar chamado Nicópolis: "Quando te
enviar Ártemas, ou Tíquico, procura vir ter comigo a Nicópolis; porque
deliberei invernar ali." (Tito 3:12)
4.
Ele visitou Trôade, Corinto e Mileto. "Quando vieres, traze a capa que
deixei em Trôade, em casa de Carpo, e os livros, principalmente os
pergaminhos... Erasto ficou em Corinto, e deixei Trófimo doente em
Mileto." (2 Timóteo 4:13,20)
O SEGUNDO APRISIONAMENTO
DE PAULO EM ROMA
Alguns
supõem que o apóstolo tenha sido preso em Nicópolis (onde ele pretendia passar
o inverno) e dali levado prisioneiro a Roma. Outros supõem que, após invernar
em Nicópolis e visitar os lugares mencionados anteriormente, ele retornou a
Roma em um estado de liberdade pessoal, mas foi preso durante a perseguição de
Nero e lançado na prisão.
Quanto
à acusação exata que agora era feita contra o apóstolo, e pela qual ele foi
preso, não temos meios de verificar com certeza. Pode ter sido simplesmente
aacusação por ser um cristão. A perseguição generalizada contra os cristãos
agora se enfurecia com maior severidade. Não se tratava mais sobre certas
questões da lei, e ele não estava mais sob os cuidados suaves e humanos de
Burrus: ele agora era tratado como um malfeitor - como um criminoso comum:
"Por isso sofro trabalhos e até prisões, como um malfeitor" (2
Timóteo 2:9) - e muito diferente das cadeias de seu primeiro aprisionamento,
quando ele morava em sua própria casa alugada.
Alexandre
- que acreditamos ser de Éfeso -
evidentemente tinha algo a ver com sua prisão. Ou ele foi um de seus
acusadores ou, ao menos, uma testemunha contra ele."Alexandre, o
latoeiro", ele escreve a Timóteo, "causou-me muitos males"
["exibiu muito mal de espírito contra mim"] (2 Timóteo 4:14) . Dez
anos antes disso, ele tinha estado à frente como um antagonista aberto do
apóstolo em Éfeso (Atos 19). Ele pode agora ter procurado vingança colocando
informação contra o apóstolo perante o prefeito. O fato de ser o mesmo
Alexandre de Éfeso parece claro considerando o que ele escreve a Timóteo:
"Tu, guarda-te também dele, porque resistiu muito às nossas
palavras." (2 Timóteo 4:15)
Durante
a primeira e extensa prisão de Paulo, ele estava cercado por muitos de seus
mais velhos e valorados companheiros, a quem ele chama de "cooperadores"
e"prisioneiros comigo". Por meio destes, seus mensageiros, embora
acorrentado e preso em um único local, ele continuou em constante relação com
seus amigos por todo o império, e com as igrejas dos gentios que ainda nem
tinham visto sua face. Mas seu segundo aprisionamento estava em perfeito
contraste com tudo isso. Ele estava longe de todos os seus companheiros de
costume. Erasto ficou em Corinto, Trófimo foi deixado doente em Mileto, Tito
tinha ido à Dalmácia, Crescente à Galácia, Tíquico tinha sido enviado a Éfeso,
e Demas o tinha abandonado, "amando o presente século" (2 Timóteo
4:10).
O
apóstolo estava agora quase que inteiramente sozinho. "Só Lucas está
comigo", diz ele (2 Timóteo 4:11). Mas o Senhor pensava em Seu solitário e
abandonado servo. Um feixe luminoso, a partir da fonte de amor, brilha em meio
à escuridão e melancolia de sua prisão. Havia alguém fiel em meio à deserção
geral, e alguém que não se envergonhava das cadeias do apóstolo. Quão
peculiarmente doce e refrescante para o coração do apóstolo deve ter sido o
ministério de Onesíforo naquele tempo! Nunca poderá ser esquecido. Onesíforo e
sua casa - que Paulo relaciona consigo mesmo - serão guardados em memória
eterna, e deverão colher o fruto de sua coragem e devoção ao apóstolo para
sempre e sempre. "Estive na prisão, e foste me ver." (leia Mateus
25:31-46).
No
que diz respeito às circunstâncias do julgamento de Paulo, não temos informação
certa. Muito provavelmente, na primavera de 66 ou 67 d.C., Nero tomou seu lugar
no tribunal, cercado por seus jurados e a guarda imperial, e Paulo foi levado à
corte. Temos razões para acreditar que o espaçoso lugar se encheu de uma
multidão promíscua de judeus e gentios. O apóstolo estava mais uma vez diante
do mundo. Ele tinha novamente a oportunidade de proclamar a todas a nações
aquilo pelo qual ele tinha sido feito prisioneiro - "e todos os gentios a
ouvissem." (2 Timóteo 4:17). Imperadores e senadores, príncipes e nobres,
e todos os grandes da terra, deveriam ouvir o evangelho da graça de Deus. Tudo
o que o inimigo tinha feito se torna um testemunho ao nome de Jesus. Aqueles
que antes eram inacessíveis ouvem o evangelho pregado com poder do alto.
Seria
bastante proveitoso nos demorarmos nessa maravilhosa cena por alguns momentos.
Nunca antes houve tal testemunho no pretório de Nero. A sabedoria de Deus em
tornar todos os esforços do inimigo em tal testemunho é a mais profunda,
enquanto Seu amor e graça no evangelho brilha inefável e igualmente para todas
as classes. O próprio apóstolo comanda nossa devota admiração. Embora nesse
momento seu coração estivesse quebrado pela infidelidade da igreja, ele
permaneceu forte no Senhor e na força do Seu poder. Ele tinha uma oportunidade
de falar de Jesus, de Sua morte e ressurreição, de modo que a multidão pagã
pudesse ouvir o evangelho. Sua idade, suas fraquezas, sua forma venerável, seu
braço agrilhoado, tudo isso tendia a aprofundar a impressão de sua eloquência
viril e direta. Mas, felizmente, temos um relato, de sua própria pena, da
primeira audiência de sua defesa. Ele escreve assim a Timóteo, imediatamente
após o evento:
"Ninguém
me assistiu na minha primeira defesa, antes todos me desampararam. Que isto
lhes não seja imputado. Mas o Senhor assistiu-me e fortaleceu-me, para que por
mim fosse cumprida a pregação, e todos os gentios a ouvissem; e fiquei livre da
boca do leão." (2 Timóteo 4:16,17)
"Observe
agora, e veja o santo escolhido de Cristo Em triunfo usar cadeias como seu
Senhor; Nenhum temor irá desviá-lo ou abatê-lo Sua vida é Cristo, sua morte é
lucro.”
O MARTÍRIO DE PAULO
Embora
não tenhamos registro do segundo estágio de seu julgamento, temos motivos para
acreditar que se sucedeu pouco tempo depois do primeiro, e que terminou em sua
condenação e morte. Mas a Segunda Epístola a Timóteo é o divino registro do que
estava se passando em sua mente profundamente exercitada nesse solene momento. Sua
profunda preocupação pela verdade e pela igreja de Deus; seu comovente carinho
para com os santos, e especialmente para com seu amado filho Timóteo; sua
triunfante esperança frente ao imediato prospecto do martírio; tudo isso só
pode ser dito em suas próprias palavras: "Porque eu já estou sendo
oferecido por aspersão de sacrifício, e o tempo da minha partida está próximo.
Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé. Desde agora, a coroa da
justiça me está guardada, a qual o Senhor, justo juiz, me dará naquele dia; e
não somente a mim, mas também a todos os que amarem a sua vinda." (2
Timóteo 4:6-8)
O
tribunal de Nero aqui desaparece de sua vista. A morte em sua forma mais
violenta não exerce nele terror. Cristo em glória é o objeto de seus olhos e de
seu coração - a fonte de sua alegria e de sua força. Sua obra foi concluída, e
as fadigas de seu amor se cumpriram.
Embora
prisioneiro e pobre - embora velho e rejeitado - ele era rico em Deus, ele
possuía Cristo, e nEle todas as coisas. O Jesus que ele tinha visto em glória
no início de sua jornada, e que o tinha feito passar por todas as provas e
trabalhos pelo evangelho, era agora sua posse e sua coroa. O injusto tribunal
de Nero, e a espada manchada de sangue do carrasco, eram para Paulo apenas
mensageiros da paz, que tinham vindo fechar seu longo e cansativo caminho,e
introduzi-lo na presença de Jesus em glória. A hora tinha agora chegado em que
Jesus, que o amava, o levaria para Si mesmo. Ele tinha lutado o bom combate do
evangelho até o fim; ele tinha terminado seu curso, e agora só lhe faltava ser
coroado, quando o Senhor, o justo Juiz, aparecer em glória.
“Mas
em todas estas coisas somos mais do que vencedores Por aquele que nos amou. Porque
estou certo de que, nem a morte, nem a vida Nem os anjos, nem os principados,
nem as potestades Nem o presente, nem o porvir Nem a altura, nem a profundidade
Nem alguma outra criatura Nos poderá separar do amor de Deus Que está em Cristo
Jesus nosso Senhor.”
Temos
simultâneos testemunhos da antiguidade de que Paulo sofreu martírio durante a
perseguição de Nero, e muito provavelmente em 67 d.C. Como cidadão romano, ele
foi decapitado em lugar de ser flagelado e crucificado ou exposto a torturas
terríveis que então tinham sido inventadas para os cristãos. Como seu Mestre,
ele sofreu "fora da porta" (Hebreus 13:12). Há um local na Via Ostia,
mais ou menos duas milhas para além dos muros da cidade, onde supõe-se que seu
martírio aconteceu. Ali o último ato da crueldade humana foi executado, e o
grande apóstolo finalmente estava" fora do corpo, e habitando com o
Senhor." (2 Coríntios 5:8).
Seu
espírito fervente e feliz foi libertado desse frágil e sofrível corpo, e o
desejo há muito acalentado de seu coração foi cumprido - "partir, e estar
com Cristo, porque isto é ainda muito melhor." (Filipenses 1:23)
TABELA CRONOLÓGICA DA VIDA DE PAULO
Ano
36 - Conversão de Saulo de Tarso (Atos 9).
Anos
36-39 - Em Damasco; prega na sinagoga; vai à Arábia; retorna a Damasco; foge de
Damasco. Sua primeira visita a Jerusalém, três anos depois de sua conversão.
Dali parte para Tarso (Atos 9:23-26; Gálatas 1:18).
Anos
39,40 - Paz nas igrejas judias (Atos 9:31).
Anos
40-43 - Paulo prega o evangelho na Síria e Cilícia (Gálatas 1:21). Um período
de duração incerta. Durante este tempo ele provavelmente sofre a parte
principal dos perigos e sofrimentos aos quais se refere ao escrever aos
coríntios (2 Coríntios 11). Ele é trazido de Tarso para a Antioquia por
Barnabé, e fica ali um ano antes da fome (Atos 11:26).
Ano
44 - A segunda visita de Paulo a Jerusalém, com a coleta (Atos 11:30).
Ano
45 - O retorno de Paulo à Antioquia (Atos 12:25).
Anos
46-49 - A primeira viagem missionária de Paulo com Barnabé; vai para o Chipre,
Antioquia na Pisídia, Icônio, Listra, Derbe, e de volta pelo mesmo caminho até
a Antioquia. Ele fica por um longo tempo na Antioquia. Dissensões e disputas
sobre a circuncisão (Atos 13; 14; 15:1,2).
Ano
50 - A terceira visita de Paulo a Jerusalém com Barnabé, quatorze anos depois
de sua conversão (Gálatas 2:1). Eles participam do concílio em Jerusalém (Atos
15). Retorno de Paulo e Barnabé à Antioquia, com Judas e Silas (Atos 15:32-35).
Ano
51 - A segunda viagem missionária de Paulo com Silas e Timóteo. Ele parte da
Antioquia para a Síria, Cilícia, Derbe, Listra, Frígia, Galácia e Trôade. Lucas
se une ao grupo apostólico (Atos 16:10).
Ano
52 - Entrada do evangelho na Europa (Atos 16:11-13). Paulo visita Filipos,
Tessalônica, Bereia, Atenas e Corinto. Passa um ano e seis meses em Corinto
(Atos 18:11). A Primeira Epístola aos Tessalonicenses é escrita.
Ano
53 - A Segunda Epístola aos Tessalonicenses é escrita. Paulo deixa Corinto e navega
até Éfeso (Atos 18:18,19).
Ano
54 - A quarta visita de Paulo a Jerusalém para as festas. Retorna à Antioquia.
Anos
54-56 - A terceira viajem missionária de Paulo. Ele parte da Antioquia - visita
a Galácia, Frígia, e chega a Éfeso, onde fica por dois anos e três meses. Aqui
Paulo separa os discípulos da sinagoga judaica (Atos 19:8,10). A Epístola aos
Gálatas é escrita.
Ano
57 - (Primavera) A Primeira Epístola aos Coríntios é escrita. O tumulto em
Éfeso; Paulo parte para a Macedônia (Atos 19:23; 20:1). (Outono) A Segunda
Epístola aos Coríntios é escrita (2 Coríntios 1:8; 2:13,14; 7:5; 8:1; 9:1).
Paulo visita a região do Ilírico; vai a Corinto; passa o inverno ali (Romanos
15:19; 1 Coríntios 16:6).
Ano
58 - (Primavera) A Epístola aos Romanos é escrita (Romanos 15:25-28; 16:21-23;
Atos 20:4). Paulo deixa Corinto; passa pela Macedônia; navega a partir de
Filipos; prega em Trôade; faz um discurso aos anciãos em Mileto; visita Tiro e
Cesareia (Atos 20; 21:1-14).
Anos
58-60 - A quinta visita de Paulo a Jerusalém antes do Pentecostes. Ele é preso
no Templo; levado perante Ananias e o Sinédrio; enviado por Lísias a Cesareia,
onde é mantido em prisão por dois anos.
Ano 60 - Paulo é
ouvido por Félix e Festo. Ele apela para César; prega diante de Agripa e
Berenice, e aos homens de Cesareia. (Outono) Paulo parte de navio para a
Itália. (Inverno)
Neufrágio
em Malta (Atos 27).
Ano
61 - (Primavera) Chega em Roma; habita por dois anos em sua própria casa
alugada.
Ano
62 - (Primavera) As Epístolas a Filemom, aos Colossenses e aos Efésios são
escritas. (Outono) A Epístola aos Filipenses é escrita.
Ano
63 - (Primavera) Absolvição e libertação de Paulo. A Epístola aos Hebreus é
escrita. Paulo parte para uma nova viajem, pretendendo visitar a Ásia Menor e a
Grécia (Filemom 22; Filipenses 2:24).
Ano
64 - Visita Creta e deixa Tito ali; exorta Timóteo a permanecer em Éfeso.
APrimeira Epístola a Timóteo é escrita. A Epístola a Tito é escrita.
Anos
64-67 - Pretende invernar em Nicópolis (Tito 3:12). Visita Trôade, Corinto e
Mileto (2 Timóteo 4:13-20). Paulo é preso e enviado a Roma. Abandonado e
solitário, tendo apenas Lucas, dentre seus velhos associados, com ele. A
Segundo Epístola a Timóteo é escrita, provavelmente não muito tempo antes de
sua morte. Geralmente supõe-se que essas viagens e eventos cobrem um período de
mais ou menos três anos.
Ano
67 - O martírio de Paulo.
O
Incêndio de Roma
ROMA E SEUS GOVERNANTES
(64 D.C. - 177 D.C.)
Como
nossos dois grandes apóstolos, Pedro e Paulo, sofreram o martírio durante
aprimeira perseguição imperial, pode ser interessante para muitos de nossos
leitores saber algo sobre os elementos particulares que conduziram a esse edito
cruel.
Mas
aqui, embora relutantemente, devemos trocar a certeza da Palavra de Deus pelos
escritos incertos dos homens. Passamos, neste momento, do firme e sólido solo
da inspiração para o solo inseguro dos historiadores romanos e da historia
eclesiástica. No entanto, todos os historiadores, tanto antigos quanto
modernos, pagãos e cristãos, concordam quanto aos principais fatos sobre o
incêndio em Roma, e sobre a perseguição aos cristãos.
No
mês de julho do ano de 64 d.C. um grande incêndio irrompeu no Circo Máximo, e
continuou a se espalhar até que deixou em ruínas toda a antiga grandeza da
cidade imperial. As chamas se estenderam com grande rapidez, e sendo Roma uma cidade
de ruas longas e estreitas, e de montes e vales, e tendo o vento ajudado o fogo
a se alastrar, logo se tornou um caos generalizado. Em pouco tempo a cidade
inteira parecia envolta em um mar de chamas ardentes.
Tácito,
um historiador romano daqueles dias, e considerado um dos mais precisos de sua
época, nos conta: "Das quatorze áreas nas quais Roma era dividida, apenas
quatro permaneceram inteiras, três foram reduzidas a cinzas, e dos sete
restantes restou nada mais que um monte de casas destroçadas em meio às
ruínas." O fogo se alastrou furiosamente por seis dias e sete noites.
Palácios, templos, monumentos, as mansões dos ricos e as habitações dos pobres
pereceram nesse fogo fatal. Mas isso não era nada comparado aos sofrimentos dos
habitantes. As doenças da idade, a fraqueza dos jovens, o desamparo dos
doentes, os pavorosos gritos de lamentação das mulheres: tudo se somava à
miséria desta cena terrível. Alguns se esforçaram para prover para si mesmos,
outros para salvar seus amigos, mas nenhum lugar de segurança podia ser
encontrado. Para qual caminho se virar, ou que caminho tomar, ninguém podia
dizer. O fogo se alastrava por todos os lados, de modo que um grande número de
pessoas caíam prostradas nas ruas, lançando-se a uma morte voluntária, e pereciam
nas chamas.
A
questão importante, quanto à origem do fogo, era agora discutida em todos os
lugares. Quase todos acreditavam que a cidade foi queimada por incendiários, e
por ordens do próprio Nero. Era certo que um número de homens foram vistos
estendendo as chamas em vez de extingui-las, afirmando ousadamente que eles
tinham autoridade para fazê-lo. Foi também geralmente relatado que, enquanto
Roma estava em chamas, o desumano monstro Nero permaneceu em uma torre de onde
podia assistir o progresso do incêndio, divertindo-se tocando "A Queda de
Troia" em sua lira favorita.
Muitos
de nossos leitores, sem dúvidas, devem estar se perguntando qual poderia ser o
objetivo de Nero ao incendiar a maior parte de Roma. O objetivo, acreditamos,
era de poder reconstruir a cidade em uma escala de maior magnificência, para
então chamá-la com seu próprio nome. E ele tentou fazer isso imediatamente de
maneira grandiosa. Mas tudo o que ele fez não conseguiu restabelecer-lhe o
favor popular, ou remover a infame acusação de ter incendiado a cidade. E
quando toda a esperança de obter o favor, tanto das pessoas quanto dos deuses,
se acabou, ele partiu para o plano de passar a culpa que tinha para outros. Ele
sabia bem da impopularidade dos cristãos, tanto com os judeus quanto com os
pagãos, para decidir fazer deles seu bode expiatório. Um rumor logo se espalhou
de que os incendiários tinham sido descobertos, e que os cristãos eram os
criminosos. Muitos foram imediatamente presos para que pudessem ser levados à
uma punição à altura, e para satisfazer a indignação popular. Chegamos então à
primeira perseguição sob os imperadores.
A PRIMEIRA PERSEGUIÇÃO SOB OS IMPERADORES
Aqui
podemos fazer uma breve pausa para contemplar o progresso do cristianismo, e o
estado da igreja em Roma nessa época. Muito cedo, e sem o auxílio de qualquer
apóstolo, o cristianismo tinha encontrado o seu caminho até Roma. Sem dúvida,
deve ter sido primeiramente levado por alguém que tinha se convertido por meio
da pregação de Pedro no dia de Pentecostes. Dentre seus ouvintes temos
expressamente mencionados "forasteiros romanos, tanto judeus como
prosélitos" (Atos 2:10). E Paulo, em sua epístola àquela igreja, dá graças
a Deus "porque em todo o mundo é anunciada a vossa fé" (Romanos 1:8).
E em suas saudações ele fala de"Andrônico e Júnias", seus parentes e
companheiros de prisão, que eram homens que se distinguiam entre os apóstolos e
cuja conversão foi anterior à sua própria (Romanos 16:7). Mas grandes
maravilhas tinham sido escritas pelo evangelho no decorrer de trinta anos. Os
cristãos tinham se tornado um povo marcado, separado e peculiar. Eles eram
agora conhecidos como perfeitamente distintos dos judeus, e amargamente negados
por eles.
Os
trabalhos de Paulo e seus companheiros, durante os dois anos de seu aprisionamento,
eram sem dúvida abençoados pelo Senhor para a conversão de muitos; tanto que os
cristãos, nesse tempo, não formavam uma comunidade secreta ou inconsiderada,
mas uma que era conhecida por ter em seu meio tanto judeus quanto gentios de
todas as classes e condições, desde membros da família imperial até escravos
fugitivos. No entanto, seu sofrimento presente, como vimos, não era pelo
cristianismo que professavam. Eles foram, na verdade, sacrificados por Nero
para apaziguar a fúria popular e para se reconciliar com suas divindades
ofendidas.
Essa
foi a primeira perseguição oficial aos cristãos; e, por algumas de suas
características, ela se destaca dentre os anais da barbaridade humana. Uma
crueldade inventiva procurava novas formas de tortura para saciar o sanguinário
Nero - o imperador mais cruel que já reinou. Os calmos, pacíficos e inofensivos
seguidores do Senhor Jesus eram costurados nas peles de feras selvagens e
rasgados por cachorros; outros eram envoltos em um tipo de roupa coberta com cera,
piche e outros materiais inflamáveis, tendo uma estaca debaixo do queixo para
mantê-los na vertical, sendo então incendiados quando chegava a noite, para que
servissem de tochas nos jardins públicos, para divertimento dos populares. Nero
emprestou seus próprios jardins para tais exibições, dando entretenimento ao
povo. Ele tomava parte ativa nos próprios jogos, algumas vezes se misturando à
multidão à pé, e às vezes assistindo o horrível espetáculo de sua carruagem.
Mas o povo, mesmo acostumado a execuções públicas e espetáculos de gladiadores,
começou a se compadecer pelas crueldades sem precedentes infligidas contra os
cristãos. Eles começaram a perceber que os cristãos sofriam, não pelo bem
público, mas para gratificar a crueldade de um monstro. Contudo, por mais
terrível que fosse a morte, ela logo terminaria, e para os cristãos, sem
dúvida, seria então o momento mais feliz de sua existência. Muito, mas muito
tempo antes que as luzes se apagassem no jardim de Nero, os mártires já tinham
chegado ao seu lar e descanso no florescente jardim das eternas delícias de
Deus. Esta preciosa verdade aprendemos do que o Salvador disse ao ladrão
arrependido na cruz - "Hoje estarás comigo no Paraíso." (Lucas
23:43).
Embora
os historiadores não entrem em acordo quanto à extensão ou duração dessa
terrível perseguição, há muitas boas razões para crer que ela se espalhou pelo
império e durou até o fim da vida do tirano. Ele morreu por sua própria mão na
mais absoluta miséria e desespero, em 68 d.C., cerca de quatro anos depois da
queimada de Roma, e um ano após o martírio de Pedro e Paulo. Perto do fim de
seu reinado, os cristãos eram obrigados, sob as mais pesadas penas, até mesmo
de morte, a oferecer sacrifícios ao imperador e aos deuses pagãos. Embora tais
decretos estivessem em vigor, a perseguição deve ter continuado.
Após
a morte de Nero, a perseguição cessou, e os seguidores de Jesus desfrutaram de
relativa paz até o reinado de Domiciano, um imperador que ficava só um pouco
atrás de Nero em termos de maldade. Mas enquanto isso, devemos mudar de assunto
por um momento e tomar nota do cumprimento de um dos avisos mais solenes do
Senhor: a queda de Jerusalém.
A QUEDA DE JERUSALÉM (70 D.C.)
A
dispersão dos judeus e a total destruição de sua cidade e templo são os
próximos eventos a se considerar no restante do primeiro século, embora,
estritamente falando, essa terrível catástrofe não faça parte da história da
igreja, e sim da história dos judeus. No entanto, pelo fato de ter sido um
cumprimento literal da profecia do Salvador, e que afetou de imediato aqueles
judeus que eram cristãos, esse evento merece um lugar em nossa história.
Os
discípulos, antes da morte e ressurreição de Cristo, eram fortemente judaicos
em todos os seus pensamentos e associações. Eles conectavam o Messias ao
templo. Seus pensamentos eram de que Ele deveria libertá-los do poder dos
romanos, e que todas as profecias sobre a terra, as tribos, a cidade e o templo
seriam cumpridas. Mas os judeus rejeitaram o próprio Messias e,
consequentemente, todas as suas próprias esperanças e promessas nEle. As
palavras iniciais de Mateus 24 são muito significativas e importantes: "E,
quando Jesus ia saindo do templo...". O templo estava agora, de fato,
vazio aos olhos de Deus. Tudo o que dava valor a Ele ali agora se foi.
"Eis que a vossa casa vai ficar-vos deserta" (Mateus 23:38). Ela
agora estava pronta para a destruição.
"Aproximaram-se
dele os seus discípulos para lhe mostrarem a estrutura do templo."(Mateus
24:1). Eles ainda se ocupavam com a grandeza e glória externas dessas coisas.
"Jesus, porém, lhes disse: Não vedes tudo isto? Em verdade vos digo que
não ficará aqui pedra sobre pedra que não seja derrubada." (Mateus 24:2).
Essas palavras foram literalmente cumpridas pelos romanos cerca de quarenta anos
depois de terem sido faladas, e da mesma maneira que o Senhor
predisse:"Porque dias virão sobre ti, em que os teus inimigos te cercarão
de trincheiras, e te sitiarão, e te estreitarão de todos os lados; e te
derrubarão, a ti e aos teus filhos que dentro de ti estiverem, e não deixarão
em ti pedra sobre pedra, pois que não conheceste o tempo da tua
visitação." (Lucas 19:43,44)
Depois
dos romanos terem experimentados muitas decepções e derrotas na tentativa de
abrir uma brecha nas muralhas, por causa da desesperada resistência dos judeus
insurgentes e, embora houvesse pouca esperança de tomar a cidade, Tito mesmo
assim convocou um conselho de guerra. Dois planos foram discutidos: invadir
violentamente a cidade imediatamente; consertar os aparatos militares e reconstruir
as máquinas; ou sitiar e induzir a fome na cidade para forçar a rendição. A
última foi a preferida, e todo o exército foi colocado para
"entrincheirar" toda a cidade. Mas o cerco foi longo e difícil. Durou
da primavera até setembro. E durante todo o tempo, as mais sem precedentes
misérias de todo tipo foram experimentas pelos sitiados. Mas afinal chegou o
fim, quando tanto a cidade quanto o templo estavam nas mãos dos romanos. Tito
estava ansioso para tomar o magnificente templo e seus tesouros. Mas, contrários
a suas ordens, um soldado, montado nos ombros de um de seus camaradas, ateou
fogo em uma pequena porta dourada no pátio exterior. As chamas logo se
espalharam. Tito, vendo isto, correu ao lugar o mais rápido que pôde. Ele
gritou, fez sinais para seus soldados para que extinguissem o fogo; mas sua voz
foi abafada, e seus sinais não foram percebidos em meio à terrível confusão. O
esplendor do interior do templo o encheu de admiração e, como as chamas ainda
não tinham chegado ao lugar santo, ele fez um último esforço para salvá-lo,
exortando os soldados a apagar o incêndio; mas era tarde demais. Chamas
ardentes se erguiam por todas as direções, e a feroz excitação da batalha,
somada à insaciável esperança de pilhagem, tinha atingido seu ápice. Tito mal sabia
que Alguém que era maior que ele tinha dito: "Não ficará aqui pedra sobre
pedra que não seja derrubada."(Mateus 24:2). A palavra do Senhor, e não os
comandos de Tito, devia ser obedecida. O templo foi realmente arrasado até as
fundações, de acordo com a palavra do Senhor.
Para
quase todos os aspectos particulares desse terrível cerco, estamos em débito
com Josefo, que estava no acampamento romano e próximo da pessoa de Tito
naquele tempo. Ele agiu como intérprete quando foram tratados os termos entre Tito
e os insurgentes. Os muros e baluartes de Sião pareciam inconquistáveis para os
romanos, e Josefo ansiava muito por um tratado de paz. No entanto, os judeus
rejeitavam cada proposta, até que os romanos finalmente triunfaram. Ao entrar
na cidade, Josefo nos conta que Tito se encheu de admiração pela sua força. De
fato, ao contemplar a sólida altitude das torres, a magnitude de várias das
pedras, e a precisão de suas junções, e ao ver quão grandes eram sua amplitude
e quão vasta sua altura, "Claramente", exclamou Tito, "lutamos
com Deus do nosso lado; e foi Deus quem derrubou os judeus daqueles baluartes,
pois o que as mãos humanas ou maquinas podiam fazer contra aquelas
torres?" Tais foram as confissões do general pagão. Certamente deve ter sido
o cerco mais terrível de toda história do mundo registrada.
Os
relatos dados por Josefo sobre os sofrimentos dos judeus durante o cerco são
horríveis demais para serem transferidos para nossas páginas. Os números que
pereceram sob Vespasiano no país, e sob Tito na cidade, no período de 67-70
d.C., por fome, facções internas e pela espada romana, chegou à casa de
1.350.460, além de cem mil vendidos como escravos. Infelizmente, essas foram as
horríveis consequências da incredulidade e desdém aos apelos solenes, ternos e
a afetuosos de seu próprio Messias. Podemos imaginar as lágrimas do Redentor
derramadas sobre a cidade amada?
E
podemos imaginar as lágrimas dos pregadores de hoje em dia, enquanto apela a
amados pecadores, em vista da vinda e dos juízos eternos? Certamente é de se
maravilhar o fato de que tantas lágrimas sejam derramadas por causa de
pecadores imprudentes, descuidados e perdidos. Ah, que corações sintam como
sentiu o Salvador e que olhas chorem como os dEle!
Os
cristãos, com quem temos mais especialmente que tratar, lembrando-se do aviso
do Senhor, em grupo deixaram Jerusalém antes do cerco ser formado. Eles
viajaram para Pella, uma vila além do Jordão, onde permaneceram até que Adriano
lhes permitiu retornar às ruínas da antiga cidade. E isso nos leva ao fim do
primeiro século.
Durante
os curtos reinados de Vespasiano e de seu filho Tito, o número de cristãos deve
ter crescido consideravelmente. Isto aprendemos, não de algum relato direto que
possamos ter sobre a prosperidades deles, mas das circunstâncias incidentais
que provam isso, e que vamos conhecer em seguida.
O CRUEL REINADO DE DOMICIANO
Domiciano,
o irmão mais novo de Tito, ascendeu ao trono em 81 d.C. No entanto, ele tinha
um temperamento totalmente diferente de seu pai e de seu irmão. Estes toleravam
os cristãos, mas ele os perseguia. Seu caráter era covarde, suspeitoso e cruel.
Ele levantou uma perseguição contra os cristãos por causa de um certo temor
vago e supersticioso que ele nutria sobre a possível aparição de uma pessoa
nascida na Judeia, da família de Davi, e que deveria obter o império do mundo.
Domiciano não poupou nem os romanos de nascimento da mais ilustre e alta
posição que tinham abraçado o cristianismo. Alguns foram martirizados de
imediato, outros foram banidos para serem martirizados no exílio.
Sua
própria sobrinha, Domitila, e seu primo Flávio Clemente, para quem tinha sido
dada em casamento, foram vítimas de sua crueldade por terem abraçado o
evangelho de Cristo. Assim vemos que o cristianismo, pelo poder de Deus, apesar
de exércitos e imperadores, fogo e espada, estava se espalhando, não apenas
entre os de classe média e baixa, mas também entre as classes mais altas.
"Domiciano",
diz Eusébio, o pai da história eclesiástica, "tendo exercido sua crueldade
contra muitos, e injustamente matando não poucos homens nobres e ilustres de
Roma, e tendo, sem causa, punido um vasto número de homens honráveis com o
exílio e a confiscação de suas propriedades, por fim estabeleceu a si mesmo
como o sucessor de Nero em termos de ódio e hostilidade contra Deus." Ele
também seguia Nero ao endeusar a si mesmo. Ele comandou que sua própria estátua
fosse adorada como um deus, reviveu a lei da traição, e pôs em temeroso vigor
suas terríveis provisões: sob tais circunstâncias, cercado de espiões e informantes,
quão terrível deve ter sido essa segunda perseguição aos cristãos!
Mas
o fim desse tirano fraco, vão e desprezível se aproximava. Ele tinha o hábito
de escrever em um rolo os nomes daquelas pessoas que ele destinava à morte,
mantendo-o cuidadosamente aos seus próprios cuidados. E, de modo a desviar a
atenção de suas futuras vítimas, ele os tratava com a mais lisonjeira atenção.
Mas esse rolo fatal foi um dia tomado de debaixo de uma almofada em que ele
estava dormindo por uma criança que estava brincando no apartamento, que então
o levou à imperatriz. Ela foi atingida com espanto e alarme ao encontrar seu
próprio nome na lista negra, juntamente com os nomes de outros que eram
aparentemente elevados em seu favor.
Assim,
a imperatriz comunicou o conhecimento de seu perigo, e não obstante toda a
precaução que a covardia e astúcia podia sugerir, ele foi expulso por dois
oficiais de sua própria casa.
O CURTO PORÉM PACÍFICO REINADO DE NERVA
No
mesmo dia da morte de Domiciano, Nerva foi
escolhido pelo Senado para ser o imperador, em 18 de setembro de 96 d.C. Ele
era um homem de reputação irrepreensível. O caráter de seu reinado foi o mais
favorável para a paz e prosperidade da igreja de Deus. Os cristãos que tinham
sido banidos por Domiciano foram chamados de volta, e recuperaram suas
propriedades confiscadas. O apóstolo João retornou de seu banimento na ilha de
Patmos, retornando ao seu lugar de serviço entre as igrejas na Ásia. Ele viveu
até o reinado de Trajano quando, em idade avançada de cerca de 100 anos,
adormeceu em Jesus.
Nerva
iniciou seu reinado remediando as injustiças, repelindo os estatutos iníquos,
decretando boas leis, e dispensando favores com grande liberalidade. No
entanto, sentindo-se inadequado quanto aos deveres de sua posição, adotou
Trajano como colega e sucessor ao império, e morreu no ano 98 d.C.
A CONDIÇÃO DOS CRISTÃOS DURANTE O
REINADO DE TRAJANO (98-117 D.C.)
Uma
vez que a história externa da igreja tenha sido afetada pela vontade de um
homem, será portanto necessário observar, embora brevemente, a disposição da
paixão pelo governo do príncipe reinante. A condição dos cristãos em todo lugar
dependia, em grande parte, daquele que era o mestre do mundo romano, e de certo
modo do mundo todo. Ainda assim, Deus estava e está acima de tudo.
Trajano
foi um imperador de grande renome. Talvez nunca mais alguém assim tenha se
sentado no trono dos Césares. O mundo romano, dizem, alcançou seus mais amplos
limites por suas vitórias. Ele fez com que o terror das armas e da disciplina
romana fossem sentidas nas fronteiras, como nunca antes tinha sido feito. Ele
foi, portanto, um grande general e soberano militar; e, possuindo uma grande e
vigorosa mente, ele foi um governante capaz, fazendo Roma florescer sob sua
influência. No entanto, na história da igreja, essa personagem aparece em uma
luz menos favorável. Ele tinha um preconceito confirmado contra o cristianismo,
e sancionou a perseguição aos cristãos. Alguns dizem que ele anelava a extinção
desse nome. Esta é a mancha mais profunda que repousa sobre a memória de
Trajano.
Mas
o cristianismo, apesar dos imperadores romanos, das prisões romanas e das
execuções romanas, prosseguiu em sua silente e firme caminhada. Em pouco mais
que setenta anos depois da morte de Cristo, o cristianismo tinha feito tão
rápidos progressos em alguns lugares que chegavam a ameaçar a queda do
paganismo. Os templos pagãos estavam desertos, a adoração aos deuses foi
negligenciada, e as vitimas para os sacrifícios eram raramente compradas. Isto
naturalmente levantou um clamor popular contra o cristianismo, assim como houve
em Éfeso: "E não somente há o perigo de que a nossa profissão caia em
descrédito, mas também de que o próprio templo da grande deusa Diana seja
estimado em nada." (Atos 19:27). Aqueles cujo sustento dependia da
adoração das divindades pagãs lançavam muitas e graves acusações contra os
cristãos perante os governantes. Isto aconteceu mais especialmente nas
províncias asiáticas onde o cristianismo foi mais prevalente.
Por
volta do ano 110, muitos cristãos foram então levados perante o tribunal de Plínio,
o Jovem, o governador de Bitínia e Ponto. Mas Plínio, sendo naturalmente um
homem sábio, cândido e humano, teve o cuidado de se informar sobre os
princípios e práticas dos cristãos. Quando ele descobriu que muitos deles foram
condenados à morte, não tendo nada que os condenasse por qualquer crime
público, ele ficou imensamente embaraçado. Ele não tinha tomado parte em tais
assuntos antes, e nenhuma lei sobre o assunto existia até então. Os decretos de
Nero tinham sido repelidos pelo Senado, e aqueles de Domiciano pelo seu
sucessor, Nerva. Sob tais circunstâncias, Plínio buscou o conselho de seu
mestre, o imperador Trajano. As cartas que eles trocaram, sendo justamente
consideradas como os mais valiosos registros da historia da igreja durante
aquele período, merece um lugar em nosso livro. Mas podemos apenas transcrever
uma parte da celebrada epístola de Plínio, e principalmente aquelas partes que
se referem ao caráter dos cristãos, e a extensão do cristianismo.
CARTA DE PLÍNIO AO IMPERADOR TRAJANO
"Saúde.
É meu costume usual, senhor, consultá-lo em todas as coisas das quais tenho
qualquer dúvida. Pois quem pode melhor dirigir meu julgamento e sua hesitação,
ou instruir meu entendimento em sua ignorância? Eu nunca tive a chance de estar
presente em qualquer julgamento de cristãos antes de chegar a esta província.
Estou, portanto, perdido em determinar qual o assunto corrente, quer de
inquérito ou de punição, e que duração qualquer um deles deveria ter... Enquanto
isso, este tem sido meu método com respeito àqueles que foram trazidos diante
de mim por serem cristãos. Perguntei-lhes se eram cristãos:
caso
se declarassem culpados, eu os interrogava - uma segunda e uma terceira vez -
com uma ameaça de pena capital. Em caso de perseverança obstinada, eu ordenei
que fossem executados... Um 'libelo' anônimo foi publicado, contendo os nomes
de muitos que negavam que eles eram, ou tinham sido, cristãos, e invocavam os
deuses, como ordenei que fizessem, e rezavam para tua imagem com incenso e
vinho, e além disso insultavam o Cristo; enfim, coisas que tenho ouvido que
jamais um cristão seria compelido a fazer. Então achei adequado dispensar
estes... A totalidade do crime ou erro dos cristãos se baseia nisso: eles estão
acostumados a se reunir antes do dia amanhecer, e a cantar juntos um hino a
Cristo, como a um deus, e se comprometer através de juramento a não cometer
qualquer maldade, a não ser culpado de furto, ou roubo, ou adultério; a nunca
falsificar sua palavra, nem se negar a devolver um penhor quando solicitados a
fazê-lo. Quando essas coisas eram feitas, era o costume deles se separarem, e
então voltarem a se reunir para uma refeição inofensiva, da qual participavam
em comum sem qualquer desordem. Mas desta última prática eles deixaram de
participar desde a publicação de meu decreto, pelo qual, de acordo com minhas
ordens, proibi tais assembleias."
"Após
este relato, julguei mais necessário examinar, e por tortura, duas mulheres que
diziam ser diaconisas, mas não tenho descoberto nada exceto uma má e excessiva
superstição. Suspendendo, portanto, todos os processos judiciais, recorro a ti
para aconselhar-me. O número de acusados é tão grande que foi necessária esta
séria consulta. Muitas pessoas estão sendo denunciadas, de todas as idades e
classes, e de ambos os sexos, e muitos ainda irão ser acusados. O contágio
dessa superstição não tem atingido apenas as grandes cidades, mas também as
cidades menores, e o campo:
no
entanto, parece-me que pode ser contido e corrigido. É certo que os templos que
estavam quase abandonados começaram a ser mais frequentados, e as solenidades
sagradas, após um longo intervalo, estão revividas. Vítimas para os
sacrifícios, da mesma forma, tem sido trazidas de todos os lugares, embora
ainda haja poucos compradores. Daí podemos facilmente imaginar o número
daqueles que podem ser recuperados se o perdão for concedido àqueles que se
arrependem."
CARTA DE TRAJANO PARA PLÍNIO
"Você
agiu perfeitamente correto, meu caro Plínio, na pergunta que me fez a respeito
dos cristãos. Pois, realmente, não há uma regra geral que possa ser prevista
para ser aplicada a todos os casos. Essas pessoas não dever ser procuradas: se
forem trazidas diante de você e estiverem convictos, que seja aplicada pena
capital, mas com essa restrição: que se alguém renunciar ao cristianismo, e
evidenciar sua sinceridade suplicando aos nossos deuses, por mais suspeito que
tenha sido no passado, que seja perdoado por seu arrependimento. Mas libelos
anônimos em nenhum caso devem ser levados em consideração, pois é um precedente
muito perigoso e perfeitamente incongruente com as máximas de nossa era."
O
testemunho claro e insuspeito dessas duas cartas desperta pensamentos e
sentimentos do mais profundo interesse na mente cristã de hoje em dia. A
Primeira Epístola de Pedro foi endereçada aos pais desses santos sofredores, e
possivelmente a alguns dos que ainda estavam vivos. E não é improvável que
Pedro tenha trabalhado entre eles pessoalmente. Assim eles foram ensinados e
encorajados de antemão a dar ao governador romano "a razão da esperança
que havia neles com mansidão e temor" (1 Pedro 3:15). De fato, a
totalidade da primeira epístola parece divinamente equipada para fortalecer
aqueles cristãos inocentes contra o injusto e irracional proceder de Plínio.
"Ora, pois, já que Cristo padeceu por nós na carne, armai-vos também vós
com este mesmo pensamento" (1 Pedro 4:1). Pedro contempla em sua epístola
a família da fé como se estivesse em uma jornada através do deserto, e Deus
como o supremo Governador sobre todos - tanto crente como incrédulos.
"Porque os olhos do Senhor estão sobre os justos, e os seus ouvidos
atentos às suas orações; mas o rosto do Senhor é contra os que fazem o
mal." (1 Pedro 3:12). Com tal cena diante de nós, e com tais testemunhas,
levando em consideração a posição de Trajano e Plínio como estadistas pagãos,
pode ser interessante indagar nessa fase tão inicial de nossa história qual a
real causa da perseguição.
A VERDADEIRA CAUSA DA PERSEGUIÇÃO
Embora
diferentes razões possam ser dadas por diferentes pessoas e governos para
perseguir os cristãos, ainda assim cremos que a verdadeira causa é a inimizade
do coração contra Cristo e Sua verdade, como vista nas vidas piedosas de Seu
povo. Além disso, a luz deles torna manifesta a escuridão ao redor, e expõe e
reprova as inconsistências dos falsos professos e as vidas ímpias dos malignos.
O inimigo, tomando ocasião por essas coisas, desperta as paixões cruéis
daqueles que tinham o poder para apagar a luz ao perseguirem os portadores da
luz. "Porque todo aquele que faz o mal odeia a luz" (João 3:20). Tal
tem sido a experiência de todos os cristãos, em todas as épocas, tanto em
tempos de paz quanto em tempos de angústia. Não há isenção de perseguição,
secreta ou abertamente, se vivermos de acordo com o Espírito e a verdade de
Cristo. Dentre as últimas palavras que o grande apóstolo escreveu estavam
estas:
"E
também todos os que piamente querem viver em Cristo Jesus padecerão perseguições."
(2 Timóteo 3:12)
Estas
verdades divinas, dadas para a instrução e direção da igreja em todas as eras,
foram admiravelmente ilustradas no caso de Plínio e dos cristãos da Bitínia.
Ele é citado por todos os historiadores como um dos mais esclarecidos,
virtuosos e realizados homens da antiguidade. Ele foi também possuidor de
grandes riquezas, e tinha a reputação de ser muito liberal e benevolente em sua
vida privada. Por que então, podemos perguntar, sendo um estadista e governador
romano, ele se tornou um tal perseguidor dos cristãos? Esta pergunta ele responde
em sua própria carta. Foi simplesmente pela fé deles em Cristo - nada mais.
Tinha sido provado a ele, tanto por amigos quanto por inimigos, que os cristãos
não eram culpados de mal algum, nem moralmente, socialmente e politicamente.
Fazendo três vezes a pergunta"Vocês são cristãos?", e se eles
firmemente afirmassem que eram, ele os condenava à morte. O único pretexto que
ele deu para cobrir a injustiça de sua conduta como governador era o fato de
que os cristãos professavam obstinadamente uma religião não estabelecida pelas
leis do império.
Muitos,
por causa de malícia privada e outras razões, eram nesse tempo anonimamente
acusados de serem cristãos, sendo que de fato não eram. Estes eram testados
sendo chamados para negar sua fé, oferecer incenso aos deuses, adorar a imagem
do imperador, e insultar a Cristo. Todos os que se conformavam a esses termos
eram dispensados. Mas a nenhuma dessas coisas, como o próprio Plínio dá
testemunho, podiam ser os verdadeiros cristãos compelidos a fazer. Ele, em seguida,
recorreu ao costume brutal de examinar pessoas inocentes por tortura.
Duas
mulheres, notáveis servas da igreja, foram então examinadas. Mas, em vez da
esperada confissão sobre o rumoroso caráter sedicioso (revoltoso) e licencioso
(desregrado) de suas reuniões, nada desfavorável à comunidade cristã podia ser
extraído delas por tortura. O governador não podia detectar nada por quaisquer
meios tentados, exceto o que ele chama de "uma superstição perversa e
extravagante".
Também
deve-se ter em mente, tanto pelo crédito como também pela culpa mais profunda
de Plínio, que ele não procedeu contra os cristãos por mero preconceito popular
- ao contrário de seu amigo Tácito, que se deixou levar pelos rumores e, sem
qualquer investigação mais profunda, escreveu contra o cristianismo da maneira
mais irracional e desgraçada. Mas Plínio considerou como dever entrar em
cuidadosa investigação sobre toda a questão antes de dar seu julgamento. Como,
então, podemos explicar que tal homem, aparentemente desejoso de agir de forma
imparcial, pudesse perseguir até a morte pessoas inocentes? Para responder esta
pergunta, devemos investigar as causas externas ou ostensivas da perseguição.
AS CAUSAS OSTENSIVAS DA PERSEGUIÇÃO
Os
romanos professavam tolerar todas as religiões, e que a comunidade não tinha
nada a temer. Esta era a vangloriosa liberalidade que professavam. Até mesmo
aos judeus eram permitidos viver de acordo com suas próprias leis. O que foi
que aconteceu então, podemos nos perguntar, que pode ter causado toda a severidade
deles contra os cristãos? Tinha a comunidade algo a temer deles? Havia algo a
temer daqueles cujas vidas eram irrepreensíveis, cujas doutrinas era a pura
verdade do céu, e cuja religião era propícia ao bem-estar das pessoas, tanto de
modo público como privado?
Os
seguintes pontos podem ser considerados como algumas das inevitáveis causas da
perseguição, olhando para os dois lados da questão:
1.
O cristianismo, ao contrário de todas as religiões que a precederam, era
agressivo em seu caráter. O judaísmo era exclusivo: a religião de uma nação só.
O cristianismo era proclamado como a religião da humanidade, ou do mundo todo.
Isto era algo inteiramente novo na terra. "Ide por todo o mundo, pregai o
evangelho a toda criatura." (Marcos 16:15), este era o mandamento do
Senhor para seus discípulos. Eles deviam prosseguir e guerrear contra o erro em
todas as suas formas e em todas as suas obras. A conquista a ser feita era o
coração para Cristo. "As armas da nossa milícia", diz o apóstolo,
"não são carnais, mas sim poderosas em Deus para destruição das
fortalezas; destruindo os conselhos, e toda a altivez que se levanta contra o
conhecimento de Deus, e levando cativo todo o entendimento à obediência de
Cristo." (2 Coríntios 10:4,5). Nessa guerra de agressão contra as
instituições existentes, e contra os hábitos corruptos dos pagãos, os
discípulos de Jesus tinham pouco a esperar além de resistência, perseguição e
sofrimento.
2.
A religião pagã, a qual o cristianismo estava rapidamente prejudicando e
destinando à queda, era uma instituição do Estado. Ela estava tão intimamente
entrelaçada com todo o sistema civil e social que atacar esta religião era
entrar em conflito com ambos os sistemas civil e social. E foi exatamente isto
que aconteceu. Se a igreja primitiva fosse tão acomodada com o mundo como é a
cristandade hoje, muita perseguição poderia ter sido evitada. Mas a hora não
tinha chegado para tal frouxo acomodamento. O evangelho que os cristãos então
pregavam, e a pureza da doutrina e da vida que mantinham, abalaram o próprio
fundamento da velha e profundamente enraizada religião do Estado.
3.
Os cristãos naturalmente se separavam dos pagãos. Eles se tornaram um povo
separado e distinto. Eles não podiam fazer nada além de condenar e abominar o
politeísmo como algo totalmente oposto ao único e verdadeiro Deus, e ao
evangelho de Seu Filho Jesus Cristo. Isto deu aos romanos a ideia de que os
cristãos eram hostis à raça humana, vendo que condenavam todas as religiões,
menos a sua própria. Portanto, diz-se que eles eram chamados de
"ateus", pois não acreditavam nas divindades pagãs e ridicularizavam
a adoração pagã.
4.
Simplicidade e humildade caracterizavam a adoração cristã. Eles pacificamente
se reuniam antes do sol nascer ou após o sol se pôr para evitar ofender os demais.
Eles cantavam hinos a Cristo como Deus, eles partiam o pão em memória de Seu
amor ao morrer por eles, eles edificavam-se uns aos outros e comprometiam-se a
uma vida de santidade. Mas eles não tinham templos bonitos, nem estátuas, nem
ordens sacerdotais, e nem vítimas para oferecer em sacrifício. O contraste
entre a adoração deles e a de todos os outros no império se tornou muito claro.
Os pagãos, em sua ignorância, concluíram que os cristãos não tinham nenhuma
religião, e que suas reuniões secretas tinham o pior dos propósitos. O mundo
agora, assim como naquela época, diria daqueles que adoram a Deus em espírito e
em verdade que "essas pessoas não tem nenhuma religião". A adoração
cristã, em verdadeira simplicidade, sem o auxílio de templos e sacerdotes,
ritos e cerimônias, não é muito melhor compreendida agora pela cristandade
professa do que era pela Roma pagã daquela época. Continua sendo verdade que
"Deus é Espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em
verdade." (João 4:24)
5.
Pelo progresso do cristianismo, os interesses temporais de um grande número de
pessoas foram seriamente afetados. Isto era uma fonte fecunda e amarga de
perseguição. Uma incontável multidão de sacerdotes, fabricantes de imagens,
comerciantes, adivinhos, augures e artesãos ganhavam uma boa vida pela
existência da adoração de tantas divindades.
6.
Todos estes, vendo seu trabalho e fonte de renda em perigo, se levantaram em
força unida contra os cristãos, e procuraram por todos os meios deter o
progresso do cristianismo. Eles inventaram e disseminaram as mais vis calúnias
contra tudo o que era cristão. Os astutos sacerdotes e adivinhos facilmente
persuadiam os vulgares e a mente do público em geral de que todas as guerras,
tempestades e doenças que afligem a humanidade foram enviadas sobre eles por
deuses raivosos, porque os cristãos que desprezavam a autoridade deles eram
tolerados em todo lugar.
Muitas
outras coisas poderiam ser mencionadas, mas estas eram, em todo lugar, as
causas diárias dos sofrimentos dos cristãos, tanto publicamente quanto em
privado. Da verdade desses fatos um momento de reflexão é capaz de convencer
qualquer leitor. Mas a fé podia ver a mão do Senhor e ouvir Sua voz em tudo:
"Eis que vos envio como ovelhas ao meio de lobos... eles vos entregarão
aos sinédrios, e vos açoitarão nas suas sinagogas; e sereis até conduzidos à
presença dos governadores, e dos reis, por causa de mim, para lhes servir de
testemunho a eles, e aos gentios... Não cuideis que vim trazer a paz à terra;
não vim trazer paz, mas espada." (Mateus 10:16-34)
Nota. do T.: Apesar do capítulo 10 de Mateus,
assim como Marcos 16:15, dizerem respeito à comissão dos judeus e ao evangelho
do reino, é evidente que muitos pontos podem ser aplicados também aos cristãos,
e descrevem muito bem o sofrimento e perseguição sofridas por causa do nome de
Cristo. O caráter judaico e a pregação do evangelho do reino (e não o evangelho
da graça de Atos 16:31) de Mateus 10 podem ser facilmente observados por uma
leitura atenciosa e em oração: "Não ireis pelo caminho dos gentios, nem
entrareis em cidade de samaritanos; mas ide antes às ovelhas perdidas da casa
de Israel; E, indo, pregai, dizendo: É chegado o reino dos céus... E odiados de
todos sereis por causa do meu nome; mas aquele que perseverar até ao fim será
salvo. Quando pois vos perseguirem nesta cidade, fugi para outra; porque em
verdade vos digo que não acabareis de percorrer as cidades de Israel sem que
venha o Filho do homem." (Mateus 10:5-7, 22-23).
O RÁPIDO PROGRESSO DO CRISTIANISMO
Sem
dúvidas, as causas e meios foram divinos. Eles provam ser assim. O Espírito de
Deus, que desceu em poder no dia de Pentecostes, e que tinha tomado Sua morada
na igreja e em cada cristão individualmente, é a verdadeira fonte de todo o
sucesso na pregação do evangelho, na conversão das almas, e no testemunho para
Cristo contra o mal. "Não por força nem por violência, mas sim pelo meu
Espírito, diz o Senhor" (Zacarias 4:6). Além disso, o Senhor prometeu
estar com Seu povo o tempo todo: "E eis que eu estou convosco todos os
dias, até a consumação dos séculos." (Mateus 28:20). Mas nosso objetivo
aqui é olhar para as coisas historicamente, e não apenas com a segurança da fé:
1.
Uma das grandes causas da rápida propagação do cristianismo é sua perfeita
adaptação ao homem em qualquer idade, em qualquer país, e em qualquer
condição.Ele aborda todos como perdidos, e supõe uma falta em todos. Assim, ele
se adapta ao judeu e ao gentio, ao rei e ao súdito, aos sacerdotes e ao povo,
ao rico e ao pobre, ao jovem e ao velho, ao erudito e ao ignorante, ao moral e
ao devasso. É a religião de Deus para o coração, e ali firma Sua soberania, e a
Sua apenas. Ele se anuncia como o "poder de Deus para salvação de todo
aquele que crê"(Romanos 1:16). Ele propõe levantar o homem das profundezas
mais profundas de degradação para as alturas mais elevadas da glória
eterna.Quem é capaz de estimar, apesar de todo preconceito, o efeito da
proclamação de tal evangelho a pagãos miseráveis e ignorantes? Milhares,
milhões, cansados de uma religião sem valor e desgastada, responderam à voz
celestial, foram reunidos em torno do nome de Jesus, tomaram com alegria o
espólio de seus bens, e estavam prontos para sofrer por amor a Ele. O amor
reinava na nova religião, e o ódio na antiga.
2.
A confirmação e manutenção de todas as relações terrenas que estivessem de
acordo com Deus é outro motivo para a aceitação do evangelho entre os pagãos.
Cada um era exortado a permanecer em seus relacionamentos e a procurar
glorificar a Deus neles. As bênçãos do cristianismo para as esposas, filhos e
servos são indescritíveis. Seu amor, felicidade e conforto eram um espanto para
os pagãos, e uma novidade entre eles. Ainda assim, tudo era natural e ordenado.
Um cristão, que dizem ter vivido nessa época - no início do segundo século -
descreve assim seus contemporâneos: "Os cristãos não são separados dos
outros homens pelo lugar onde moram, por língua ou por costumes. Eles não moram
em um lugar especial na cidade, eles não usam uma linguagem diferente ou
assumem um estilo de vida extravagante. Eles habitam nas cidades dos gregos, e
dos bárbaros... e embora se adaptem aos costumes da região, no que diz respeito
ao modo de vestir, à comida, e outras coisas que pertencem à vida exterior,
eles ainda assim mostram uma conduta peculiar que é maravilhosa e marcante para
todos. Eles obedecem as leis existentes, e superam a lei pela forma com que
vivem."
3.
As vidas irrepreensíveis dos cristãos, a pureza divina de suas doutrinas, sua
paciência, alegre resistência a sofrimentos piores que a morte, assim como a
própria morte, seu desprezo por qualquer objeto de ambição comum, sua ousadia
na fé a ponto de correrem risco de vida, crédito e propriedades; estes eram os
principais recursos na rápida disseminação do cristianismo. "Pois quem",
diz Tertuliano, "ao observar tais coisas, não é impelido a investigar a
causa? E quem, tendo investigado, não abraça o cristianismo, e tendo abraçado,
não tem o desejo de sofrer por isso?"
Essas
poucas indicações permitirão ao leitor formar um juízo mais definitivo quanto
ao que, por um lado, tendia a impedir, e o que, por outro lado, tendia a
promover o progresso do evangelho de Cristo. Nada pode ser mais interessante
para a mente cristã que o estudo dessa grande e gloriosa obra. Os obreiros do
Senhor, em sua maioria, eram homens simples e iletrados; eram pobres, sem
amigos e destituídos de toda a ajuda humana; e ainda assim, em pouco tempo,
persuadiram uma grande parte da humanidade a abandonar a religião de seus
ancestrais, e a abraçar uma nova religião que é oposta às disposições naturais
dos homens, aos prazeres do mundo, e aos estabelecidos costumes das eras. Quem
poderia questionar o poder que vinha de dentro do cristianismo tendo tais fatos
exteriores diante de si? Certamente foi o Espírito de Deus que revestiu de
poder as palavras daqueles primeiros pregadores! Certamente a força deles nas
mentes dos homens era divina. Uma mudança completa foi produzida: foram
nascidos de novo - criados de novo em Cristo Jesus.
Em
menos de cem anos a partir do dia de Pentecostes, o evangelho tinha penetrado
na maioria das províncias do império romano, e foi largamente difundido em
muitos delas. Em nosso breve resumo da vida de Paulo, e na tabela cronológica
de suas missões, traçamos o primeiro plantio de muitas igrejas, e a propagação
da verdade em muitas regiões. Nas grandes cidades centrais, tais como a
Antioquia na Síria, Éfeso na Ásia, e Corinto na Grécia, vimos o cristianismo
bem estabelecido, e espalhando suas ricas bênçãos entre as cidades e vilas
vizinhas.
Também
aprendemos, da antiguidade eclesiástica, que Cartago era para a África o mesmo
que essas cidades eram para a Síria, Ásia e Grécia. Quando Escápula, o
presidente de Cartago, ameaçou os cristãos com tratamento severo e cruel,
Tertuliano, em um de seus veementes apelos, tentou fazê-lo refletir: "O
que pretendes fazer", diz ele, "com tantos milhares de homens e
mulheres de todas as idades e dignidades, por mais que livremente se ofereçam a
si mesmos? Quantas fogueiras e espadas ainda serão necessárias? O que Cartago é
capaz de sofrer se for dizimada por ti? Quando todos encontrarem ali o seu
parente mais próximo e vizinhos, verá matronas e possivelmente homens de sua
própria classe social e condição, e as pessoas mais importantes, também
parentes ou amigos daqueles que são teus amigos mais próximos. Poupe-os então,
por isso, para o seu próprio bem, se não para o nosso."
O MARTÍRIO DE INÁCIO
Não
há nenhum fato do início da história da igreja mais sagradamente preservado
Nota.
do T.: com exceção das próprias Escrituras} que o martírio de Inácio, o bispo*
da Antioquia. E não há narrativa mais celebrada que sua viagem, como
prisioneiro em correntes, da Antioquia para Roma.
Nota.
do T.: bispo significa "supervisor" ou "ancião" de uma
assembleia (igreja) local. Na Palavra de Deus, o bispo ou ancião nunca aparece
como um cargo eclesiástico assalariado (como inventaram os homens no decorrer
dos séculos), mas sim como simplesmente um ofício (ou papel) exercido em uma
assembleia. Para saber mais leia: Anciaos, Presbiteros [Bispos] e Guias,
Existem anciaos hoje?
De
acordo com a opinião geral dos historiadores, o imperador Trajano, em seu
caminho para a guerra da Pártia no ano 107, visitou Antioquia. Por que causa é
difícil dizer, mas aparentemente os cristãos foram ameaçados de perseguição por
suas ordens. Inácio, portanto, preocupado pela igreja em Antioquia, desejou ser
introduzido à presença de Trajano. Seu grande objetivo era prevenir, se
possível, a perseguição ameaçada. Com este objetivo em vista, ele apresentou ao
imperador o verdadeiro caráter e condição dos cristãos, e se ofereceu a si
mesmo para sofrer no lugar deles.
Os
detalhes da marcante entrevista são dados em muitas relatos sobre a história da
igreja, mas existe um certo ar de suspeita sobre eles que nos absteremos de
inserir aqui. De qualquer modo, a história acabou na condenação de Inácio. Ele
foi sentenciado pelo imperador a ser levado a Roma, e lançado às feras
selvagens para o entretenimento do povo. Ele recebeu a cruel sentença sem
reclamar, e de bom grado submeteu-se às cadeias, crendo ser assim por sua fé em
Cristo e como um sacrifício pelos santos.
Inácio
estava agora sob custódia de dez soldados, que parecem ter ignorado sua idade,
tratando-o com grande dureza. Ele tinha sido um bispo da Antioquia por quase
quarenta anos, e portanto devia ser um homem idoso. Mas eles o levaram
grosseiramente por uma longa viagem, tanto por mar quanto por terra, de modo a
chegar a Roma antes dos jogos terminarem. Ele chegou no último dia do festival,
e foi logo levado ao anfiteatro, onde sofreu, de acordo com sua sentença, à
vista dos espectadores reunidos. E então, o cansado peregrino encontrou o
descanso das fadigas de sua longa viagem no bendito repouso do paraíso de Deus.
Alguns
têm perguntado o porquê de Inácio ter sido levado pelo longo caminho da
Antioquia até Roma para sofrer o martírio. A resposta só pode ser conjectura.
Pode ter sido com a intenção de infundir medo aos outros cristãos, pelo
espetáculo de alguém tão eminente e tão conhecido ser levado em correntes a uma
morte terrível e degradante. Mas se esta foi a expectativa do Imperador, ele
deve ter ficado inteiramente desapontado. O martírio de Inácio teve justamente
o efeito oposto. Notícias sobre sua sentença e sobre sua rota se disseminaram
amplamente, e representantes das igrejas das proximidades foram enviados para
encontrá-lo em pontos convenientes durante a viagem. Ele foi, então, saudado e
encorajado com calorosas felicitações de seus irmãos; e eles, em troca, se
alegraram em ver o venerável bispo e em receber sua bênção de despedida. Muitos
dos santos se sentiriam encorajados a enfrentar, e até mesmo a desejar, uma
morte de mártir e uma coroa de mártir. Dentre os que o encontraram pelo caminho
estavam Policarpo, bispo de Esmirna que, assim como Inácio, tinha sido um
discípulo do apóstolo João, e estava também destinado a ser um mártir pelo
evangelho.
Mas
além desses encontros pessoais, dizem que ele escreveu sete cartas durante essa
viagem, que foram preservadas pela providência divina e chegaram até nós.
Sempre houve grande interesse, e ainda há, nessas cartas.
OS ESCRITOS DOS PAIS E
AS ESCRITURAS SAGRADAS
Mas,
embora Inácio possa ser digno de honra como um homem santo de Deus, e como um
nobre mártir de Cristo, devemos nos lembrar que suas cartas não são a Palavra
de Deus. Elas podem nos interessar e nos instruir, mas não podem comandar nossa
fé. Esta pode apenas se firmar no sólido fundamento da Palavra de Deus, e nunca
no frágil solo da tradição. "As Escrituras permanecem à parte", disse
alguém, "em majestoso isolamento, preeminente em instrução, e separado por
uma excelência inigualável de tudo o que foi escrito pelos pais apostólicos: de
modo que esses que seguiram de perto os apóstolos nos deixaram escritos que são
mais para nossa advertência do que para nossa edificação". Ao mesmo tempo,
esses primeiros escritores cristãos têm todo direito ao respeito e veneração
com os quais a antiguidade os investiu. Eles eram contemporâneos dos apóstolos,
eles desfrutaram do privilégio de ouvir seus ensinos, compartilhavam com eles
os labores do evangelho, e conversaram livremente com eles no dia a dia. Paulo
fala de um Clemente - um que é conhecido como pai apostólico - como um de
seus"cooperadores, cujos nomes estão no livro da vida", e o que ele
diz de Timóteo pode ter sido pelo menos em parte verdade para muitos outros:
"Tu, porém, tens seguido a minha doutrina, modo de viver, intenção, fé,
longanimidade, amor, paciência, perseguições e aflições." (Filipenses 4:3,
2 Timóteo 3:10,11)
Desses
que tinham tão alto privilégio deveríamos naturalmente esperar a sã doutrina
apostólica - uma fiel repetição das verdades e instruções que foram entregues a
eles pelos apóstolos inspirados. Mas, infelizmente, este não é o caso! Inácio
foi um dos primeiros pais apostólicos. Ele se tornou um bispo de Antioquia, a
metrópole da Síria, por volta do ano 70. Ele era um discípulo do apóstolo João,
e morreu apenas cerca de 7 anos após a morte de João. Certamente de alguém
assim poderíamos esperar uma estreita semelhança com os ensinos do apóstolo,
mas isso não acontece. As afirmações definitivas e absolutas das Escrituras,
vindas diretamente de Deus para a alma, são muito diferentes dos escritos de
Inácio e de todos os Pais. Nosso único guia seguro e certo é a Palavra de Deus.
Quão conveniente, então, é a palavra na Primeira Epístola de João:
"Portanto, o que desde o princípio ouvistes permaneça em vós. Se em vós
permanecer o que desde o princípio ouvistes, também permanecereis no Filho e no
Pai." (1 João 2:24). Esta passagem evidentemente se refere mais
especialmente à pessoa de Cristo, e consequentemente às Escrituras do Novo
Testamento, nas quais temos a revelação do Pai no Filho, feito conhecido a nós
pelo Espírito Santo. Nas Epístolas de Paulo, temos mais plenamente revelados os
conselhos de Deus relacionados à igreja, a Israel e aos gentios, de modo que
podemos ir mais longe do que "os Pais" para encontrar o verdadeiro
fundamento da fé; devemos voltar àquilo que existia desde "O
Princípio". Nada tem autoridade divina direta para o crente além daquilo
que era "desde o princípio". Isto por si só assegura que continuemos
"no Filho e no Pai".
As
epístolas de Inácio têm sido muito estimadas pelos episcopais como a principal
autoridade no sistema da igreja inglesa {*N. do T.: e certamente para muitas
outras seitas cristãs}, e essa é a nossa desculpa para se referir tanto a este
"pai" {*N. do T.: O escritor deste livro vivia na Inglaterra no
século XIX}. Quase todos os fundamentos do anglicanismo em favor do episcopado
vêm de suas cartas. Ele bate tanto a tecla na submissão à autoridade episcopal,
e tanto a exalta, que muitos têm sido induzidos a questionar completamente sua
autenticidade, e outros têm suposto que essas cartas devem ter sido bastante
alteradas para servir aos interesses do clero. Mas quanto a essas controvérsias
não temos nada a tratar em nosso livro.
OS REINADOS DE ADRIANO E
DOS ANTONINOS (DO ANO 117 AO 180 D.C.)
Embora
seria injusto classificar Adriano e o primeiro Antonino com os sistemáticos
perseguidores da igreja, ainda assim os cristãos foram expostos aos mais
violentos sofrimentos e morte durante o domínio deles. O costume cruel de
atribuir todas as calamidades públicas aos cristãos, e de pedir pelo sangue
deles como expiação para as divindades ofendidas, continuavam, e eram
geralmente cedidas pelos governantes locais, e não controladas pelos
indiferentes imperadores. Mas sob o reinado do segundo Antonino, Marco Aurélio,
o espírito maligno da perseguição aumentou drasticamente. Não era mais
confinada às explosões da fúria popular, como também era encorajada pelas mais
altas autoridades. A tímida proteção que os decretos ambíguos de Trajano,
Adriano e dos Antoninos proporcionavam aos cristãos foi retirada, e as
excitadas paixões dos pagãos idólatras não foram refreadas pelo governo. É de
grande interesse para o estudante da história da igreja ver como isso podia
acontecer sob o reinado de um príncipe que se distinguia pela aprendizagem,
filosofia e suavidade geral de caráter.
Os
últimos sessenta anos de relativa paz tinha aberto um amplo campo para a
propagação do evangelho. Durante esse período houve rápido progresso de muitas
maneiras. As congregações cristãs aumentaram em número, influência e riqueza
por quase todos os cantos dos domínios romanos. Muitos dos ricos, sendo cheios
do amor divino, distribuíam o que tinham aos pobres, viajavam para regiões que
ainda não tinham ouvido o som do evangelho e, tendo ali plantado o
cristianismo, seguiam para outros países. No entanto, o Espírito Santo não
podia trabalhar sem despertar os ciúmes e agitar toda a inimizade dos
apoiadores da religião nacional. Aurélio viu com maus olhos o poder superior do
cristianismo sobre as mentes dos homens comparado com sua própria filosofia
pagã. Ele se tornou, então, um intolerante perseguidor, e encorajou as
autoridades provinciais a esmagar o que ele considerava um obstinado espírito
de resistência a sua autoridade. Mas o evangelho da graça de Deus estava muito
além do alcance de Aurélio, e nem sua espada nem seus leões poderiam prender sua
triunfante carreira. Apesar das sangrentas perseguições que ele excitava ou
sancionava, o cristianismo era propagado por todo o mundo conhecido.
Mas
aqui devemos fazer uma breve pausa para olhar a nossa volta. Há algo muito mais
profundo na mudança do governo em relação à igreja do que o mero olhar
histórico pode discernir. Cremos estar chegando ao fim do primeiro período e
início do segundo período da igreja na terra.
O FIM DO PRIMEIRO PERÍODO
E O INÍCIO
DO SEGUNDO
Pode-se
dizer que a condição "efesiana" da igreja - isto é, a condição da
igreja sob a luz da carta à igreja de Éfeso (Apocalipse 2:1-7) –
terminou
com a morte de Antonino Pio, no ano 161. E a condição "esmirniana" -
isto é, a condição da igreja sob a luz da carta à igreja de Esmirna (Apocalipse
2:8-11) - parece ter começado com o reinado de Marco Aurélio. A perseguição na
Ásia irrompeu com grande violência no ano 167, sob os novos decretos desse
Imperador; e Esmirna, especialmente, sofreu grandemente: o justamente estimado
Policarpo, bispo de Esmirna, sofreu o martírio nesse tempo. Mas, a fim de
provar o ponto de vista que tomamos, será necessário dar uma olhada brevemente
nas cartas às igrejas de Éfeso e Esmirna.
A CARTA À IGREJA DE ÉFESO
(APOCALIPSE 2:1-7)
O
grande objetivo da igreja neste mundo era ser "a coluna e firmeza da
verdade" (1 Timóteo 3:15). Ela foi criada para ser a portadora da luz de
Deus. Ela é assim simbolizada por um "castiçal de ouro" - um suporte
de luz. Ela deveria ser uma testemunha verdadeira do que Deus tinha manifestado
em Jesus na terra, e do que Ele é agora quando Cristo está no céu. Aprendemos
também, dessa carta, que a igreja, sendo um portador do testemunho neste mundo,
é ameaçada de ser deixada de lado, a menos que seu primeiro estado seja
mantido. Mas infelizmente ela falha, como sempre faz a criatura! Os anjos,
Adão, Israel e a igreja não mantiveram seu primeiro estado. "Tenho, porém,
contra ti", disse o Senhor, "que deixaste o teu primeiro amor.
Lembra-te, pois, de onde caíste, e arrepende-te, e pratica as primeiras obras;
quando não, brevemente a ti virei, e tirarei do seu lugar o teu castiçal, se
não te arrependeres."(Apocalipse 2:4,5)
Havia
ainda, no entanto, muito do que Ele podia elogiar, e Ele elogia tudo o que
pode. Como uma assembleia, eles tinham paciência, eles tinham trabalhado e não
se cansaram, eles não podiam suportar os "{homens} maus", ou aqueles
que buscavam os lugares mais elevados na igreja. Mesmo assim, Ele sente que
estão abandonando Ele mesmo: "deixaste o teu primeiro amor". Ele fala
como alguém desapontado.Eles tinham deixado de se deleitarem no Seu amor por
eles, e assim o próprio amor deles por Ele declinou. "Primeiro amor"
é o feliz fruto de nossa apreciação do amor do Senhor por nós. "O
testemunho externo pode continuar", disse alguém, "mas não é isso o
que o Senhor mais valoriza, embora o valorize desde que seja simples, genuíno e
fiel. Ainda assim, Ele não pode deixar de apreciar, acima de tudo, os corações
devotos a Ele, o fruto de Seu próprio amor pessoal, perfeito e de auto-sacrifício.
Ele tem uma esposa sobre a terra, a quem Ele deseja ver tendo como único objeto
de afeição Ele Próprio, e mantida pura, para Ele, do mundo e de seus caminhos.
Deus nos chamou para isso: não apenas para salvação e para um testemunho para
Ele mesmo em piedade, por mais verdadeiro e importante que isso seja; mas acima
de tudo, Deus nos chamou para Cristo - uma noiva para Seu Filho! Certamente
isto deveria ser nosso primeiro e último pensamento, nosso pensamento constante
e terno; pois estamos compromissados com Cristo, e Ele provou a plenitude e
fidelidade de Seu amor por nós! Mas e o nosso por Ele?"
Era
esse o estado das coisas em Éfeso, e na igreja em geral, que pedia a
intervenção do Senhor em fiel disciplina. Aquela igreja, tendo sido plantada
por Paulo, já tinha caído de seu primeiro estado. O apóstolo disse:
"Porque todos buscam o que é seu, e não o que é de Cristo Jesus”
(Filipenses 2:21); e “Os que estão na Ásia todos se apartaram de mim” (2
Timóteo 1:15). Esta é a causa da tribulação da qual fala a carta à igreja de
Esmirna. Embora o Senhor seja cheio de graça e amor em todos os Seus modos para
com Sua caída e falha igreja, ainda assim Ele é justo e deve julgar o mal. Ele
não é visto, nessas cartas, como a Cabeça no céu do "um só corpo", nem
como o Noivo de Sua igreja; mas Ele é visto em Seu caráter judicial, andando no
meio dos castiçais, tendo os atributos de um juiz.
O
leitor deve observar que há uma certa distância e reserva no estilo de Seu
discurso à igreja em Éfeso. Isto está de acordo com o lugar que Ele toma no
meio dos castiçais de ouro. Ele escreve ao anjo da igreja, e não "aos
santos que estão em Éfeso, e fiéis em Cristo Jesus", como na Epístola de
Paulo aos Efésios.
Há
muita discussão sobre quem seria o anjo. Ele era uma pessoa, acreditamos, tão
identificada moralmente com a assembleia, que a representava e caracterizava. O
Senhor se dirige ao anjo, e não imediatamente à igreja. "O anjo",
portanto, dá a ideia de representação. Por exemplo, no Antigo Testamento temos
o anjo de Jeová (ou anjo do Senhor), o anjo da aliança, e no Novo Testamento
temos os anjos das crianças, e em Atos 12 é dito de Pedro: "É o seu
anjo".
A CARTA À IGREJA DE ESMIRNA
(APOCALIPSE 2:8-11)
Nosso
interesse na história da igreja é muito maior quando vemos que o Senhor marcou
clara e distintamente suas sucessivas épocas. A condição exterior da igreja até
a morte do primeiro Antonino - até onde pode ser determinado a partir dos
registros históricos mais autênticos - responde de forma marcante àquilo que
aprendemos das Escrituras, especialmente a carta a Éfeso. Havia consistência e
zelo exteriores; eles eram incansáveis. É também evidente que havia caridade,
pureza, devoção, santa coragem, até mesmo a ponto da maior prontidão em sofrer
de todos os modos por causa do Senhor. Ao mesmo tempo fica claro, tanto das
Escrituras quanto da história, que falsas doutrinas estavam progredindo, e que
muitos estavam manifestando um desejo mais indigno de conquistar preeminência
na igreja. Aquele esquecimento de si mesmo, e aquele cuidado por Cristo e Sua
glória, que eram os primeiros frutos de Sua graça, tinham desaparecido.
Historicamente chegamos agora ao período da igreja de Esmirna. Para a
conveniência do leitor vamos citar o discurso todo:
"E
ao anjo da igreja em Esmirna, escreve: Isto diz o primeiro e o último, que foi
morto, e reviveu: Conheço as tuas obras, e tribulação, e pobreza (mas tu és
rico), e a blasfêmia dos que se dizem judeus, e não o são, mas são a sinagoga
de Satanás. Nada temas das coisas que hás de padecer. Eis que o diabo lançará
alguns de vós na prisão, para que sejais tentados; e tereis uma tribulação de
dez dias. Sê fiel até à morte, e dar-te-ei a coroa da vida. Quem tem ouvidos,
ouça o que o Espírito diz às igrejas: O que vencer não receberá o dano da
segunda morte."(Apocalipse 2:8-11). Aqui o Senhor enfrenta o declínio com
uma severa tribulação. Meios mais amenos não atingiriam os objetivos. Isso não
é incomum, embora eles pudessem pensar que algo estranho tinha acontecido com
eles. Mas todas as suas aflições eram conhecidas pelo Senhor, calculadas por
Ele, e estavam sob Seu controle."Tereis uma tribulação de dez dias".
O período do sofrimento deles é especificado com exatidão. E Ele lhes fala como
alguém que tinha conhecido, Ele mesmo, as profundezas da tribulação. "Isto
diz o primeiro e o último, que foi morto, e reviveu". Ele tinha passado
através da mais profunda tristeza, e através da própria morte - Ele tinha
morrido por eles, e estava vivo novamente.Eles tinham esta bendita Pessoa para
se refugiarem nas provações. E enquanto Ele olha, e anda, no meio dos Seus em
sofrimento, Ele diz: "Sê fiel até à morte, e dar-te-ei a coroa da
vida". Assim Ele tem em Suas mãos a coroa de mártir, pronto para colocá-la
na cabeça de Seu fiel vencedor.
O INÍCIO DO SEGUNDO PERÍODO DA
HISTÓRIA DA IGREJA (POR VOLTA DO ANO 167 D.C.)
O
reinado de Aurélio é marcado, sob a providência de Deus, por muitas e grandes
calamidades públicas. Vemos a mão do Senhor em amor fiel castigando Seu próprio
povo redimido e amado, mas Sua ira se acendia contra seus inimigos. O exército
oriental, sob comando de Lúcio Vero, ao retornar da guerra contra os partos,
trouxeram a Roma uma doença pestilenta que estava se espalhando pela Ásia, e
que logo espalhou seus estragos por quase todo o Império Romano. Houve também
uma grande inundação no Tibre, que deixou uma grande parte da cidade debaixo da
água, e varreu imensas quantidades de grãos dos campos e armazéns públicos.
Esses desastres foram naturalmente seguidos por uma fome que consumiu uma
grande quantidade de pessoas.
Tais
eventos não podiam deixar de aumentar a hostilidade dos pagãos contra os
cristãos. Eles atribuíam todos os seus problemas à ira dos deuses, e supunham
que a nova religião é que os tinha provocado. Foi assim que a perseguição aos
cristãos no Império Romano começou pela população. O clamor contra eles se
levantou por parte do povo e dos governantes. "Lancem os cristãos aos
leões!" "Lancem os cristãos aos leões!" era o clamor geral: e
assim os nomes dos mais proeminentes na comunidade eram exigidos com a mesma
hostilidade incontrolável. Um fraco e supersticioso magistrado tremia diante da
voz do povo, e se rendia como instrumento de sua vontade.
Mas
vamos agora olhar mais de perto, sob a direção das várias histórias que temos
ao alcance, para o modo como se dava essas perseguições, e para o comportamento
dos cristãos sob elas.
A PERSEGUIÇÃO NA ÁSIA
(ANO 167 D.C)
Na
Ásia Menor, a perseguição irrompeu com grande violência, como nunca se viu
antes. O cristianismo era agora tratado como um crime direto contra o Estado.
Isto mudou a face de tudo. Contrariamente ao documento oficial de Trajano e à
conduta dos imperadores mais amenos, Adriano e Antonino, os cristãos deviam ser
procurados como criminosos comuns. Eles eram arrancados de suas casas pela violência
do povo, e submetidos às mais severas torturas. Se eles se recusassem
obstinadamente a sacrificar aos deuses, eles eram condenados. Animais
selvagens, a cruz, as estacas e o machado eram as formas cruéis de morte que os
fiéis do Senhor encontravam em todo lugar.
O
prudente e honrado Melito, bispo de Sardes, ficou tão comovido por tais
barbaridades inéditas que compareceu perante o imperador como defensor dos
cristãos. Seu discurso lança muita luz tanto sobre a lei quanto sobre a conduta
das autoridades públicas, como segue: - "A estirpe dos adoradores de Deus
neste país é perseguida como nunca antes, pelos novos decretos; pois os
desavergonhados bajuladores, gananciosos pelas posses dos outros - uma vez que
tais éditos lhes deram a oportunidade de fazê-lo - saqueiam vítimas inocentes
de dia e de noite. E que assim seja certo se for feito sob seu comando, uma vez
que um imperador justo nunca resolverá algo sob nenhuma medida de injustiça,
assim como alegremente iremos levar o honrável quinhão de tal morte. Ainda
assim, gostaríamos de enviar este único pedido, de que o senhor deveria se
informar a respeito do povo que excita a contenção, e que deveria decidir
imparcialmente se eles merecem a punição e a morte, ou a liberdade e a paz. Mas
se essa resolução, e esse novo decreto - um decreto que não deveria ser emitido
nem mesmo contra bárbaro hostis - vier de você, oramos mais para que não nos
deixe expostos a tais roubos públicos."
Tememos
que não haja motivo para acreditar que esse nobre apelo tenha trazido qualquer
alívio direto aos cristãos. O caráter e modos de Aurélio têm deixado perplexos
os historiadores. Ele era um filósofo da seita dos estoicos, naturalmente
humano, benevolente, gentil e piedoso, até mesmo infantil em sua disposição,
dizem alguns, pela influência da educação materna; ainda assim ela foi um
implacável perseguidor dos cristãos por quase vinte anos. E a perplexidade
aumenta quando olhamos para a Ásia, pois o procônsul, nessa época, não era
pessoalmente oposto aos cristãos. Mesmo assim ele cedeu à fúria popular e às
demandas da lei. Mas a fé vê além dos imperadores, governadores e do povo. A fé
vê o príncipe das trevas governando esses homens ímpios, e o Senhor Jesus
sobrepondo-se a todos. "Conheço as tuas obras, e tribulação... Nada temas
das coisas que hás de padecer.... Sê fiel até à morte, e dar-te-ei a coroa da
vida... O que vencer não receberá o dano da segunda morte." (Apocalipse
2:9-11)
Aurélio,
com toda a sua filosofia, era um total estranho à doçura e poder do Nome que,
sozinho, pode atender e satisfazer os anseios do coração humano. Todas as
especulações e vanglórias da filosofia nunca foram capazes de fazer isso. Daí a
inimizade do coração humano contra o evangelho.Auto-suficiência, que leva ao
orgulho e à presunção, é o assunto principal da religião estoica. Com essa
visão não poderia haver humilhação, nem senso de pecado, e nem ideia de um
Salvador. E quanto mais seriamente ele levasse sua própria religião, mais
amarga e veementemente ele seria contra o cristianismo.
Em
uma carta circular escrita pela igreja de Esmirna para outras igrejas cristãs
temos um relato detalhado dos sofrimentos dos fiéis até a morte. "Eles
tornaram isso evidente para todos nós", diz a igreja, "de que no meio
desses sofrimentos eles estavam ausentes do corpo, ou melhor, que o Senhor
estava com eles, e andava no meio deles, e permanecendo na graça de Cristo,
eles desafiaram os tormentos do mundo." Alguns, com um estranho entusiasmo
momentâneo, se apressando com auto-confiança ao tribunal, se declararam cristãos;
mas quando os magistrados os pressionavam, manipulando seus medos ao mostrar a
eles os animais selvagens, eles cediam e ofereciam incenso aos deuses.
"Nós, portanto", acrescenta a igreja, "não louvamos aqueles que
voluntariamente se entregaram, pois o evangelho não nos ensina isso." Nada
menos que a presença do Senhor Jesus poderia fortalecer a alma para suportar
com tranquilidade e compostura os mais agoniantes tormentos, e as mais
terríveis mortes. Mas milhares levaram com brandura, e até mesmo com alegria, o
máximo que o poder das trevas e da quarta besta de Daniel poderia fazer. Os
espectadores pagãos eram frequentemente levados a sentir pena pelos sofrimentos
dos cristãos, mas nunca podiam entender a serenidade da mente, amor pelos seus
inimigos, e prontidão para morrer.
Vamos
agora concluir esse relato geral da perseguição na Ásia, e observar
particularmente as duas pessoas mais eminentes que sofreram a morte nessa
época: Justino e Policarpo.
O MARTÍRIO DE JUSTINO, CHAMADO O MÁRTIR
Justino
nasceu em Neápolis, em Samaria, de pais gentios. Quando jovem, ele
cuidadosamente estudou as diferentes seitas filosóficas; mas não encontrando a
satisfação que seu coração ansiava, ele foi levado a ouvir o evangelho. Nisto
ele descobriu, através da bênção de Deus, um perfeito descanso para sua alma, e
cada desejo de seu coração integralmente cumprido. Ele se tornou um cristão
sincero e um celebrado escritor em defesa do cristianismo.
No início do reinado
de Aurélio, Justino era um homem marcado. Acusações foram feitas contra ele por
um homem chamado Crescente, um filósofo da seita dos cínicos. Ele foi preso com
seis de seus companheiros, e todos foram levados perante o prefeito. Eles foram
requisitados a sacrificar aos deuses. "Ninguém", respondeu Justino,
"cujo entendimento é são, vai abandonar a verdadeira religião por causa do
erro e impiedade." "A menos que se sujeite", disse o prefeito,
"você será atormentado sem misericórdia." "Não desejamos nada
mais, sinceramente", ele respondeu, "além de suportar torturas por
nosso
Senhor Jesus Cristo". O restante concordou, e disseram:"Somos
cristãos, e não podemos sacrificar aos ídolos." O governador então
pronunciou a sentença: "Quanto a esses que se recusam a sacrificar aos
deuses, e a obedecer os decretos imperiais, que sejam primeiro açoitados, e
depois decapitados, de acordo com as leis." Os mártires se alegraram, a
louvaram Deus, e sendo levados de volta à prisão, foram açoitados, e depois
decapitados. Isto aconteceu em Roma, por volta do ano 165. Assim dormiu em Jesus
um dos primeiros "Pais", e ganhou o título glorioso de
"Mártir", que geralmente acompanha seu nome.
Seus
escritos têm sido cuidadosamente examinados por muitos, e lhes são atribuídos
grande importância.
Versos
Sobre o Martírio, por um Centurião Romano "Dê o cristão ao leão!" Clama
descontroladamente a multidão romana "Sim, ao leão castanho amarelado da
África!"Gritam os fortes e corajosos guerreiros."Deixe o faminto leão
os rasgarem!"Ecoa o riso contente da multidão;"Arremessam-no -
arremessam-no ao leão!"Gritou alto a nobre matrona."Dê o cristão ao
leão!"Falaram em tom grave e lento,De seus assentos de altos
dignatários,Senadores em vistosas fileiras.Então de voo em voo, ecoaO grito, o
aplauso, e rajadas de risosAté o gigante ColiseuDebaixo do tumulto parecia
oscilar; E o clamor do povo Rola através do Arco de Tito, Todos para baixo do
fórum romano, Ao violento Capitólio, Então uma pausa - mas silêncio, e ouça
Esse berro feroz e selvagem; Esse é o leão do Saara, Enfurecido em sua jaula!
Feroz, com fome e em grilhões, Sacode ele sua juba castanho amarelado! Para sua
presa viva, impaciente, Lutando contra suas barras e correntes. Mas uma voz
rouba fracamente Da próxima jaula, fria e escura; É o canto do cristão
condenado à morte Suave e baixo seu hino de morte; Com as mãos erguidas está
orando Pelos homens que pedem seu sangue! Com uma fé santa pleiteia Por aquela
multidão que grita. Eles estão esperando! Levante a grade Vem ele adiante,
sereno para morrer: Com uma radiância em torno da testa, E um brilho nos olhos.
Nunca! quando legiões de romanos no meio, Com o elmo em sua testa Pressiona-o
para a frente da batalha Com um passo mais firme que agora. Erga a grade! Ele
está esperando. Deixe o leão selvagem vir! Ele só pode romper uma passagem Para
a alma alcançar seu lar!
O MARTÍRIO DE POLICARPO
O
comportamento do venerável bispo de Esmirna, em vista de seu martírio, foi
muito cristão e nobre. Ele estava preparado e pronto para seus perseguidores,
sem ser impulsivo ou imprudente, como alguns que, em meio à excitação, tinham
sido. Quando ouviu os gritos das pessoas exigindo sua morte, era sua intenção
permanecer em silêncio na cidade, e esperar a decisão que Deus tomaria para si.
Mas, pelas súplicas da igreja, ele se permitiu ser persuadido a se refugiar em
uma vila vizinha. Ali ele passou o tempo, com alguns amigos, ocupado, noite e
dia, em oração por todas as igrejas em todo o mundo. Mas seus perseguidores
logo descobriram seu retiro. Quando lhe disseram que os oficiais públicos
estavam à porta, ele os convidou a entrar, pediu que lhe servissem carne e
bebida, e pediu para que lhe concedessem uma hora de oração silenciosa. Mas a
plenitude do seu coração o levou a duas horas de oração. Sua devoção, idade e
aparência impressionaram muito os pagãos. Ele devia ter mais de noventa anos de
idade.
Chegou
o momento de levá-lo à cidade O procônsul aparentemente não era pessoalmente
hostil contra os cristãos. Ele evidentemente sentia pelo idoso Policarpo, e fez
o que pôde para salvá-lo. Ele pediu-lhe que jurasse pelo gênio - ou espírito -
do imperador e desse prova de seu arrependimento. Mas Policarpo foi calmo e
firme, com seus olhos erguidos para o céu. O procônsul novamente pediu-lhe,
dizendo:"Negue a Cristo, e te libertaremos." O velho homem respondeu:
"Oitenta e seis anos O tenho servido, e Ele só me fez bem; e como eu
poderia negá-Lo, meu Senhor e Salvador?". O governador, vendo que tanto
promessas como ameaças eram em vão, foi forçado a proclamar no anfiteatro:
"Policarpo se declarou cristão."
A
população pagã, com um grito enfurecido, respondeu: "Este é o mestre do
ateísmo, o pai dos cristãos, o inimigo de nossos deuses, por culpa dele tantos
têm deixado de oferecer os sacrifícios." Assim que o governador cedeu às
exigências do povo, de que Policarpo deveria morrer na estaca, judeus e pagãos
se apressaram para trazer madeira para esse fim. Quando estavam prestes a
fixá-lo com pregos à estaca, ele disse: "Deixem-me assim: aquEle que tem
me fortalecido para enfrentar as chamas também me capacitará a ficar firme na estaca."
Antes que acendessem o fogo ele orou: "Senhor, Deus Todo-Poderoso, Pai de
Teu Filho amado, Jesus Cristo, por meio de quem temos recebido de Ti o
conhecimento de Ti mesmo; Deus dos anjos, e de toda a criação, da raça humana,
e do justo que viveu em Tua presença, eu Te louvo por ter me achado digno deste
dia e desta hora, de fazer parte do rol de Tuas testemunhas no cálice de Teu
Cristo."
O
fogo começou a arder, mas as chamas se movimentavam ao redor do corpo formando
a figura de uma vela de navio soprada pelo vento. Os supersticiosos romanos,
temendo que o fogo não o consumisse, mergulharam uma lança em seu lado: e assim
Policarpo foi coroado com a vitória.
Estes
são apenas breves extratos dos relatos que têm sido passados adiante até nós
sobre o martírio do honrado e admirável bispo. As histórias de mártires estão
cheias de pormenores. Mas o Senhor abençoou grandemente a maneira cristã pela
qual Policarpo sofreu pelo bem da igreja. A fúria do povo foi aplacada, como se
tivessem ficado satisfeitos com a vingança, e a sede de sangue pareceu se
extinguir por um tempo. O procônsul, também, cansado de tanto abate, se recusou
absolutamente a ter mais cristãos trazidos perante o tribunal.
Quão
manifesta é a mão do Senhor nessa maravilhosa e repentina mudança! Ele tinha
limitado os dias da tribulação deles antes de serem lançados na fornalha, e
agora esses dias estavam cumpridos, e nenhum poder na terra ou no inferno
poderia prolongá-los uma hora sequer. Eles tinham sido fiéis até a morte, e
receberam a coroa da vida.
AS PERSEGUIÇÕES NA FRANÇA
(ANO 177
D.C.)
Vamos
agora nos voltar ao cenário da segunda perseguição sob o reinado do imperador
Marco Aurélio. Aconteceu na França, e exatamente dez anos após a perseguição na
Ásia. Pode ter havido outras perseguições durante esses dez anos, mas, até onde
sabemos, não há registros autênticos de nenhum até o ano de 177. A fonte da
qual derivamos nosso conhecimento sobre os detalhes desta última perseguição é
uma carta circular das igrejas de Lion e Vienne às igrejas na Ásia. Se há
qualquer alusão a esses dez ano históricos nas palavras do Senhor à igreja de
Esmirna, não podemos dizer com certeza. As Escrituras não dizem isso.
Comparando a história com a epístola, não é difícil ser sugerido tal
pensamento. "Tereis uma tribulação de dez dias". Em outras partes
desse livro de significado sobrenatural, um dia é considerado como um ano,
então pode ser o caso também da epístola à Esmirna. A história nos dá o início
e o fim quanto ao tempo, e o leste e o oeste em relação à abrangência da cena.
Mas vamos olhar agora para alguns dos detalhes nos quais a semelhança pode ser
mais manifesta.
A
prisão foi uma das principais características de seus sofrimentos. Muitos
morreram pelo ar sufocante das masmorras fétidas. A este respeito diferia da
perseguição na Ásia. A excitação popular se ergueu ainda mais alto do que em
Esmirna. Os cristãos eram insultados e abusados sempre que apareciam, e eram
até mesmo pilhados em suas próprias casas. Enquanto essa fúria popular irrompia
durante a ausência do governador, muitos eram lançados na prisão pelos
magistrados inferiores para aguardar seu retorno. Mas o espírito da perseguição
nesta ocasião, embora tenha surgido da população, não se restringia a ela. O
governador, em sua chegada, parece ter sido infectado com o fanatismo das
classes mais baixas. Para sua desonra como magistrado, ele começou o exame dos
prisioneiros com torturas. E o testemunho dos escravos, contrariamente a uma
antiga lei em Roma, não foi apenas recebida contra seus mestres, como também
arrancada deles por meio dos sofrimentos mais severos. Consequentemente, eles
estavam prontos para dizer o que lhes era requerido para escapar do chicote e
da roda {*N. do T.: Antigo instrumento de tortura}. Tendo provado, como diziam,
que os cristãos praticavam os mais hediondos e piores crimes em suas reuniões,
eles agora acreditavam que era correto submetê-los a qualquer crueldade. Nenhum
parentesco, nenhuma condição, nenhuma idade e nenhum sexo era motivo para ser
poupado.
Vétio,
um jovem de bom nascimento e posição, e de grande caridade e fervor de
espírito, ouvindo que tais acusações eram apresentados contra seus irmãos, se
sentiu impelido a apresentar-se a si mesmo perante o governador como uma
testemunha da inocência deles. Ele exigiu ser ouvido, mas o governador
recusou-se a ouvir e apenas perguntou-lhe se ele também era um cristão. Quando
ele distintamente afirmou que era, o governador ordenou que ele fosse lançado
na prisão com o resto. Mais tarde, ele receberia a coroa do martírio. O idoso
bispo Potino, então com mais de noventa anos de idade, sendo provavelmente
aquele que tinha, vindo da Ásia, levado o evangelho a Lion, era, naturalmente,
uma boa presa para o leão do inferno. Ele sofria de asma e mal podia respirar,
mas mesmo assim ele foi apreendido e arrastado perante as
autoridades."Quem é o Deus dos cristãos?", perguntou o governador. O
velho homem calmamente lhe disse que só poderia chegar ao conhecimento do
verdadeiro Deus se mostrasse um espírito reto. Aqueles que cercavam o tribunal
se esforçaram para conter a explosão de raiva contra o venerável bispo. Ele foi
condenado à prisão, e após receber muitos golpes em seu caminho até lá, foi
jogado no meio dos outros cristãos, e dois dias depois dormiu em Jesus, nos
braços de seu rebanho sofredor.
Que
peso de conforto e encorajamento as palavras do bendito Senhor devem ter sido
para esses santos sofredores! "Nada temas das coisas que hás de
padecer", foi o que o Senhor disse à igreja em Esmirna, e que foi
provavelmente levado também às igrejas francesas em Lion e Vienne por Potino.
Eles estavam experimentando um exato cumprimento desse solene e profético
aviso: "Eis que o diabo lançará alguns de vós na prisão, para que sejais
tentados." Eles sabiam quem era o grande inimigo - o grande perseguidor -
mesmo que imperadores, governadores e multidões pudessem ser seus instrumentos.
Mas o Senhor estava com Seus amados sofredores. Ele não apenas os sustinha e
confortava, como também manifestou, da maneira mais bendita, o poder de Sua
própria presença nas formas mais débeis da humanidade. Isto era, nos
aventuramos a dizer, uma coisa nova na terra. A superioridade dos cristãos
frente a todas as aflições de torturas, e a todos os terrores de morte,
surpreendeu totalmente a multidão, atingiu em cheio seus algozes, e feriu o
orgulho estoico do imperador.
O
que poderia ser feito com um povo que orava por seus perseguidores e
manifestava a compostura e tranquilidade do céu em meio às fogueiras e feras do
anfiteatro? Tome um exemplo do que afirmamos - um exemplo digno de todo louvor,
em todos os tempos e por toda a eternidade - do poder divino demonstrado na
fraqueza humana.
Blandina,
uma escrava, se distinguiu do resto dos mártires pela variedade de torturas que
suportou. Sua senhora, que também sofreu o martírio, temia que a fé de sua
serva pudesse ser deixada de lado sob tais provações. Mas isto não aconteceu,
que o Senhor seja louvado! Firme como rocha, mas pacífica e despretensiosa, ela
suportou os mais excruciantes sofrimentos. Seus carrascos lhe pressionavam a
negar a Cristo e a confessar que as reuniões privadas dos cristãos serviam
apenas para suas práticas perversas, e que então eles deixariam de torturá-la.
Mas não! Sua única resposta foi:"Sou uma cristã, e não há perversidade
entre nós." O flagelo, a roda, a cadeira de ferro quente e as feras
selvagens tinham perdido seu terror para ela. Seu coração estava fixado em
Cristo, e Ele a manteve em espírito perto de Si. Seu caráter foi completamente
formado, não por sua condição social, é claro - que era a mais degradada
naqueles tempos - mas por sua fé no Senhor Jesus Cristo, através do poder do
Espírito Santo que habitava em si.
Dia
após dia ela era levada como um espetáculo público de sofrimento. Sendo uma
mulher e uma escrava, os pagãos esperavam forçá-la a negar a Cristo, e a
confessar que os cristãos eram culpados dos crimes denunciados contra eles. Mas
foi tudo em vão. "Eu sou uma cristã, e não há perversidade entre
nós", era sua resposta calma e invariável. Sua constância exauriu a inventiva
crueldade de seus algozes. Eles estavam surpresos por vê-la viver através da
temível sucessão de seus sofrimentos.Mas em suas maiores agonias, ela encontrou
força e alívio ao olhar para Jesus e testemunhar por Ele. "Blandina foi
dotada de tanta coragem", diz a carta da igreja de Lion, escrita a mil e
setecentos anos atrás, "que aqueles que sucessivamente a torturavam de dia
e de noite ficaram muito desgastados de cansaço, e se deram por vencidos e
exaustos de todos os seus aparatos de tortura, e se espantaram de vê-la ainda
respirando enquanto seu corpo estava dilacerado e exposto."
Antes
de narrarmos as cenas finais de seus sofrimentos, devemos notar o que parece
para nós ser o segredo de sua grande força e constância. Sem dúvidas o Senhor a
estava sustendo de maneira marcante como uma testemunha para Ele, e como um
testemunho para todas as eras do poder do cristianismo sobre a mente humana,
comparado a todas as religiões que já existiram sobre a terra. Ainda assim,
poderíamos dizer, particularmente, que sua humildade e temor piedoso eram as
claras indicações do seu poder contra o inimigo, e de sua inabalável fidelidade
a Cristo. Ela estava desenvolvendo sua própria salvação - libertação das
dificuldades do caminho - por um profundo senso de sua própria fraqueza consciente,
indicada por "medo e tremor".
Em
seu caminho de volta do anfiteatro para a prisão, em companhia de seus
companheiros de sofrimento, eles foram rodeados por seus amigos entristecidos
quando tiveram uma oportunidade, e em simpatia e amor se dirigiram a eles como
"mártires por Cristo". Mas a isso eles instantaneamente responderam,
dizendo: "Não somos dignos de tal honra. A luta ainda não acabou, e o
digno nome de Mártir pertence apropriadamente a Ele somente, que é verdadeira e
fiel testemunha, o primogênito dentre os mortos, o Príncipe da vida, ou, ao
menos, apenas àqueles cujo testemunho Cristo selou pela sua constância até o
fim. Somos apenas pobres e humildes confessores." Em lágrimas eles rogaram
para que seus irmãos orassem por eles para que pudessem ser firmes e
verdadeiros até o fim. Assim a fraqueza deles era sua força, pois os levava a
apoiarem-se no Poderoso. E é assim sempre, e sempre foi, tanto em pequenas
quanto em grandes provações. Mas uma nova tristeza os aguardava em seu retorno
à prisão. Eles encontraram alguns que tinham desistido pelo medo natural, e que
tinham negado que eram cristãos. Todavia, nada ganharam por causa disso, pois
Satanás jamais os iria libertar. Sob uma acusação de outros crimes, eles foram
mantidos na prisão. Com esses fracos, Blandina e os outros oravam com muitas
lágrimas, para que pudessem ser restaurados e fortalecidos. O Senhor respondeu
suas orações, de modo que, quando levados novamente para uma examinação mais
profunda, eles firmemente confessaram sua fé em Cristo, e assim foram
condenados à morte e receberam a coroa do martírio.
Segundo
os homens, nomes mais nobres do que o de Blandina desapareceram na cena
ensanguentada, e nomes honrados também tinham testemunhado com grande coragem,
como foi o caso de Vétio, Potino, Santus, Naturus e Atálius. Mas o último dia
de sua provação tinha chegado, e a última dor que ela sentiria, e a última
lágrima que ela derramaria. Ela foi levada para seu exame final com um jovem de
quinze anos, chamado Pôntico. Eles foram obrigados a jurar pelos deuses; eles
firmemente recusaram, mas estavam calmos e imóveis. A multidão estava irritada
com a magnânima paciência deles. Todo o repertório de barbaridades lhes foi
infligido. Pôntico, embora animado e fortalecido pelas orações de sua irmã em
Cristo, logo sucumbiu sob as torturas, e adormeceu em Jesus.
E
agora vinha a nobre e abençoada Blandina, como a igreja a intitulara. Como uma
mãe que precisava confortar e encorajar seus filhos, ela foi mantida até o
último dia dos jogos. Seus filhos haviam partido antes dela, e ela estava agora
ansiando por seguir após eles. Eles tinham aderido ao nobre exército de
mártires acima, e estavam descansando em Jesus, como descansam guerreiros
cansados, no pacífico paraíso de Deus. Após ter suportado açoites, sentaram-na
em uma cadeira de ferro quente, e então ela foi amarrada em uma rede e jogada a
um touro; e tendo sido atingida algumas vezes pelo animal, um soldado mergulhou
uma lança em seu lado. Sem dúvida ela já estava morta muito antes da lança tê-la
atingido, mas nisto ela teve a honra de ser como seu Senhor e Mestre. Brilhante
certamente será a coroa, em meio às muitas coroas no céu, da constante,
humilde, paciente e perseverante Blandina.
Mas
a raiva feroz e selvagem dos pagãos, instigados por Satanás, ainda não tinha
alcançado seu limite. Eles começaram uma nova guerra contra os corpos mortos
dos santos. O sangue deles ainda não os tinha saciado. Eles queriam suas
cinzas. Assim os corpos mutilados dos mártires foram coletados e queimados, e lançados
no rio Ródano com o fogo que os consumia, para que nenhuma partícula fosse
deixada para poluir a terra. Mas a raiva, embora feroz, finalmente se
esgotaria: e a natureza, embora selvagem, ficaria cansada de derramamento de
sangue, e assim muitos cristãos sobreviveram a essa terrível perseguição.
Temos,
portanto, entrado em detalhes, mais do que o usual, ao falar das perseguições
sob o reinado de Marco Aurélio. Até então elas são um cumprimento, cremos, dos
solenes e proféticos avisos da carta à Esmirna, e também, de modo marcante, da
graça do Senhor prometida.
Os
sofredores foram cheios e animados por Seu próprio Espírito. "Até mesmo
seus perseguidores", diz Neander, "nunca foram mencionados por eles
com ressentimento; mas eles oravam a Deus para que fossem perdoados aqueles que
os tinham sujeitado a tais cruéis sofrimentos. Eles deixaram um legado para
seus irmãos, não de conflito e guerra, mas de paz e alegria, unanimidade e
amor."
Estás em casa finalmente, cada poste do
caminho passado, Tendes apressado alcançar ao alvo antes de mim; E ó, as
minhas
lágrimas caem grossas e rápido Como as esperanças que tinham florescido sobre
ti. Os meus lábios recusam dizer, Adeus, Porque nada pode separar nossa vida
interligada; Bem cedo tendes ido com Cristo habitar, Onde ambos para sempre
estaremos.
O PODER DA ORAÇÃO
Ao
traçar a linha prateada da graça de Deus em Seu povo amado, temos agora que
tomar nota de um relato que foi amplamente difundido entre os cristãos após o
início do terceiro século. Ocorreu perto do fim do reinado de Aurélio, e que o
levou, como dizem alguns, a mudar o rumo de sua política para com os cristãos.
Em uma de suas campanhas contra os germânicos e sármatas, ele se viu em uma
situação de extremo perigo. O sol ardente brilhava em cheio nas faces de seus
soldados; eles foram cercados pelos bárbaros e estavam exaustos por feridas e
cansaço, e sedentos: enquanto isso, o inimigo se preparava para atacá-los.
Nessa situação extrema, a 12ª legião, que diziam ser composta por cristãos,
avançou e se ajoelhou em oração. De repente, o céu ficou coberto de nuvens, e
começou a cair uma forte chuva. Os soldados romanos pegaram seus elmos para
recolher as refrescantes gotas, mas a chuva logo aumentou e se tornou uma
tempestade de granizo, acompanhada de trovões e raios, que deixou os bárbaros
tão alarmados que garantiu aos romanos uma vitória fácil.
O
imperador, perplexo com tal resposta miraculosa às orações, reconheceu a
intervenção do Deus dos cristãos, conferiu honra à legião, e emitiu um decreto
em favor da religião deles. Depois disto, se não antes, eles passaram a ser
chamados de"legião do trovão". Historiadores, a partir de Eusébio,
têm tomado nota desse marcante acontecimento.
Mas,
como uma lenda frequentemente contada, muitas coisas lhe foram acrescentadas.
Há boas razões para crer, no entanto, que uma resposta providencial em favor
dos romanos foi dada à oração. Isto parece bastante evidente. E para a fé não
há nada incrível em tal evento, embora algumas das circunstâncias relatadas
sejam questionáveis. Por exemplo, uma legião romana naquela época provavelmente
teria cinco mil homens: embora possa ter havido um grande número de cristãos na
12ª legião, que era uma legião distinta, ainda assim é difícil acreditar que
todos eles eram cristãos.
Em
seu retorno da guerra, eles sem dúvida relataram a seus irmãos a misericordiosa
intervenção de Deus em resposta à oração, pois a igreja registraria e
disseminaria a história entre os cristãos, para Seu louvor e glória. Mas os
fatos são ainda mais plenamente confirmados pelos romanos. Eles também
acreditavam que a libertação tinha vindo do céu, mas em resposta às orações do
imperador aos deuses. Assim, o evento foi comemorado, de sua maneira habitual,
em colunas, medalhas e pinturas. Nelas, o imperador é representado estendendo
as mãos em súplicas; o exército recolhendo a chuva em seus elmos; e Júpiter
lançando seus raios sobre os bárbaros, que jazem mortos no chão.
Alguns
anos depois desse marcante evento, Marco Aurélio, o filósofo e perseguidor,
morreu. Grandes mudanças rapidamente se seguiram. A glória do império, e o
esforço para manter a dignidade da antiga religião romana, expirou com ele, mas
o cristianismo fez grandes e rápidos avanços. Homens hábeis e eruditos surgiram
nessa época e, ousada e poderosamente, defendiam, usando suas penas como
instrumento, o cristianismo. Estes eram chamados de Apologistas. Tertuliano, um
africano, que dizem ter nascido em 160, pode ser considerado o mais hábil e
mais perfeito exemplo dessa classe.
Os
mais esclarecidos dentre os pagãos agora começam a sentir que, se a religião
deles tinha que suportar o poder agressivo do evangelho, ela deveria ser
defendida e reformada. Assim começou a controvérsia, e um certo Celso, um
filósofo epicureu, que dizem ter nascido no mesmo ano que Tertuliano, firmou-se
como líder do lado controverso do paganismo. Foi por volta desse período - os
últimos anos do segundo século - que os registros sobre a igreja começaram a se
tornar mais interessantes, por serem mais definidos e confiáveis. Mas antes de
prosseguirmos adiante com a história geral, seria interessante refazer nossos
passos e olhar brevemente para a história interna da igreja desde o princípio.
Veremos, assim, como algumas das coisas que ainda são observadas, e com as
quais estamos familiarizados, foram primeiramente introduzidas.
A HISTÓRIA INTERNA DA IGREJA
(107 D.C. - 245 D.C.)
Vamos
agora pisar, mais uma vez, em terreno seguro. Temos o privilégio e satisfação
de apelarmos para as Escrituras Sagradas. Antes mesmo que o cânon das Escrituras
fosse fechado, foi permitido que surgissem muitos dos erros, tanto doutrinais
quanto práticos, que vêm desde sempre perturbando e rasgando em pedaços a
igreja professa. Estes eram, na sabedoria da graça de Deus, detectados e
expostos pelos apóstolos inspirados. Se mantivermos isto em mente, não nos
surpreenderemos ao encontrar muitas coisas na história interna da igreja
inteiramente contrárias às Escrituras. Nem teremos qualquer dificuldade em
resistir a eles. Nós fomos armados pelos apóstolos. O amor ao ofício e
preeminência na igreja foi manifestado logo cedo, e muitas observâncias de mera
invenção humana foram acrescentadas. A "semente de mostarda" se
tornou uma grande árvore - o símbolo do poder político na terra: esta era e
continua sendo o aspecto externo da Cristandade; mas internamente, o fermento
fez seu trabalho maligno, "até que tudo ficou levedado". (Mateus
13:31-33)
Aqueles
que estudaram cuidadosamente Mateus 13 com outras passagens em Atos e nas
Epístolas que falam da profissão do nome de Cristo deveriam ter uma ideia
bastante correta tanto do que diz respeito ao início da história da igreja
quanto ao que se sucedeu. Ela abrange o período inteiro, desde a semeadura da
semente pelo Filho do homem, até a colheita, embora sob a semelhança com o reino
dos céus. Isto é um grande alívio para a mente, e nos prepara para uma cena
sombria e angustiante, perversamente perpetrada sob o justo nome e sob a capa
de Cristianismo. Vamos agora nos voltar para algumas dessas passagens.
1.
Nosso bendito Senhor, na parábola do joio e do trigo, prediz o que aconteceria.
"O reino dos céus", diz Ele, "é semelhante ao homem que semeia a
boa semente no seu campo; mas, dormindo os homens, veio o seu inimigo, e semeou
joio no meio do trigo, e retirou-se". No decorrer do tempo a erva cresceu
e frutificou. Essa foi a rápida propagação do Cristianismo na terra. Mas também
lemos que "apareceu também o joio". Estes são os falsos professantes
do nome de Cristo. O Senhor Jesus semeou a boa semente. Satanás, através do descuido
e falta de firmeza do homem, semeou o joio. Mas o que deveria ser feito com
ele? Deveria ser arrancado para fora do reino? O Senhor diz:"Não; para
que, ao colher o joio, não arranqueis também o trigo com ele. Deixai crescer
ambos juntos até à ceifa", isto é, até o final da era ou dispensação,
quando o Senhor vier em juízo. (Mateus 13:24-26,29-30)
Mas
aqui, alguns podem perguntar: "Será que o Senhor quis dizer que o trigo e
o joio devem crescer juntos na igreja?" Certamente que não. Eles não devem
ser arrancados fora do campo, mas devem ser colocados para fora da igreja
(assembleia local) quando se manifestarem como pessoas ímpias. A igreja e o
reino são coisas bastante distintas, embora seja possível dizer que uma (a
igreja) está contida na outra (o reino). O campo é mundo, não a igreja. Os limites do reino vão
muito além dos limites da verdadeira igreja de Deus. Cristo edifica a igreja;
os homens é que estendem as proporções da Cristandade. Se a expressão "o
reino dos céus" significasse o mesmo que "a igreja de Deus", não
deveria haver nenhuma disciplina, afinal. Mas o apóstolo, ao escrever aos
coríntios, expressamente diz: "Tirai pois dentre vós a esse iníquo"
(1 Coríntios 5:13). Mas ele não deveria ser posto para fora do reino, pois isto
só poderia ser feito tirando-lhe a vida. O trigo e o joio devem crescer juntos
no campo até a colheita. Então o Próprio Senhor, em Sua providência, vai lidar
com o joio. Eles serão amarrados em feixes e lançados no fogo. Nada pode ser
mais claro que o ensino do Senhor nessa parábola. O joio deve ser mantido longe
da mesa do Senhor, mas não deve ser arrancado do campo.
A
igreja não deveria usar de punições mundanas para lidar com os ofensores
eclesiásticos. Mas infelizmente, contrariamente ao que o Senhor tinha instruído
aos discípulos, é exatamente o que acabou acontecendo no decorrer da história,
como demonstra dolorosamente a longa lista de mártires. Dores e punições foram
introduzidos como disciplina, e os insubmissos eram entregues ao poder civil
para serem punidos com fogo e espada.
2.
Em Atos 20, lemos que "lobos cruéis" apareceriam na igreja após a
partida do apóstolo. Nas Epístolas de Paulo aos Tessalonicenses - que supõe-se
serem suas primeiras epístolas inspiradas - ele lhes diz que o mistério da
iniquidade já estava operando, e que outras coisas más viriam a seguir. Ao
escrever aos Filipenses, ele lhes diz, com tristeza, que muitos andam como
"inimigos da cruz de Cristo, cujo fim é a perdição; cujo Deus é o ventre,
e cuja glória é para confusão deles, que só pensam nas coisas terrenas"
(Filipenses 3:18,19). Muitos estavam se autoproclamando cristãos, mas pensando
nas coisas terrenas. Tal estado de coisas não podia escapar ao olho espiritual
daquele cujo único objeto de apreço era Cristo em glória e conformidade prática
com Seus caminhos enquanto na terra. Em sua Segunda Epístola a Timóteo -
provavelmente o último que ele escreveu - ele compara a Cristandade a "uma
grande casa", na qual há todo tipo de vasos, "uns para honra e outros
para desonra" (2 Timóteo 2:20). Esta é uma imagem exterior da universal
igreja. No entanto, os cristãos não podem deixá-la, e a responsabilidade
individual nunca pode cessar. Mas o cristão deve se limpar de tudo o que é
contrário ao nome do Senhor. As instruções são as mais simples e preciosas para
os que possuem a mente espiritual, em todas as épocas. Os cristãos não devem
ter qualquer associação com o que é falso. Tal é o significado de se purificar
dos vasos para desonra.
Ele
deve se limpar de tudo que não é para a honra do Senhor. João e os outros
apóstolos falam a mesma coisa, e dão as mesmas direções divinas, mas não será
necessário, aqui, se delongar mais que isso. Foi apontado o suficiente para
preparar o leitor para o que encontraremos naquilo que se autoproclama cristão.
OS SEGUIDORES IMEDIATOS DOS APÓSTOLOS
Aqui
surge uma importante pergunta, e uma que é frequentemente feita: "Em que
momento, e por quais meios, o clericalismo - todo o sistema do clero -
firmou-se com tanto afinco na igreja professa?" Para responder a essa
pergunta plenamente, seria necessário escrever em detalhes a história interna
da igreja. Sua constituição e caráter foram totalmente modificados pela
introdução do sistema clerical. Mas seu crescimento e organização foi gradual.
Argumentos foram construídos a partir do Antigo Testamento e, em um curto
período de tempo, o cristianismo foi reformulado para os moldes do judaísmo. A
distinção entre bispos e presbíteros, entre uma ordem sacerdotal e o comum
sacerdócio de todos os crentes, e a multiplicação de cargos eclesiásticos,
rapidamente se seguiram como consequência. Mas, por mais difícil que seja
traçar as incursões do clericalismo, a sinagoga era seu modelo.
Aprendemos
de todo o Novo Testamento que o judaísmo era o incansável e implacável inimigo
do cristianismo em todos os pontos de vista. Ele trabalhou incessantemente, por
um lado introduzindo seus ritos e cerimônias e pelo outro perseguindo até a
morte todos os que eram fiéis a Cristo e aos verdadeiros princípios da igreja
de Deus. Vemos isto especialmente em Atos e nas Epístolas. Mas quando os dons
extraordinários na igreja cessaram, e quando os nobres defensores da fé, nas
pessoas dos apóstolos inspirados, se foram, podemos facilmente imaginar como o
judaísmo prevalecera. Além disso, as primeiras igrejas (assembleias) eram
principalmente compostas de convertidos da sinagoga judaica, que por muito
tempo retiveram seus preconceitos judaicos.
Portanto,
acreditamos firmemente que o clericalismo brotou do judaísmo. Desde os dias dos
apóstolo até hoje a raiz de toda a estrutura e domínio do clericalismo está lá.
A filosofia e a heterodoxia, sem dúvida, fez muito para corromper a igreja e
levá-la a dar as mãos com o mundo: mas a ordem do clero e tudo o que pertence a
ela deve ter sido fundamentada na religião dos judeus. É mais que provável, no
entanto, que muitos possam ter sido persuadidos, como muitos têm sido desde
então, de que o cristianismo é uma continuação do judaísmo, em vez de serem
perfeitamente contrastantes. Os mestres judaizantes ousadamente afirmavam que o
cristianismo era meramente um enxerto sobre o judaísmo. Mas através das
epístolas, em todo lugar aprendemos que uma é terrena e a outra é celestial;
que uma pertence à antiga, e a outra à nova criação; que a lei foi dada por
Moisés, mas a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo.
Os
Pais Apostólicos, como são chamados, tais como Clemente, Policarpo, Inácio e
Barnabé, foram os seguidores imediatos dos apóstolos inspirados. Eles tinham
ouvido as instruções deles, trabalharam com eles no evangelho, e provavelmente
tinham sido familiarmente conhecidos deles. Mas, não obstante os altos
privilégios que eles gozavam como aprendizes dos apóstolos, eles logo se
afastaram das doutrinas que lhes tinham sido confiadas, especialmente no que
diz respeito ao governo da igreja. Eles parecem ter esquecido completamente - a
julgar pelas Epístolas que citam seus nomes
-
a grande verdade do Novo Testamento sobre a presença do Espírito Santo na
assembleia. Certamente tanto João quanto Paulo falam muito da presença,
habitação, domínio soberano e autoridade do Espírito Santo na igreja. João
13-16, Atos 2:1, 1 Coríntios 12:14 e Efésios 1-4 dão claras direções e
instruções sobre essa verdade fundamental da igreja de Deus. Se essa verdade
tivesse sido mantida de acordo com a exortação do apóstolo - "procurando
guardar" - não criar - "a unidade do Espírito" (Efésios 4:3) - o
clericalismo nunca teria achado um lugar na Cristandade.
Os
novos mestres da igreja parecem também ter esquecido a bela simplicidade da
ordem divina na igreja. Deveria haver apenas duas ordens de ofícios - anciãos e
diáconos. Estes eram nomeados para atender às necessidades temporais, e aqueles
para as necessidades espirituais da assembleia dos santos. Ancião, ou bispo,
significa simplesmente supervisor, alguém que exerce uma supervisão espiritual.
Ele pode ser "apto para ensinar" ou não: ele não é um mestre
ordenado, mas um supervisor ordenado. E quanto aos sacramentos estabelecidos
por mandato divino, apenas encontramos, no Novo Testamento, o Batismo e a Ceia
do Senhor. Nada poderia ser mais simples, mais claro, ou mais facilmente
compreendido, como todas as direções dadas para a fé e prática, mas não havia
espaço de sobra para a exaltação e glória do homem na igreja de Deus. O
Espírito Santo tinha descido para tomar a liderança na assembleia, de acordo
com a palavra do Senhor e a promessa do Pai; e nenhum cristão, por mais dotado
que pudesse ser, crendo nisto, podia tomar o lugar de líder, e assim
praticamente despedir o Espírito Santo. Mas, a partir do momento em que essa
verdade foi perdida de vista, os homens começaram a contender por lugar e
poder, e assim, é claro, o Espírito Santo não tinha mais Seu lugar de direito
na assembleia.
Mal
a voz da inspiração tinha ficado em silêncio na igreja, e logo ouvimos a voz dos
novos mestres gritando e exigindo as mais elevadas honrarias de ser pago como
bispo, e de ter um lugar supremo dado a eles. Nenhuma palavra sobre o lugar do
Espírito como governante soberano na igreja de Deus. Isto é evidente pelas
epístolas de Inácio, que dizem ter sido escritas em 107 d.C. Muitos grandes
nomes, como sabemos, têm questionado a autenticidade delas; e muitos grandes
nomes defendem que elas foram satisfatoriamente provadas serem genuínas. As
provas de cada lado estão fora do nosso escopo. A Igreja da Inglaterra tem, por
muito tempo, as aceitado como genuínas, e as considera como a base, e como a
vindicação triunfante, da antiguidade do episcopado. A seguir estão algumas
amostras de suas advertências às igrejas.
Inácio,
no curso de sua viagem de Antioquia a Roma*, escreveu sete epístolas. Uma aos
efésios, aos magnésios, aos trálios, aos romanos, aos filadélfios, aos
esmirnenses, e uma ao seu amigo Policarpo. Tendo sido escritas na véspera de
seu martírio, e com grande seriedade e veemência, e tendo sido discípulo e
amigo do apóstolo João, sendo na época um bispo de Antioquia, provavelmente o
mais famoso da Cristandade, suas epístolas devem ter produzido uma grande
impressão nas igrejas; além do fato de que o caminho do ofício, autoridade e poder
terem sido sempre um grande encanto para a vã natureza humana.
Ao
escrever à igreja em Éfeso ele diz: "Tomemos cuidado, irmãos, para não nos
colocarmos contra o bispo, a fim de que estejamos sujeitos a Deus..., pois é
evidente que temos de respeitar o bispo da mesma maneira como respeitamos o
próprio Senhor". Em sua epístola aos magnésios ele diz: "Eu vos
exorto a cuidadosamente fazer todas as coisas em divina harmonia: seus bispos
presidindo como se estivessem no lugar de Deus; seus presbíteros como se
estivessem no lugar do conselho de apóstolos; e seus diáconos, a posição mais
estimada para mim, estando encarregados do ministério de Jesus Cristo".
Encontramos o mesmo tom em sua carta aos trálios: "Enquanto estiverem
sujeitos ao bispo de vocês da mesma forma que ao Senhor, me parece que estarão
vivendo, não à maneira dos homens, mas de acordo com Jesus Cristo, que morreu
por vocês... Guardem-se de tais pessoas; e isso vocês farão se não estiverem
ensoberbecidos, mas continuem inseparáveis de Jesus Cristo nosso Deus, do bispo
de vocês, e dos mandamentos dos apóstolos". Passando por cima de várias de
suas cartas às igrejas, vamos apenas dar mais uma amostra de sua epístola aos
filadélfios: "Eu clamei enquanto estava no meio de vocês, falei em alta
voz: ‘Obedeçam ao bispo, ao presbitério e aos diáconos’. Agora alguns supõem
que disse isso prevendo a divisão que aconteceria. Mas Ele é minha testemunha,
por amor do qual estou em correntes, que eu nada sabia vindo da parte dos
homens, mas o Espírito falou...: 'Nada façam sem o bispo; mantenham seus corpos
como templos de Deus, amem a unidade, fujam das divisões, sejam seguidores de
Cristo, como Ele é do Pai'"
Na
última citação é bastante evidente que o venerável "pai" desejava
adicionar a suas teorias o peso da inspiração. Mas, por mais extravagante e
irresponsável que essa ideia possa ser, devemos dar-lhe crédito por acreditar
no que dizia. Não temos dúvida de que ele era um cristão devoto, e cheio de
zelo religioso, mas não pode haver menos dúvida de que ele enganou-se muito
neste e em outros assuntos.
A
principal ideia em todas as suas cartas é a perfeita submissão do povo aos seus
superiores, ou seja, a submissão dos leigos ao seu clero. Ele estava, sem
dúvida, ansioso pelo bem-estar da igreja, e temeroso do efeito das
"divisões" às quais se refere; assim ele provavelmente deve ter
pensado que um governo forte, nas mãos dos bispos, seria o melhor meio de
preservá-la das incursões do erro. "Sejam diligentes", disse,
"em estabelecer a doutrina de nosso Senhor e dos apóstolos, junto com o
mais digno bispo entre vocês, os mais espirituais presbíteros e os mais
piedosos diáconos. Sejam sujeitos ao bispo e uns aos outros, como Jesus Cristo
era ao Pai, quando na carne; e como os apóstolos a Cristo, e ao Pai e ao Espírito;
e assim poderá haver união entre vocês, tanto no corpo quanto no
espírito". Assim, a mitra foi colocada na cabeça do mais alto dignatário,
e daí em diante se tornou objeto de ambição eclesiástica, e não raro da mais
indecorosa contenda, com todas as suas consequências desmoralizantes.
CLERICALISMO, MINISTÉRIO E
RESPONSABILIDADE INDIVIDUAL
Admite-se
que as epístolas de Inácio foram escritas apenas alguns anos após a morte de
João, e que o escritor deveria estar intimamente familiarizado com o pensamento
do apóstolo, e que em suas epístolas ele estaria apenas apresentando seus
pontos de vista. Por isso é dito que o episcopado é contemporâneo do
cristianismo. Mas pouco importa, comparativamente, por quem elas foram
escritas, ou o tempo preciso em que foram escritas: o que importa é que essas
cartas não fazem parte das Escrituras, e o leitor deve julgar o caráter delas
pela Palavra de Deus, e a influência que tiveram na história da igreja. O
pensamento do Senhor, no que diz respeito a Sua igreja e à responsabilidade de
Seu povo, deve ser aprendido por Sua própria palavra, e não pelos escritos dos
"pais", por mais pioneiros e estimados que sejam. E aqui, pode ser
interessante citar, antes de deixarmos este assunto, alguns trechos da Palavra
que o leitor fará bem em comparar com os extratos dos textos dos
"pais" citados anteriormente. Esses trechos da Palavra se referem ao
ministério e responsabilidade individual cristã. Assim, aprendemos a grande
diferença entre ministério e ofício: ou melhor, entre ser estimado por causa de
suas obras, e não meramente por seu ofício.
No
Evangelho de Mateus, do versículo 45 do capítulo 24 até o versículo 31 do
capítulo 25, temos três parábolas, por meio das quais o Senhor instrui os
discípulos quanto à conduta deles durante Sua ausência.
1.
O assunto da primeira parábola é a responsabilidade do ministério dentro da
casa -na igreja. "A qual casa somos nós." (Hebreus 3:6). Assim lemos:
"Quem é, pois, o servo fiel e prudente, que o seu senhor constituiu sobre
a sua casa, para dar o sustento a seu tempo? Bem-aventurado aquele servo que o
seu senhor, quando vier, achar servindo assim. Em verdade vos digo que o porá
sobre todos os seus bens." (Mateus 24:45-47). O verdadeiro ministério é do
Senhor, e dEle apenas. Isto é o que temos que observar tendo em vista o que
aconteceu no próprio início do cristianismo. E Ele se importa com a fidelidade
ou infidelidade em Sua casa. Seu povo é próximo e querido ao Seu coração.
Aqueles que foram humildes e fiéis durante Sua ausência serão feitos governantes
sobre todos os Seus bens quando Ele retornar. O verdadeiro ministro de Cristo
tem de tratar diretamente com o próprio Cristo. O cristão não é mercenário de
algum homem, ou de algum grupo particular de homens.
"Bem-aventurado
aquele servo que o seu senhor, quando vier, achar servindo assim". A falha
no ministério é também dita e tratada pelo próprio Senhor.
"Mas
se aquele mau servo disser no seu coração: O meu senhor tarde virá; e começar a
espancar os seus conservos, e a comer e a beber com os ébrios" (Mateus
24:48,49). Este é o outro e triste lado do quadro. O caráter do ministério é
grandemente afetado pela resistência ou rejeição à verdade da vinda do Senhor.
No lugar de serviço dedicado à família, com seu coração voltado para a
aprovação do mestre em seu retorno, há presunção, tirania e mundanismo. A
condenação de tal, quando o Senhor vier, será pior que a do mundo. Ele
"destinará a sua parte com os hipócritas" - o mesmo lugar de Judas -
onde "haverá pranto e ranger de dentes" (Mateus 24:51). Tais são as
temíveis consequências do esquecimento quanto ao retorno do Senhor. Mas isto é
mais do que mero erro doutrinal ou uma diferença de opinião sobre a vinda do
Senhor. Estava "no seu coração", sua vontade vinha dali. Ele desejava
em seu coração que o Senhor ficasse longe, como se Sua vinda fosse estragar
todos os seus planos e acabar com toda a sua grandeza mundana. Não é esta uma
imagem tão verdadeira do que aconteceu? E que lição solene para aqueles que
tomam para si um lugar de serviço na igreja! A mera nomeação de soberania, ou a
escolha do povo, não será suficiente naquele dia, a menos que eles também
tenham sido escolhidos do Senhor e fiéis em Sua casa.
2.
Na segunda parábola, cristãos professos, durante a ausência do Senhor, são
representados por virgens que saíram ao encontro do Noivo para iluminar o
caminho dEle até Sua casa. Esta foi a atitude dos primeiros cristãos. Eles
saíram do mundo e do judaísmo para ir adiante e se encontrar com o Noivo.
Mas sabemos o que aconteceu. Ele tarda em vir, e todas elas
caem no sono e adormecem. "Mas à meia-noite ouviu-se um clamor: Aí vem o
esposo, saí-lhe ao encontro" (Mateus 25:6). Desde o primeiro século até o
presente
Nota: Século XIX, quando foi escrito este livro}, ouvimos muito
pouco sobre a vinda do Senhor. De vez em quando, aqui e ali, uma voz fraca
podia ser ouvida sobre o assunto, mas não até o início do século XIX ouviu-se o
clamor da meia-noite. Agora temos muitos folhetos e volumes sobre o assunto, e
muitos estão pregando isto em quase todas as terras debaixo do céu.A meia-noite
já passou, e logo vem a manhã.
A
restauração da verdade da vinda do Senhor marca uma época distinta na história
da igreja. E, como todo reavivamento, foi uma obra do Espírito Santo,por meio
de instrumentos de Sua própria escolha, e por meios que Ele elaborou. E quão
grande é a longanimidade do Senhor, que em meio a esse grande movimento
instituiu um tempo entre o clamor e a chegada do Noivo para provar a condição
de cada um. Cinco das dez virgens não tinham óleo em suas lâmpadas - sem
Cristo, sem o Espírito Santo habitando nelas. Elas tinham apenas a lâmpada
exterior da profissão. Quão terrivelmente solene pensamento, se olharmos para a
cristandade a partir deste ponto de vista! Cinco dentre dez são falsas, e
contra elas a porta será fechada para sempre. Como esse pensamento deveria
mover a seriedade e energia no evangelismo! Que possamos sabiamente aproveitar
melhor o tempo que graciosamente foi dado entre o clamor da meia-noite e a
vinda do Noivo.
3.
Na primeira parábola, o assunto é o ministério dentro da casa; na terceira, é o
ministério fora da casa - o evangelismo. Na segunda parábola, é a expectativa
pessoal da vinda do Senhor, com a posse daquilo que é o requisito para ir com
Ele para as bodas do filho do Rei.
"Porque
isto é também como um homem que, partindo para fora da terra, chamou os seus
servos, e entregou-lhes os seus bens. E a um deu cinco talentos, e a outro
dois, e a outro um, a cada um segundo a sua capacidade, e ausentou-se logo para
longe." (Mateus 25:14,15). Aqui o Senhor é representado como deixando este
mundo e voltando para o céu; e enquanto Ele está ausente, Seus servos devem
negociar com os talentos conferidos a eles. "E, tendo ele partido, o que
recebera cinco talentos negociou com eles, e granjeou outros cinco talentos. Da
mesma sorte, o que recebera dois, granjeou também outros dois." (Mateus
25:16,17). Aqui temos o verdadeiro princípio e o verdadeiro caráter do
ministério cristão. O próprio Senhor chamou os servos e deu-lhes os talentos, e
o servo é responsável perante o próprio Senhor pelo cumprimento de seu chamado.
O exercício de um dom, seja dentro ou fora da casa, embora sujeito às direções
do mundo e sempre exercitado em amor e para a bênção,não é de modo nenhum
dependente da vontade de um soberano, de um sacerdote ou do povo, mas e Cristo
apenas, a verdadeira Cabeça da igreja. É algo grave e solene para qualquer um
interferir nas reivindicações de Cristo no serviço de Seu servo. Tocar nisto é
deixar de lado a responsabilidade para com Cristo e derrubar o princípio
fundamental do ministério cristão.
O
sacerdócio era a característica distinta da dispensação judaica; o ministério,
de acordo com Deus, é a característica do período cristão. Daí o fracasso da
igreja professa, quando procurou imitar o judaísmo de tantas formas, tanto em
seu sacerdócio quanto em seu ritualismo. Se uma ordem sacerdotal, com ritos e
cerimônias, é ainda necessária, a eficácia da obra de Cristo é posta e causa.
De fato, embora não em palavras, isto ataca a raiz do cristianismo. Mas tudo é
resolvido pela Palavra de Deus. "Mas este, havendo oferecido para sempre
um único sacrifício pelos pecados, está assentado à destra de Deus, daqui em
diante esperando até que os seus inimigos sejam postos por escabelo de seus pés.
Porque com uma só oblação aperfeiçoou para sempre os que são santificados...
Ora, onde há remissão destes, não há mais oblação pelo pecado." (Hebreus
10:12-14,18)
O
ministério, então, é um assunto da mais alta dignidade e do mais profundo
interesse. Testifica a obra, a vitória e a glória de Jesus, de que o perdido
pode ser salvo. É a atividade do amor de Deus se dirigindo a um mundo alienado
e arruinado, e fervorosamente rogando por almas para se reconciliar com Ele.
"Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não lhes imputando
os seus pecados; e pôs em nós a palavra da reconciliação." (2 Coríntios
5:19-21). O sacerdócio judaico mantinha o povo em suas relações com Deus: o
ministério cristão é Deus em graça, por meio de Seus servos, libertando almas
do pecado e da ruína, e trazendo-as para perto se Si mesmo como felizes
adoradores no lugar santíssimo (santo dos santos).
Voltando
à nossa parábola, há uma coisa que deve ser especialmente observada aqui, que
mostra a soberania e sabedoria do Senhor em conexão com o ministério. Ele deu
quantias diferentes para cada um, de acordo com suas capacidades. Cada um tinha
uma capacidade natural que servia exatamente para o serviço para o qual foi
empregado, e os dons concedidos de acordo com a medida do dom de Cristo para
seu cumprimento. "E ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para
profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e
doutores"(Efésios 4:11). O servo deve ter certas qualificações naturais
para sua obra, além do poder do Espírito Santo. Então o Senhor pode criar em
seu coração, pelo Espírito Santo, um amor verdadeiro pelas almas, que é o
melhor dom do evangelista. Em seguida, ele deve apressar-se e exercitar seu dom
de acordo com sua capacidade, para a bênção de almas e para a glória de Deus.
Que possamos lembrar que somos responsáveis por essas duas coisas - o dom
graciosamente concedido, e a capacidade por meio da qual o dom deve ser
exercitado. Quando o Senhor vier ter com Seus servos, não será suficiente dizer
"Eu nunca fui educado para isso, ou nomeado para o ministério". A
questão será: "Eu esperei no Senhor para ser usado por Ele de acordo com
aquilo que ele tinha preparado para mim? Ou será que escondi o meu talento na
terra?". Fidelidade ou infidelidade será a única coisa em questão para
Ele.
Aquilo
que distinguia o servo fiel do infiel era a confiança em seu mestre. O servo
infiel não conhecia o Senhor: ele agiu com base no medo, não com base no amor,
e assim enterrou seu único talento na terra. O fiel conhecia o Senhor, confiava
nEle, e o serviu por amor, e foi recompensado. O amor é a única fonte
verdadeira de serviço para Cristo, seja na igreja ou pelo mundo afora. Que
nunca sejamos achados dando desculpas para nós mesmos, como o "mau e
negligente servo", mas que estejamos sempre contando com o amor, a graça,
a verdade e o poder de nosso bendito Salvador e Senhor.
O EFEITO DA NOVA ORDEM CLERICAL
Pode
ser justo supor que aqueles bons homens, por quem uma nova ordem de coisas foi
trazida para a igreja, tendo excluído o livre ministério do Espírito Santo nos
membros do corpo, desejavam de coração o bem-estar da igreja.
É
evidente que Inácio, por esses meios, esperava evitar "divisões".
Mas, por mais bem intencionados que fossem seus motivos, é o cúmulo da loucura
humana - se não pior - interferir com, ou procurar mudar, a ordem de Deus. Este
foi o erro de Eva, e todos conhecemos muito bem as consequências. Foi também o
pecado original da igreja, pelo qual ela tem sofrido por estes últimos 18
séculos.
Nota.
do T.: este livro foi escrito no século XIX.
O
Espírito Santo enviado do céu é o único poder de ministério, mas o Senhor tem a
liberdade de escolher e empregar Seus próprios servos. Os arranjos e nomeações
humanas necessariamente interferem com a liberdade do Espírito. Elas extinguem
o Espírito Santo: apenas Ele sabe onde está a capacidade, e onde, quando e como
dispensar os dons. Falando da igreja como era nos dias dos apóstolos, é dito:
"Mas um só e o mesmo Espírito opera todas estas coisas, repartindo
particularmente a cada um como quer." Também lemos: "Há diversidade
de dons, mas o Espírito é o mesmo. E há diversidade de ministérios, mas o
Senhor é o mesmo. E há diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que opera
tudo em todos. Mas a manifestação do Espírito é dada a cada um, para o que for
útil." (1 Coríntios 12:4-7,11). Aqui tudo está nas mãos divinas. O
Espírito Santo dispensa o dom. Este deveria ser exercido no reconhecimento do
senhorio de Cristo; e Deus dá eficácia ao ministério. Quão maravilhoso é ter o
Espírito, o Senhor, e Deus como a fonte, o poder e o caráter do ministério!
Quão grande, e quão triste, é a mudança disto para o rei, os sacerdotes e o
povo! Não é isso apostasia? Mas enquanto nos opomos à mera nomeação humana ao
ofício, seja qualificado ou não, contenderíamos mais seriamente pelo ministério
da Palavra tanto para santos* quanto para pecadores.
Nota.
do T.: lembrando que "santos" na Novo Testamento refere-se àqueles
salvos por Cristo, justificados (tornados justos) gratuitamente pela fé em Jesus.
"Chamados santos" (Rm 1:7).
Infelizmente
a igreja logo descobriu que o impedimento do ministério, do modo como nos é
apresentado na Palavra de Deus, e a introdução de uma nova ordem de coisas não
impediu que divisões, heresias e falsos mestres se manifestassem. É verdade que
a carne, até no mais verdadeiro e dotado cristão, pode se manifestar; mas
quando o Espírito de Deus está agindo em poder, e a autoridade da Palavra é
mantida, o remédio está em mãos: o mal será julgado em humildade e fidelidade a
Cristo. A partir dessa época - o início do segundo século, e até mesmo um pouco
antes disso - a igreja foi muito perturbada por heresias; e com o passar do
tempo, as coisas nunca melhoraram, mas sempre pioraram.
Irineu,
um cristão de grande fama, que sucedeu Potino como bispo de Lion em 177 d.C.,
nos deixou muita informação sobre o assunto das primeiras heresias. Supõe-se
que tenha escrito, no ano 183, seu grande livro "Contra as Heresias",
no qual dizem conter uma defesa da santa fé católica, e um exame e refutação
das falsas doutrinas defendidas pelos principais hereges.*
A ORIGEM DA DISTINÇÃO ENTRE CLÉRIGOS E LEIGOS
O
cristianismo, no início, não tinha qualquer ordem sacerdotal. Seus primeiros
convertidos iam por toda a parte anunciando o Senhor Jesus. Eles foram os primeiros
a disseminar em outros países as boas novas da salvação, antes mesmo dos
próprios apóstolos terem deixado Jerusalém (Atos 8:4). No decorrer do tempo,
quando eram encontrados convertidos o suficiente em algum lugar para formar uma
assembleia, eles se reuniam ao nome do Senhor no primeiro dia da semana para
partir o pão e edificarem uns aos outros em amor (Atos 20:7). Quando surgia a
oportunidade de visita de um apóstolo a tais reuniões, ele escolhia anciãos
para assumir a supervisão do pequeno rebanho; diáconos eram escolhidos pela
assembleia. Assim era toda constituição das primeiras igrejas. Se o Senhor
levantasse um evangelista, e almas fossem convertidas, elas eram batizadas em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Isto acontecia, é claro, fora da
assembleia, e não era um ato eclesiástico. Após devido exame espiritual quanto
à genuinidade dos resultados da obra do evangelista, estando a assembleia
satisfeita, os novos crentes eram recebidos à comunhão.
Percebe-se,
a partir desse breve esboço da ordem divina nas igrejas, que não havia
distinções tais como "o clero" e "o leigo". Todos estavam
no mesmo patamar quanto ao sacerdócio, adoração e proximidade de Deus. Como os
apóstolos Pedro e João dizem: "Vós também, como pedras vivas, sois
edificados casa espiritual e sacerdócio santo, para oferecer sacrifícios
espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo." (1 Pedro 2:5). E assim a
assembleia inteira podia cantar: "Àquele que nos amou, e em seu sangue nos
lavou dos nossos pecados, e nos fez reis e sacerdotes para Deus e seu Pai; a
ele glória e poder para todo o sempre. Amém." (Apocalipse 1:5,6). O único
sacerdócio, então, na igreja de Deus, é o comum sacerdócio de todos os crentes.
O mais humilde servo no palácio de um arcebispo, se lavado no sangue de Cristo,
é mais branco que a neve, e pronto para entrar no lugar santíssimo e adorar
além do véu.
Não
há mais adoração no pátio exterior. A separação de uma classe privilegiada -
uma ordem sacerdotal - é desconhecida no Novo Testamento. A distinção entre
clero e leigo era sugerida pelo judaísmo, e a invenção humana logo a tornou
algo grandioso; mas foi a ordenação episcopal que estabeleceu a distinção e
ampliou a separação. O bispo gradualmente assumiu o título de pontífice. Os
presbíteros, e até mesmo os diáconos, se tornaram, assim como os bispos, uma
ordem sagrada. O lugar de mediação e de grande proximidade de Deus foi assumida
pela casta sacerdotal, e também de autoridade sobre os leigos. No lugar de Deus
falando diretamente ao coração e consciência por Sua própria Palavra, e sendo o
coração e a consciência trazidos diretamente à presença de Deus, apareceu o
sacerdócio se colocando entre eles. Assim a Palavra de Deus foi perdida de
vista, e a fé ficou à mercê das opiniões dos homens. O bendito Senhor Jesus,
como o Grande Sumo Sacerdote de Seu povo, e como o Mediador entre Deus e os
homens, foi então praticamente deslocado e deixado de lado.
Uma
das maiores autoridades sobre a ordem episcopal é da opinião de que a distinção
entre clero e leigo é derivada do Antigo Testamento: que assim como o sumo
sacerdote tinha seu ofício atribuído a ele, e os sacerdotes também tinham suas
atribuições próprias, e os levitas seus serviços peculiares; assim também os
leigos estavam da mesma maneira sob as obrigações próprias aos leigos. Ele
também afirma que o comum sacerdócio de todos os crentes é ensinado no Novo
Testamento, mas que os Pais desde os tempos mais antigos formaram a igreja no
sistema judaico. - Gingham on the Antiquity of the Christian Church, vol. 1, p.
42.}
Assim,
infelizmente, vemos na igreja o que tem sido verdade para o homem desde Adão.
Tudo o que foi confiado ao homem falhou. Desde o tempo em que a
responsabilidade de manter a igreja como a coluna e firmeza da verdade caiu nas
mãos humanas, não houve nada além de falha. A Palavra de Deus, no entanto,
permanece a mesma, e sua autoridade nunca pode falhar, bendito seja o Seu nome.
Um dos principais objetivos deste livro é chamar a atenção do leitor aos
princípios e à ordem da igreja, como ensinada no Novo Testamento. "Deus é
Espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em
verdade." (João 4:24). Isto é, devemos adorá-Lo e servi-Lo de acordo com a
verdade, e sob a direção e unção do Espírito Santo, se for para glorificar Seu
nome, e adorá-Lo e servi-Lo de maneira aceitável.
Quase
todos os escritores eclesiásticos afirmam que nem o Próprio Senhor nem Seus
apóstolos forneceram quaisquer preceitos quanto à ordem e governo da igreja -
que tais coisas foram deixadas para a sabedoria e prudência de seus líderes, e
ao caráter das épocas. Por essas suposições muita coisa foi entregue à vontade
humana. Sabemos as consequências. O homem procurou a sua própria glória. A
simplicidade do Novo Testamento, o caminho humilde do Senhor e de Seus
apóstolos, o zelo e abnegação de Paulo, tudo isso foi ignorado, e as grandezas
mundanas logo se tornaram o objeto e ambição do clero. Um breve resumo do
ofício de um bispo irá deixar claro essas coisas e, sem dúvida, será de grande
interesse aos leitores.
O QUE ERA UM BISPO NOS
PRIMEIROS
TEMPOS?
O
mais humilde camponês está familiarizado com a grandeza mundana de um bispo,
mas ele pode não saber como um ministro de Cristo, e um sucessor de um humilde
pescador da Galileia, chegou a tal dignidade. Nos dias dos apóstolos, e por
mais de cem anos depois, o ofício de um bispo era uma obra laboriosa, mas uma
"boa obra". Ele era encarregado de uma única igreja, que podia estar
normalmente reunida em uma casa particular. Ele não estava lá como um
"senhor sobre a herança de Deus" (1 Pedro 5:3), mas na realidade como
um ministro e servo, instruindo o povo, e cuidando dos doentes e pobres
pessoalmente. Os presbíteros, sem dúvida, ajudavam na gestão dos assuntos
gerais da igreja, e também os diáconos; mas o bispo tinha a parte principal do
serviço. Ele não tinha autoridade, no entanto, de decretar ou sancionar
qualquer coisa sem a aprovação do presbitério e do povo. Não havia, então, o
pensamento de "clero inferior" sob ele. E nesse tempo as igrejas não
tinham renda, com exceção de contribuições voluntárias do povo que, moderados
como sem dúvidas eram, deixavam uma pequena quantia para o bispo para ajudar os
pobres e necessitados.
Mas
naqueles primeiros tempos os oficiais da igreja continuavam, muito
provavelmente, em seus antigos ofícios e ocupações, para sustento de si mesmos
e de suas famílias, do mesmo modo que antes. "Um bispo", diz Paulo,
"deve ser dado à hospitalidade" (Tito 1:8). E isso ele não poderia
ser se sua renda dependesse das ofertas dos pobres. Não foi até por volta do
ano 245 que o clero passou a receber salário, e foram proibidos de seguir com
seus empregos do mundo; mas próximo ao fim do segundo século surgiram
circunstâncias na história da igreja que afetaram grandemente a humildade e
simplicidade original de seus supervisores, e que tenderam à corrupção da ordem
sacerdotal. "Essa mudança começou", diz Waddington, "perto do
início do segundo século; e é certo de que nesse período encontramos as
primeiras denúncias de corrupção incipiente
do clero." A partir do momento em que os interesses dos ministros
se tornaram totalmente distintos dos interesses do cristianismo, pode-se
considerar que muitas e grandes mudanças para pior tinham começado. Vamos tomar
nota de algumas circunstâncias, e em primeiro lugar, a origem das dioceses.
A ORIGEM DAS DIOCESES
Os
bispos que viviam nas cidades eram, quer pelas suas próprias pregações, quer
pela pregação dos outros - presbíteros, diáconos ou o povo - os responsáveis
pelo surgimento de novas igrejas nas cidades e vilas vizinhas. Essas
assembleias jovens, muito naturalmente, continuavam sob o cuidado e proteção
das igrejas das cidades por meio das quais eles tinham recebido o evangelho e
se tornado em novas igrejas. Províncias eclesiásticas eram, assim, formadas
gradualmente, o que os gregos mais tarde denominaram dioceses. Os bispos das
cidades reivindicavam o privilégio de nomear ofícios e cargos a essas
"igrejas rurais"; e as pessoas a quem eles concediam suas instruções
e cuidados eram chamados de bispos distritais. Estes formavam uma nova classe
que ficava entre os bispos e presbíteros, sendo considerados inferiores àqueles
e superiores a estes. Assim foram criadas novas distinções e divisões, e os
ofícios e cargos se multiplicaram.
A ORIGEM DO BISPO METROPOLITANO
Igrejas
assim constituídas e reguladas rapidamente se espalharam por todo o império. No
gerenciamento de seus assuntos internos cada igreja era essencialmente distinta
da outra, embora andassem em comunhão espiritual com todas as outras e as
considerassem parte da única igreja de Deus. Mas, com o aumento do número de
crentes e a extensão das igrejas, variações na doutrina e na disciplina
surgiram, o que nem sempre podia ser resolvido nas assembleias individuais.
Isto deu origem aos concílios, ou sínodos. Estes eram compostos principalmente
por aqueles que tomavam parte no ministério. Mas quando os representantes das
igrejas eram assim reunidos, logo se descobria que o controle de um presidente
era necessário. A menos que haja respeito e submissão pela ação soberana do Espírito
Santo na igreja, haverá anarquia sem um presidente. O bispo da capital da
província era geralmente apontado para presidir, sob o elevado título de bispo
metropolitano. Em seu retorno para casa era difícil deixar de lado essas
ocasionais honrarias, então ele logo reivindicava para si o título pessoal e
permanente de bispo metropolitano.
Os
bispos e presbíteros, até por volta desse tempo, eram geralmente vistos como
iguais, ou a mesma coisa, sendo os termos usados como sinônimos. Mas agora os
bispos se consideravam investidos com poder supremo na direção da igreja, e
estavam determinados a se manterem nessa autoridade. Os presbíteros se
recusavam a lhes conceder essa nova e auto-assumida dignidade, e buscavam
manter sua própria independência. Assim se ergueu a grande controvérsia entre
os sistemas presbiterianos e episcopais, que continuam até hoje, e da qual
poderemos tratar com mais detalhes mais adiante. Foi dito o suficiente para
mostrar ao leitor o início de muitas coisas que ainda vivem diante de nós na
igreja professa. Na consagrada ordem do clero será encontrada a semente da qual
surgiu todo o sacerdócio medieval, o pecado da simonia. Nota. do T.: simonia é
a venda de "favores divinos", as leis do celibato, e a terrível
corrupção da idade das trevas.
Tendo
visto o que estava acontecendo dentro da igreja desde o início, e especialmente
entre seus líderes, vamos agora continuar a história geral a partir da morte de
Marco Aurélio.
DE CÔMODO À ASCENSÃO DE CONSTANTINO
(ANOS 180-313 D.C.)
O
cristianismo, sob os sucessores de Aurélio, desfrutou de uma temporada de
relativo repouso e tranquilidade. A depravação de Cômodo foi útil no tocante
aos interesses dos cristãos após seus longos sofrimentos sob seu pai, e o breve
reinado de muitos dos imperadores que se seguiram não os deram tempo de
combater o crescimento do cristianismo. "Durante pouco mais que um
século", diz Milman, "desde a ascensão de Cômodo até a de
Diocleciano, mais de vinte imperadores passaram como sombras ao longo da
trágica cena do palácio imperial. O império do mundo se tornou o prêmio de
façanhas mirabolantes, ou o precário troféu da soldadesca sem lei. Uma longa
linhagem de aventureiros militares, muitas vezes estranhos ao nome, à raça e à
linguagem de Roma - africanos, pireneus, árabes e godos - agarraram o
inconstante cetro do mundo. A mudança de soberanias era quase sempre uma
mudança de dinastia, ou, por alguma estranha fatalidade, cada tentativa de
restabelecer um sucessão hereditária era frustrada pelos vícios ou pela imbecilidade
da segunda geração."
Assim
os cristãos tiveram cerca de cem anos de relativo descanso e paz. Havia, sem
dúvida, muitos casos de perseguição e martírio durante esse período, mas tais
casos eram mais o resultado de hostilidade pessoal contra algum indivíduo do que
algum tipo de política sistemática do governo contra o cristianismo. O primeiro
e imponente objetivo de cada imperador que se sucedia era assegurar seu
disputado trono. Eles não tinham tempo de se dedicarem à supressão do
cristianismo, ou às mudanças sociais e religiosas dentro do império. Assim a
grande Cabeça da igreja - que é também "sobre todas as coisas a cabeça da
igreja" (Efésios 1:22) - tornou a fraqueza e insegurança do trono o meio
indireto da força e prosperidade da igreja.
Mas
embora o reinado de Cômodo tenha sido geralmente favorável ao progresso do
cristianismo, houve um notável exemplo de perseguição que devemos tomar nota.
Apolônio,
um senador romano, renomado pela erudição e filosofia, era um cristão sincero.
Muitos da nobreza de Roma, com toda sua família, abraçaram o cristianismo nessa
época. A dignidade do senado romano sentiu-se reduzida por tais novidades.
Supõe-se que isto tenha levado à acusação de Apolônio perante o magistrado. Seu
acusador, baseado em uma velha e não revogada lei de Antonino Pio, que
decretava cruéis punições contra os acusadores dos cristãos, foi sentenciado à
morte e executado. O magistrado pediu ao prisioneiro, Apolônio, que desse um
relato de sua fé perante o senado e a corte. Ele obedeceu, e ousadamente confessou
sua fé em Cristo. Consequentemente, por um decreto do senado, ele foi
decapitado. Alguns dizem que este é o único registro, em toda a história, de um
julgamento no qual tanto o acusado quanto o acusador sofreram judicialmente.
Mas a mão do Senhor estava nisto, e muito acima do acusador e do magistrado,
Perenius, que condenou os dois. A partir deste período muitas famílias de
distinção e opulência em Roma professaram o cristianismo, e às vezes
encontramos cristãos na família imperial.
Após
um reinado de cerca de 12 anos, o indigno filho de Aurélio morreu dos efeitos de
um copo de vinho envenenado.
Pertinax,
imediatamente após a morte de Cômodo, foi eleito pelo senado para ocupar o
trono; mas após um breve reinado de sessenta e seis dias, ele foi morto por
insurgentes. Seguiu-se uma guerra civil, e Septímio Severo finalmente obteve o
poder soberano de Roma.
O CRISTIANISMO SOB O REINADO DE SEVERO
(ANOS 194 A 210 D.C.)
No
início do reinado de Severo, ele era bastante favorável aos cristãos. Um
escravo cristão, chamado Próculo, foi o meio de restaurar a saúde do imperador,
ao ungi-lo com óleo. Essa notável cura - sem dúvida em resposta à oração - deu
aos cristãos grande favor aos olhos de Severo. Próculo recebeu uma posição
honrosa na família imperial, e uma criada e um tutor cristão foram contratados
para formar o caráter do jovem príncipe. Ele também protegeu da indignação
popular homens e mulheres da mais alta classe em Roma - senadores, suas esposas
e famílias - que tinham abraçado o cristianismo. Mas, infelizmente, todo esse
favor para com os cristãos era meramente resultado de circunstâncias locais. As
leis continuaram as mesmas, e a violenta perseguição eclodiu contra eles em
determinadas províncias.
AS PERSEGUIÇÕES SOB SEVERO
(ANO 202 D.C.)
Não
foi até cerca do décimo ano de seu reinado que a ferocidade natural de sua
mente sombria e implacável se manifestou contra os cristãos. Em 202, após o
retorno do oriente, onde ele tinha conseguido grandes vitórias, e sem dúvida se
enchido de orgulho, ele estendeu sua mão e impiedosamente se atreveu a deter o
progresso do cristianismo - a carruagem do evangelho.
Ele
aprovou uma lei que proibia, sob severas penas, que qualquer um de seus súditos
se tornasse judeu ou cristão. Esta lei, como era de se esperar, acendeu uma
severa perseguição contra novos convertidos e cristãos em geral. Ela estimulou
seus inimigos a todo o tipo de violência. Grandes somas de dinheiro foram
extorquidas de cristãos tímidos por autoridades corruptas como preço pela paz.
Embora alguns tenham se submetido em troca de vida e liberdade, esta prática
foi veementemente denunciada por outros. Era considerada pelos mais zelosos
como degradante para o cristianismo, e uma vergonhosa barganha das esperanças e
glórias do martírio. Ainda assim, a perseguição parece não ter sido geral. Ela
deixou cicatrizes mais profundas no Egito e na África.
Em
Alexandria, Leônidas, pai do famoso Orígenes, sofreu o martírio. Os jovens nas
escolas que estavam recebendo uma educação cristã foram submetidos a severas
torturas e alguns de seus professores foram presos e queimados. O jovem
Orígenes se distinguiu nesta época por seus trabalhos ativos e destemidos nas
agora quase desertas escolas. Ele esperava seguir os passos de seu pai, e mais
procurava do que evitava a coroa do martírio. E foi justamente na África, um
lugar no qual sempre pensamos como um deserto sombrio, miserável e escassamente
povoado, que a linha prateada da maravilhosa graça de Deus foi mais
distintamente marcada na celestial paciência e fortaleza dos santos sofredores.
Temos de convidar nossos leitores a entrar em alguns detalhes a mais sobre
isso.
A PERSEGUIÇÃO NA ÁFRICA
Os
historiadores dizem que em nenhuma parte do Império Romano o cristianismo tinha
criado raízes mais profundas e permanentes do que na província da África.
Naquela época, essa região era cheia de ricas e populosas cidades. O tipo
africano de cristianismo era totalmente diferente do que era chamado de
cristianismo egípcio. O primeiro era mais sincero e apaixonado, e o último era
sonhador e especulativo, graças à má influência do platonismo. Tertuliano
pertence a este período, e é um verdadeiro exemplo desta diferença; mas veremos
mais sobre isso mais adiante. Vamos agora tomar nota de alguns dos mártires
africanos.
PERPÉTUA E SEUS COMPANHEIROS
Dentre
outros que foram presos e martirizados na África durante essa perseguição, Perpétua
e seus companheiros, dentre todas as histórias, merecem um lugar distinto. A
história do martírio deles não só carrega todo o selo dessa verdade
circunstancial, como também está repleta de toques mais requintados de
sentimento e afeição natural. Aqui vemos a bela combinação dos mais ternos
sentimentos e dos mais fortes afetos que o cristianismo reconhece em todos os
seus direitos, e os torna ainda mais profundos e ternos porque foi a causa do
sacrifício deles sobre o altar da total dedicação àquEle que morreu em total
dedicação a nós. "O qual me amou", como diz a fé, com propriedade,
"e se entregou a si mesmo por mim."(Gálatas 2:20)
Em
Cartago, no ano 202, três jovens homens, Revocato, Saturnino e Secundulo, e
duas moças, Perpétua e Felicidade, foram presos, todos eles sendo ainda
catecúmenos, isto é, novos convertidos que se preparavam para o batismo e
comunhão. Perpétua era de boa família, rica e nobre, de educação liberal, e
honrosamente casada. Ela tinha cerca de 22 anos de idade, e era mãe de um bebê
ainda de peito. Toda sua família aparentemente era cristã, com exceção de seu
pai, que ainda era pagão. Nada é dito sobre seu marido. Seu pai era muito
apegado a ela, e temia muito a desgraça que seus sofrimentos por Cristo trariam
para sua família. Assim ela tinha de lutar não apenas com a morte em sua forma
mais terrível, mas também com todo laço sagrado da natureza.
Quando
ela foi levada pela primeira vez perante seus perseguidores, seu velho pai veio
e pediu que ela se retratasse e dissesse que não era cristã. "Pai",
ela respondeu calmamente, apontando para um vaso que estava no chão,
"poderia eu chamar esse vaso de qualquer coisa além do que ele é?"
"Não", ele respondeu. "Assim também eu não poderia te dizer nada
além do que eu sou, uma cristã." Alguns dias depois, os jovens cristãos
foram batizados. Apesar de estarem sob guarda, eles não estavam ainda presos na
prisão. Mas pouco tempo depois disto, eles foram lançados na masmorra.
"Então", ela disse, "eu fui tentada, estava apavorada, pois eu
nunca tinha estado em tal escuridão antes. Oh, que dia terrível! O calor
excessivo ocasionado pelo número de pessoas, o duro tratamento dos soldados, e,
finalmente, a ansiedade por causa do meu bebê, me tornou miserável." Os
diáconos, no entanto, conseguiram adquirir para os prisioneiros cristãos um
lugar melhor, onde ficavam separados dos criminosos comuns. Tais vantagens
podiam geralmente ser adquiridas dos corruptos supervisores das prisões.
Perpétua estava agora feliz por ter seu filho consigo. Ela o pegou no colo e
exclamou: "Agora, esta prisão se tornou um palácio para mim!".
Após
alguns dias houve um rumor de que os prisioneiros seriam examinados. O pai
apressou-se até sua filha em grande aflição de espírito. "Minha
filha", disse ele, "tenha pena de meus cabelos grisalhos, tenha pena
do seu pai, se ainda sou digno de ser chamado seu pai. Se eu a eduquei até a
flor da sua juventude, se eu preferi você a todos os seus irmãos, não me
exponha a tal vergonha entre os homens.
Olhe
para o seu bebê - seu filho que, se você morrer, não poderá sobreviver por
muito tempo. Deixe seu espírito elevado de lado, para que todos nós não
mergulhemos em ruínas. Pois se você morrer, então nenhum de nós jamais terá
coragem de falar livremente de novo." Enquanto ele falava isto, ele beijou
suas mãos, se lançou a seus pés, suplicando-lhe com termos carinhosos e muitas
lágrimas. Mas, embora muito comovida e aflita pela visão do seu pai e sua forte
e terna afeição por ela, ela ficou calma e firme, e sentiu-se principalmente
preocupada pelo bem de sua alma." Os cabelos grisalhos de meu pai",
disse ela, "me afligem ao considerar que apenas ele da minha família não
se regozijaria com meu martírio." "O que acontecerá", disse-lhe
ela, "quando eu chegar perante o tribunal, depende da vontade de Deus,
pois não permanecemos em pé por nossa própria força, mas apenas pelo poder de
Deus."
Ao
chegar a hora decisiva - o último dia do julgamento deles - uma imensa multidão
se reuniu. O velho pai novamente apareceu, na esperança de poder, pela última
vez, mudar a ideia de sua filha. Nesta ocasião ele levou seu neto recém-nascido
em seus braços, e pôs-se diante dela. Que momento! Que espetáculo! Seu velho
pai, seus cabelos grisalhos, seu tenro bebê: que apelo para uma filha - para o
coração de uma jovem mulher! "Tenha pena dos cabelos grisalhos de seu
pai", disse o governador," tenha pena de sua criança indefesa, e
ofereça sacrifício em prol da prosperidade do imperador." Assim ela se
apresentou perante o tribunal, perante a multidão reunida, perante as admiradas
miríades dos céus, perante as tenebrosas hostes do inferno. Mas Perpétua estava
calma e firme. À semelhança de Abraão, pai dos que creem, seus olhos não estavam
agora em seu filho, mas no Deus da ressurreição. Tendo encomendado seu filho
aos cuidados de sua mãe e de seu irmão, ela respondeu ao governador, e disse:
"Isto não posso fazer." "Você é cristã?", ele perguntou.
"Sim", ela respondeu, "sou cristã". Seu destino estava
agora decidido. Eles foram todos condenados a servirem de cruel entretenimento
para o povo e os soldados, em uma luta com feras selvagens, na festa de
aniversário do jovem Geta, filho mais novo do imperador. Eles retornaram a suas
masmorras, regozijando por terem sido capazes de testemunharem e sofrerem por
amor a Cristo. O carcereiro, Pudas, foi convertido por meio do comportamento
tranquilo dos prisioneiros.
Quando
foram levados ao anfiteatro, os espectadores notaram que os mártires tinham uma
aparência pacífica e alegre. De acordo com um costume que prevalecia em
Cartago, os homens deviam ser vestidos de escarlate como os sacerdotes de
Saturno, e as mulheres de amarelo como as sacerdotisas de Ceres, mas os
prisioneiros protestaram contra tal procedimento. "Viemos aqui",
disseram, "por nossa própria escolha, e não deixaremos que nossa liberdade
seja tirada de nós; nós desistimos de nossas vida para não sermos forçados a
tais abominações." Os pagãos reconheceram que o pedido deles era justo, e
cederam. Após se despedirem entre si com o mútuo beijo do amor cristão, com a
esperança certa de logo se encontrarem novamente, estando "fora do corpo,
para habitar com o Senhor" (2 Co 5:8), eles foram adiante para a cena de
morte em seus trajes simples. A voz de louvor a Deus foi ouvida pelos
espectadores. Perpétua estava cantando um salmo.Os homens foram expostos a
leões, ursos e leopardos; as mulheres foram atiradas a uma vaca furiosa. Mas
todos foram rapidamente libertados de seus sofrimentos pela espada do
gladiador, e entraram na alegria do seu Senhor. A interessante narrativa aqui
resumida, e que supõe-se ter sido escrita pelas próprias mãos de Perpétua
Nota: obviamente até o momento anterior ao seu
martírio}, respira tal ar de verdade e realismo que conquistou o respeito e
confiança de todas as eras. Mas o nosso principal objetivo ao escrevê-la para
nossos leitores é apresentá-los a uma imagem viva na qual muitas das melhores
qualidades da fé cristã estão belamente mescladas com os mais calorosos e
ternos sentimentos cristãos, e para que possamos aprender a não sermos
reclamões e murmuradores, mas a suportar todas as coisas por amor de Cristo,
para que Sua graça possa brilhar, nossa fé triunfar, e Deus ser glorificado.
Alguns
anos após esses eventos, Severo voltou sua atenção para a Grã-Bretanha, onde os
romanos estiveram perdendo terreno. O imperador, estando à frente de um
exército muito poderoso, rechaçou os nativos independentes da Caledônia, e
reconquistou a região ao sul da muralha de Antonino, mas perdeu tantas tropas
nas sucessivas batalhas em que foi obrigado a lutar que não achou apropriado
forçar suas conquistas além daquele limite. Sentindo o tempo de seu fim se
aproximando, ele se retirou para York, onde logo expirou, no décimo oitavo ano
de seu reinado, em 211 d.C.
A POSIÇÃO ALTERADA DO CRISTIANISMO NA SOCIEDADE
Após
a morte de Septímio Severo - exceto durante o curto reinado de Maximino - a
igreja desfrutou de uma temporada de relativa paz até o reinado de Décio, no
ano 249 d.C. Porém, durante o favorável reinado de Alexandre Severo, uma
mudança considerável aconteceu na relação do cristianismo com a sociedade. Por
toda a sua vida, Alexandre esteve sob a influência de sua mãe, Julia Mamea, que
é descrita por Eusébio como "uma mulher distinta por sua piedade e
religiosidade." Ela chamou Orígenes, sobre cuja fama ela tinha ouvido
falar muito, e aprendeu dele algo sobre as doutrinas do evangelho. Ela se
tornou, mais tarde, favorável aos cristãos, mas não há muitas evidências de que
ela também tenha sido cristã.
Alexandre
tinha uma disposição religiosa. Ele tinha muitos cristãos em sua casa, e bispos
eram admitidos até mesmo na corte em caráter reconhecidamente oficial. Ele
frequentemente usava as palavras de nosso Salvador: "E como vós quereis
que os homens vos façam, da mesma maneira lhes fazei vós, também." (Lucas
6:31). Ele tinha essas palavras escritas nas paredes de seu palácio e em outros
edifícios públicos. Mas todas as religiões eram consideradas para ele como
quase a mesma coisa, e sobre este princípio ele deu ao cristianismo um lugar em
seu eclético sistema.
OS PRIMEIROS EDIFÍCIOS PÚBLICOS
PARA ASSEMBLEIAS CRISTÃS
Um
importante ponto na história da igreja, e que prova sua posição alterada no
Império Romano, agora aparece diante de nós pela primeira vez. Foi durante o
reinado desse excelente príncipe (Alexandre Severo) que as primeiros edifícios
públicos foram levantados para as assembleias de cristãos. Uma pequena
circunstância conectada a uma pequena porção de terra em Roma mostra o
verdadeiro espírito do imperador e o crescente poder e influência dos cristãos.
Esse terreno, considerado de uso geral, foi escolhido por uma congregação como
o lugar para uma igreja, mas uma companhia de abastecedores reivindicava que
tinha prioridade sobre o uso do terreno. O caso foi julgado pelo imperador, que
decidiu conceder o terreno aos cristãos, sob a alegação de que era melhor
dedicá-lo à adoração a Deus em qualquer forma do que aplicá-lo a um uso profano
e indigno.
Edifícios
públicos - chamadas de "igrejas cristãs" - começavam agora a aparecer
em diferentes partes do império, e a possuir propriedades na terra. Os pagãos
nunca conseguiam entender porque os cristãos não tinham templos nem altares. Suas
assembleias religiosas, até essa época, eram realizadas de modo privado. Até
mesmos os judeus tinham suas sinagogas públicas, mas os cristãos não se reuniam
em algum edifício separado e distinto. A casa particular, as catacumbas, o
cemitério de seus mortos, eram os lugares em que ocorriam suas pacíficas
congregações. A privacidade deles, que
muitas vezes era, naqueles turbulentos tempos, sua segurança, estava agora
passando. Por outro lado, deve também ser observado que essa confidencialidade
era muitas vezes utilizada contra eles. Nós vimos como, no princípio, os pagãos
não conseguiam entender uma religião sem um templo, e então eram facilmente
persuadidos de que essas reuniões privadas e misteriosas, que pareciam evitar a
luz do dia, serviam apenas para o pior dos propósitos.
A
condição exterior do cristianismo estava agora mudando de maneira incrível -
mas infelizmente, não em favor da saúde e crescimento espiritual, como veremos
em breve. Havia agora edifícios bem conhecidos nos quais os cristãos se
reuniam, cujas portas podiam ficar bem abertas para toda a gente. O
cristianismo era agora reconhecido como uma das várias formas de adoração que o
governo não proibia. Mas a tolerância aos cristãos durante este período teve o
apoio favorável apenas de Alexandre. Nenhuma mudança foi feita nas leis do império
em favor dos cristãos, de modo que seu tempo de paz teria um fim com a morte do
imperador. Uma conspiração foi formada contra ele pela desmoralizada
soldadesca, que não podia suportar a disciplina que o imperador procurava
restaurar.
E
assim o jovem imperador foi morto em seu quarto, aos vinte e nove anos de idade
e no décimo terceiro ano de seu reinado.
O TRATAMENTO DO CLERO PELO SENHOR
Mal
as novas "igrejas" foram construídas, e os bispos recebidos na corte,
e a mão do Senhor se voltou contra eles. Aconteceu dessa maneira:
Maximino,
um rude camponês da Trácia, subiu ao trono imperial. Ele tinha sido o principal
instigador da morte, se não o verdadeiro assassino, do virtuoso Alexandre. Ele
começou seu reinado mandando prender e matar todos os amigos do último
imperador. Aqueles que tinham sido seus amigos ele tornou seus próprios
inimigos. Ele ordenou que os bispos, e particularmente aqueles que tinham sido
amigos íntimos de Alexandre, fossem executados. Sua vingança caiu mais ou menos
sobre todas as classes de cristãos, mas principalmente sobre o clero. Não era,
no entanto, pelo cristianismo que eles sofreram nessa ocasião, uma vez que
Maximino não se importava com qualquer religião, mas por causa da posição que
eles tinham alcançado no mundo. Pode haver reflexão mais dolorosa do que esta?
Por
volta dessa época destrutivos terremotos em várias províncias reacenderam o
ódio popular contra os cristãos em geral. A fúria do povo sob tal imperador era
irrestrita e, encorajados por governantes hostis, incendiaram as
recém-construídas "igrejas" e perseguiram os cristãos. Mas,
felizmente, o reinado desse selvagem imperador teve curta duração. Ele se
tornou intolerável pelas pessoas. O exército se amotinou e o matou no terceiro
ano de seu reinado, e uma época mais favorável para os cristãos retornou.
O
reinado de Gordiano I, de 238 a 244 d.C., e o de Filipe, de 244 a 249, foram
amigáveis para com a igreja. Mas repetidamente percebemos que um governo
favorável aos cristãos era imediatamente seguido por outro que os oprimia. Foi
particularmente o caso nessa época. Sob os sorrisos e o patrocínio de Filipe, o
Árabe, a igreja desfrutou de grande prosperidade exterior, mas estava na
véspera de uma perseguição mais terrível e mais generalizada do que qualquer
outra que já tinha se passado.
Uma
das causas que podem ter contribuído para isso foi a ausência dos cristãos nas
cerimônias nacionais que comemoravam o milésimo ano de Roma, em 247 d.C. Os
jogos seculares foram celebrados com grandiosidade sem precedentes por Filipe,
mas como ele era favorável aos cristãos, eles escaparam da fúria dos sacerdotes
pagãos e do populacho. Os cristãos eram agora um corpo reconhecido no Estado, e
por mais cuidado que tivessem de evitar se misturar às facções políticas ou às
festividades populares, eles eram considerados inimigos de prosperidade do
Estado e a causa de todas as calamidades. Chegamos agora a uma mudança completa
de governo - um governo que afligiu toda a igreja de Deus.
OS PRIMEIROS EDIFÍCIOS PÚBLICOS
PARA ASSEMBLEIAS CRISTÃS
Um
importante ponto na história da igreja, e que prova sua posição alterada no
Império Romano, agora aparece diante de nós pela primeira vez. Foi durante o
reinado desse excelente príncipe (Alexandre Severo) que as primeiros edifícios
públicos foram levantados para as assembleias de cristãos. Uma pequena
circunstância conectada a uma pequena porção de terra em Roma mostra o
verdadeiro espírito do imperador e o crescente poder e influência dos cristãos.
Esse terreno, considerado de uso geral, foi escolhido por uma congregação como
o lugar para uma igreja, mas uma companhia de abastecedores reivindicava que
tinha prioridade sobre o uso do terreno. O caso foi julgado pelo imperador, que
decidiu conceder o terreno aos cristãos, sob a alegação de que era melhor dedicá-lo
à adoração a Deus em qualquer forma do que aplicá-lo a um uso profano e
indigno.
As
melhores qualidades da fé cristã estão belamente mescladas com os mais
calorosos e ternos sentimentos cristãos, e para que possamos aprender a não
sermos reclamões e murmuradores, mas a suportar todas as coisas por amor de
Cristo, para que Sua graça possa brilhar, nossa fé triunfar, e Deus ser
glorificado.
Alguns
anos após esses eventos, Severo voltou sua atenção para a Grã-Bretanha, onde os
romanos estiveram perdendo terreno. O imperador, estando à frente de um
exército muito poderoso, rechaçou os nativos independentes da Caledônia, e
reconquistou a região ao sul da muralha de Antonino, mas perdeu tantas tropas
nas sucessivas batalhas em que foi obrigado a lutar que não achou apropriado
forçar suas conquistas além daquele limite. Sentindo o tempo de seu fim se
aproximando, ele se retirou para York, onde logo expirou, no décimo oitavo ano
de seu reinado, em 211 d.C.
Os
historiadores dizem que em nenhuma parte do Império Romano o cristianismo tinha
criado raízes mais profundas e permanentes do que na província da África.
Naquela época, essa região era cheia de ricas e populosas cidades. O tipo
africano de cristianismo era totalmente diferente do que era chamado de
cristianismo egípcio. O primeiro era mais sincero e apaixonado, e o último era
sonhador e especulativo, graças à má influência do platonismo. Tertuliano
pertence a este período, e é um verdadeiro exemplo desta diferença; mas veremos
mais sobre isso mais adiante. Vamos agora tomar
AS PERSEGUIÇÕES SOB SEVERO
(ANO 202 D.C.)
Não
foi até cerca do décimo ano de seu reinado que a ferocidade natural de sua
mente sombria e implacável se manifestou contra os cristãos. Em 202, após o
retorno do oriente, onde ele tinha conseguido grandes vitórias, e sem dúvida se
enchido de orgulho, ele estendeu sua mão e impiedosamente se atreveu a deter o
progresso do cristianismo - a carruagem do evangelho. Ele aprovou uma lei que
proibia, sob severas penas, que qualquer um de seus súditos se tornasse judeu
ou cristão. Esta lei, como era de se esperar, acendeu uma severa perseguição
contra novos convertidos e cristãos em geral. Ela estimulou seus inimigos a
todo o tipo de violência. Grandes somas de dinheiro foram extorquidas de
cristãos tímidos por autoridades corruptas como preço pela paz. Embora alguns
tenham se submetido em troca de vida e liberdade, esta prática foi
veementemente denunciada por outros. Era considerada pelos mais zelosos como
degradante para o cristianismo, e uma vergonhosa barganha das esperanças e
glórias do martírio. Ainda assim, a perseguição parece não ter sido geral. Ela
deixou cicatrizes mais profundas no Egito e na África.
Em
Alexandria, Leônidas, pai do famoso Orígenes, sofreu o martírio. Os jovens nas
escolas que estavam recebendo uma educação cristã foram submetidos a severas
torturas e alguns de seus professores foram presos e queimados. O jovem
Orígenes se distinguiu nesta época por seus trabalhos ativos e destemidos nas
agora quase desertas escolas. Ele esperava seguir os passos de seu pai, e mais
procurava do que evitava a coroa do martírio. E foi justamente na África, um lugar
no qual sempre pensamos como um deserto sombrio, miserável e escassamente
povoado, que a linha prateada da maravilhosa graça de Deus foi mais
distintamente marcada na celestial paciência e fortaleza dos santos sofredores.
Temos de convidar nossos leitores a entrar em alguns detalhes a mais sobre
isso.
O CRISTIANISMO SOB O REINADO DE SEVERO
(ANOS 194 A 210 D.C.)
No
início do reinado de Severo, ele era bastante favorável aos cristãos. Um
escravo cristão, chamado Próculo, foi o meio de restaurar a saúde do imperador,
ao ungi-lo com óleo. Essa notável cura - sem dúvida em resposta à oração - deu
aos cristãos grande favor aos olhos de Severo. Próculo recebeu uma posição
honrosa na família imperial, e uma criada e um tutor cristão foram contratados
para formar o caráter do jovem príncipe. Ele também protegeu da indignação
popular homens e mulheres da mais alta classe em Roma - senadores, suas esposas
e famílias - que tinham abraçado o cristianismo. Mas, infelizmente, todo esse
favor para com os cristãos era meramente resultado de circunstâncias locais. As
leis continuaram as mesmas, e a violenta perseguição eclodiu contra eles em
determinadas províncias.
DE CÔMODO À ASCENSÃO DE CONSTANTINO
(ANOS 180-313 D.C.)
O
cristianismo, sob os sucessores de Aurélio, desfrutou de uma temporada de
relativo repouso e tranquilidade. A depravação de Cômodo foi útil no tocante
aos interesses dos cristãos após seus longos sofrimentos sob seu pai, e o breve
reinado de muitos dos imperadores que se seguiram não os deram tempo de
combater o crescimento do cristianismo. "Durante pouco mais que um
século", diz Milman, "desde a ascensão de Cômodo até a de
Diocleciano, mais de vinte imperadores passaram como sombras ao longo da trágica
cena do palácio imperial. O império do mundo se tornou o prêmio de façanhas
mirabolantes, ou o precário troféu da soldadesca sem lei. Uma longa linhagem de
aventureiros militares, muitas vezes estranhos ao nome, à raça e à linguagem de
Roma - africanos, pireneus, árabes e godos - agarraram o inconstante cetro do
mundo. A mudança de soberanias era quase sempre uma mudança de dinastia, ou,
por alguma estranha fatalidade, cada tentativa de restabelecer um sucessão
hereditária era frustrada pelos vícios ou pela imbecilidade da segunda
geração."
Assim
os cristãos tiveram cerca de cem anos de relativo descanso e paz. Havia, sem
dúvida, muitos casos de perseguição e martírio durante esse período, mas tais
casos eram mais o resultado de hostilidade pessoal contra algum indivíduo do
que algum tipo de política sistemática do governo contra o cristianismo. O
primeiro e imponente objetivo de cada imperador que se sucedia era assegurar
seu disputado trono. Eles não tinham tempo de se dedicarem à supressão do
cristianismo, ou às mudanças sociais e religiosas dentro do império. Assim a
grande Cabeça da igreja - que é também" sobre todas as coisas a cabeça da
igreja" (Efésios 1:22) - tornou a fraqueza e insegurança do trono o meio
indireto da força e prosperidade da igreja. Mas embora o reinado de Cômodo
tenha sido geralmente favorável ao progresso do cristianismo, houve um notável
exemplo de perseguição que devemos tomar nota.
Apolônio,
um senador romano, renomado pela erudição e filosofia, era um cristão sincero.
Muitos da nobreza de Roma, com toda sua família, abraçaram o cristianismo nessa
época. A dignidade do senado romano sentiu-se reduzida por tais novidades.
Supõe-se que isto tenha levado à acusação de Apolônio perante o magistrado. Seu
acusador, baseado em uma velha e não revogada lei de Antonino Pio, que
decretava cruéis punições contra os acusadores dos cristãos, foi sentenciado à
morte e executado. O magistrado pediu ao prisioneiro, Apolônio, que desse um
relato de sua fé perante o senado e a corte. Ele obedeceu, e ousadamente
confessou sua fé em Cristo. Consequentemente, por um decreto do senado, ele foi
decapitado. Alguns dizem que este é o único registro, em toda a história, de um
julgamento no qual tanto o acusado quanto o acusador sofreram judicialmente. Mas
a mão do Senhor estava nisto, e muito acima do acusador e do magistrado,
Perenius, que condenou os dois. A partir deste período muitas famílias de
distinção e opulência em Roma professaram o cristianismo, e às vezes encontramos
cristãos na família imperial.Após um reinado de cerca de 12 anos, o indigno
filho de Aurélio morreu dos efeitos de um copo de vinho envenenado.
Pertinax,
imediatamente após a morte de Cômodo, foi eleito pelo senado para ocupar o
trono; mas após um breve reinado de sessenta e seis dias, ele foi morto por
insurgentes. Seguiu-se uma guerra civil, e Septímio Severo finalmente obteve o
poder soberano de Roma.
A ORIGEM DA DISTINÇÃO ENTRE CLÉRIGOS E LEIGOS
O
cristianismo, no início, não tinha qualquer ordem sacerdotal. Seus primeiros
convertidos iam por toda a parte anunciando o Senhor Jesus. Eles foram os
primeiros a disseminar em outros países as boas novas da salvação, antes mesmo
dos próprios apóstolos terem deixado Jerusalém (Atos 8:4). No decorrer do
tempo, quando eram encontrados convertidos o suficiente em algum lugar para
formar uma assembleia, eles se reuniam ao nome do Senhor no primeiro dia da
semana para partir o pão e edificarem uns aos outros em amor (Atos 20:7).
Quando surgia a oportunidade de visita de um apóstolo a tais reuniões, ele
escolhia anciãos para assumir a supervisão do pequeno rebanho; diáconos eram
escolhidos pela assembleia. Assim era toda constituição das primeiras igrejas.
Se o Senhor levantasse um evangelista, e almas fossem convertidas, elas eram
batizadas em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Isto acontecia, é
claro, fora da assembleia, e não era um ato eclesiástico. Após devido exame
espiritual quanto à genuinidade dos resultados da obra do evangelista, estando
a assembleia satisfeita, os novos crentes eram recebidos à comunhão.
Percebe-se,
a partir desse breve esboço da ordem divina nas igrejas, que não havia
distinções tais como "o clero" e "o leigo". Todos estavam
no mesmo patamar quanto ao sacerdócio, adoração e proximidade de Deus. Como os
apóstolos Pedro e João dizem: "Vós também, como pedras vivas, sois
edificados casa espiritual e sacerdócio santo, para oferecer sacrifícios
espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo." (1 Pedro.2:5). E assim a
assembleia inteira podia cantar: "Àquele que nos amou, e em seu sangue nos
lavou dos nossos pecados, e nos fez reis e sacerdotes para Deus e seu Pai; a
ele glória e poder para todo o sempre. Amém." (Apocalipse.1:5,6). O único
sacerdócio, então, na igreja de Deus, é o comum sacerdócio de todos os crentes.
O mais humilde servo no palácio de um arcebispo, se lavado no sangue de Cristo,
é mais branco que a neve, e pronto para entrar no lugar santíssimo e adorar
além do véu.
Não
há mais adoração no pátio exterior. A separação de uma classe privilegiada -
uma ordem sacerdotal - é desconhecida no Novo Testamento. A distinção entre
clero e leigo era sugerida pelo judaísmo, e a invenção humana logo a tornou
algo grandioso; mas foi a ordenação episcopal que estabeleceu a distinção e
ampliou a separação. O bispo gradualmente assumiu o título de pontífice. Os
presbíteros, e até mesmo os diáconos, se tornaram, assim como os bispos, uma
ordem sagrada. O lugar de mediação e de grande proximidade de Deus foi assumida
pela casta sacerdotal, e também de autoridade sobre os leigos. No lugar de Deus
falando diretamente ao coração e consciência por Sua própria Palavra, e sendo o
coração e a consciência trazidos diretamente à presença de Deus, apareceu o sacerdócio
se colocando entre eles. Assim a Palavra de Deus foi perdida de vista, e a fé
ficou à mercê das opiniões dos homens. O bendito Senhor Jesus, como o Grande
Sumo Sacerdote de Seu povo, e como o Mediador entre Deus e os homens, foi então
praticamente deslocado e deixado de lado.
Uma
das maiores autoridades sobre a ordem episcopal é da opinião de que a distinção
entre clero e leigo é derivada do Antigo Testamento: que assim como o sumo
sacerdote tinha seu ofício atribuído a ele, e os sacerdotes também tinham suas
atribuições próprias, e os levitas seus serviços peculiares; assim também os
leigos estavam da mesma maneira sob as obrigações próprias aos leigos. Ele
também afirma que o comum sacerdócio de todos os crentes é ensinado no Novo
Testamento, mas que os Pais desde os tempos mais antigos formaram a igreja no
sistema judaico.
Assim,
infelizmente, vemos na igreja o que tem sido verdade para o homem desde Adão.
Tudo o que foi confiado ao homem falhou. Desde o tempo em que a
responsabilidade de manter a igreja como a coluna e firmeza da verdade caiu nas
mãos humanas, não houve nada além de falha. A Palavra de Deus, no entanto,
permanece a mesma, e sua autoridade nunca pode falhar, bendito seja o Seu nome.
Um dos principais objetivos deste livro é chamar a atenção do leitor aos
princípios e à ordem da igreja, como ensinada no Novo Testamento. "Deus é
Espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em
verdade." (João 4:24). Isto é, devemos adorá-Lo e servi-Lo de acordo com a
verdade, e sob a direção e unção do Espírito Santo, se for para glorificar Seu
nome, e adorá-Lo e servi-Lo de maneira aceitável.
Quase
todos os escritores eclesiásticos afirmam que nem o Próprio Senhor nem Seus
apóstolos forneceram quaisquer preceitos quanto à ordem e governo da igreja -
que tais coisas foram deixadas para a sabedoria e prudência de seus líderes, e
ao caráter das épocas. Por essas suposições muita coisa foi entregue à vontade
humana. Sabemos as consequências. O homem procurou a sua própria glória. A
simplicidade do Novo Testamento, o caminho humilde do Senhor e de Seus
apóstolos, o zelo e abnegação de Paulo, tudo isso foi ignorado, e as grandezas
mundanas logo se tornaram o objeto e ambição do clero. Um breve resumo do
ofício de um bispo irá deixar claro essas coisas e, sem dúvida, será de grande
interesse aos
O EFEITO DA NOVA ORDEM CLERICAL
Pode
ser justo supor que aqueles bons homens, por quem uma nova ordem de coisas foi
trazida para a igreja, tendo excluído o livre ministério do Espírito Santo nos
membros do corpo, desejavam de coração o bem-estar da igreja. É evidente que
Inácio, por esses meios, esperava evitar "divisões". Mas, por mais
bem intencionados que fossem seus motivos, é o cúmulo da loucura humana - se
não pior - interferir com, ou procurar mudar, a ordem de Deus. Este foi o erro
de Eva, e todos conhecemos muito bem as consequências. Foi também o pecado
original da igreja, pelo qual ela tem sofrido por estes últimos 18 séculos {*
N. do T.: este livro foi escrito no século XIX}.
O
Espírito Santo enviado do céu é o único poder de ministério, mas o Senhor tem a
liberdade de escolher e empregar Seus próprios servos. Os arranjos e nomeações
humanas necessariamente interferem com a liberdade do Espírito. Elas extinguem
o Espírito Santo: apenas Ele sabe onde está a capacidade, e onde, quando e como
dispensar os dons. Falando da igreja como era nos dias dos apóstolos, é dito:
"Mas um só e o mesmo Espírito opera todas estas coisas, repartindo
particularmente a cada um como quer." Também lemos: "Há diversidade
de dons, mas o Espírito é o mesmo. E há diversidade de ministérios, mas o
Senhor é o mesmo. E há diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que opera
tudo em todos. Mas a manifestação do Espírito é dada a cada um, para o que for
útil." (1 Coríntios 12:4-7,11). Aqui tudo está nas mãos divinas. O
Espírito Santo dispensa o dom. Este deveria ser exercido no reconhecimento do
senhorio de Cristo; e Deus dá eficácia ao ministério. Quão maravilhoso é ter o
Espírito, o Senhor, e Deus como a fonte, o poder e o caráter do ministério!
Quão grande, e quão triste, é a mudança disto para o rei, os sacerdotes e o
povo! Não é isso apostasia? Mas enquanto nos opomos à mera nomeação humana ao
ofício, seja qualificado ou não, contenderíamos mais seriamente pelo ministério
da Palavra tanto para santos* quanto para pecadores.
{N.
do T.: lembrando que "santos" na Novo Testamento refere-se àqueles
salvos por Cristo, justificados (tornados justos) gratuitamente pela fé em
Jesus. "Chamados santos" (Rm 1:7).
Infelizmente
a igreja logo descobriu que o impedimento do ministério, do modo como nos é
apresentado na Palavra de Deus, e a introdução de uma nova ordem de coisas não
impediu que divisões, heresias e falsos mestres se manifestassem. É verdade que
a carne, até no mais verdadeiro e dotado cristão, pode se manifestar; mas
quando o Espírito de Deus está agindo em poder, e a autoridade da Palavra é
mantida, o remédio está em mãos: o mal será julgado em humildade e fidelidade a
Cristo. A partir dessa época - o início do segundo século, e até mesmo um pouco
antes disso - a igreja foi muito perturbada por heresias; e com o passar do
tempo, as coisas nunca melhoraram, mas sempre pioraram.
Irineu,
um cristão de grande fama, que sucedeu Potino como bispo de Lion em 177 d.C.,
nos deixou muita informação sobre o assunto das primeiras heresias. Supõe-se
que tenha escrito, no ano 183, seu grande livro "Contra as Heresias",
no qual dizem conter uma defesa da santa fé católica, e um exame e refutação
das falsas doutrinas defendidas pelos principais hereges. Irineu contra as
Heresias. Clarke, Edinburgo.
CLERICALISMO, MINISTÉRIO E
RESPONSABILIDADE INDIVIDUAL
Admite-se
que as epístolas de Inácio foram escritas apenas alguns anos após a morte de
João, e que o escritor deveria estar intimamente familiarizado com o pensamento
do apóstolo, e que em suas epístolas ele estaria apenas apresentando seus
pontos de vista. Por isso é dito que o episcopado é contemporâneo do
cristianismo. Mas pouco importa, comparativamente, por quem elas foram
escritas, ou o tempo preciso em que foram escritas: o que importa é que essas
cartas não fazem parte das Escrituras, e o leitor deve julgar o caráter delas
pela Palavra de Deus, e a influência que tiveram na história da igreja. O
pensamento do Senhor, no que diz respeito a Sua igreja e à responsabilidade de
Seu povo, deve ser aprendido por Sua própria palavra, e não pelos escritos dos
"pais", por mais pioneiros e estimados que sejam. E aqui, pode ser
interessante citar, antes de deixarmos este assunto, alguns trechos da Palavra
que o leitor fará bem em comparar com os extratos dos textos dos "pais"
citados anteriormente. Esses trechos da Palavra se referem ao ministério e
responsabilidade individual cristã. Assim, aprendemos a grande diferença entre
ministério e ofício: ou melhor, entre ser estimado por causa de suas obras, e
não meramente por seu ofício.
No
Evangelho de Mateus, do versículo 45 do capítulo 24 até o versículo 31 do
capítulo 25, temos três parábolas, por meio das quais o Senhor instrui os
discípulos quanto à conduta deles durante Sua ausência.
1.
O assunto da primeira parábola é a responsabilidade do ministério dentro da
casa -na igreja. "A qual casa somos nós." (Hebreus 3:6). Assim lemos:
"Quem é, pois, o servo fiel e prudente, que o seu senhor constituiu sobre
a sua casa, para dar o sustento a seu tempo? Bem-aventurado aquele servo que o
seu senhor, quando vier, achar servindo assim. Em verdade vos digo que o porá
sobre todos os seus bens." (Mateus 24:45-47). O verdadeiro ministério é do
Senhor, e dEle apenas. Isto é o que temos que observar tendo em vista o que
aconteceu no próprio início do cristianismo. E Ele se importa com a fidelidade
ou infidelidade em Sua casa. Seu povo é próximo e querido ao Seu coração.
Aqueles que foram humildes e fiéis durante Sua ausência serão feitos
governantes sobre todos os Seus bens quando Ele retornar. O verdadeiro ministro
de Cristo tem de tratar diretamente com o próprio Cristo. O cristão não é
mercenário de algum homem, ou de algum grupo particular de homens.
"Bem-aventurado aquele servo que o seu senhor, quando vier, achar servindo
assim". A falha no ministério é também dita e tratada pelo próprio Senhor.
"Mas
se aquele mau servo disser no seu coração: O meu senhor tarde virá; e começar a
espancar os seus conservos, e a comer e a beber com os ébrios" (Mateus
24:48,49). Este é o outro e triste lado do quadro. O caráter do ministério é
grandemente afetado pela resistência ou rejeição à verdade da vinda do Senhor.
No lugar de serviço dedicado à família, com seu coração voltado para a
aprovação do mestre em seu retorno, há presunção, tirania e mundanismo. A
condenação de tal, quando o Senhor vier, será pior que a do mundo. Ele
"destinará a sua parte com os hipócritas" - o mesmo lugar de Judas -
onde "haverá pranto e ranger de dentes" (Mateus 24:51). Tais são as
temíveis consequências do esquecimento quanto ao retorno do Senhor. Mas isto é
mais do que mero erro doutrinal ou uma diferença de opinião sobre a vinda do
Senhor. Estava "no seu coração", sua vontade vinha dali. Ele desejava
em seu coração que o Senhor ficasse longe, como se Sua vinda fosse estragar
todos os seus planos e acabar com toda a sua grandeza mundana. Não é esta uma
imagem tão verdadeira do que aconteceu? E que lição solene para aqueles que
tomam para si um lugar de serviço na igreja! A mera nomeação de soberania, ou a
escolha do povo, não será suficiente naquele dia, a menos que eles também
tenham sido escolhidos do Senhor e fiéis em Sua casa.
2.
Na segunda parábola, cristãos professos, durante a ausência do Senhor, são
representados por virgens que saíram ao encontro do Noivo para iluminar o
caminho dEle até Sua casa. Esta foi a atitude dos primeiros cristãos. Eles
saíram do mundo e do judaísmo para ir adiante e se encontrar com o Noivo. Mas
sabemos o que aconteceu. Ele tarda em vir, e todas elas caem no sono e
adormecem. "Mas à meia-noite ouviu-se um clamor: Aí vem o esposo, saí-lhe
ao encontro" (Mateus 25:6). Desde o primeiro século até o presente {* N.
do T.: Século XIX, quando foi escrito este livro}, ouvimos muito pouco sobre a
vinda do Senhor. De vez em quando, aqui e ali, uma voz fraca podia ser ouvida
sobre o assunto, mas não até o início do século XIX ouviu-se o clamor da
meia-noite. Agora temos muitos folhetos e volumes sobre o assunto, e muitos
estão pregando isto em quase todas as terras debaixo do céu. A meia-noite já
passou, e logo vem a manhã.
A
restauração da verdade da vinda do Senhor marca uma época distinta na história
da igreja. E, como todo reavivamento, foi uma obra do Espírito Santo, por meio
de instrumentos de Sua própria escolha, e por meios que Ele elaborou. E quão
grande é a longanimidade do Senhor, que em meio a esse grande movimento
instituiu um tempo entre o clamor e a chegada do Noivo para provar a condição
de cada um. Cinco das dez virgens não tinham óleo em suas lâmpadas - sem
Cristo, sem o Espírito Santo habitando nelas. Elas tinham apenas a lâmpada
exterior da profissão. Quão terrivelmente solene pensamento, se olharmos para a
cristandade a partir deste ponto de vista! Cinco dentre dez são falsas, e
contra elas a porta será fechada para sempre. Como esse pensamento deveria
mover a seriedade e energia no evangelismo! Que possamos sabiamente aproveitar
melhor o tempo que graciosamente foi dado entre o clamor da meia-noite e a
vinda do Noivo.
3.
Na primeira parábola, o assunto é o ministério dentro da casa; na terceira, é o
ministério fora da casa - o evangelismo. Na segunda parábola, é a expectativa
pessoal da vinda do Senhor, com a posse daquilo que é o requisito para ir com
Ele para as bodas do filho do Rei.
"Porque
isto é também como um homem que, partindo para fora da terra, chamou os seus
servos, e entregou-lhes os seus bens. E a um deu cinco talentos, e a outro
dois, e a outro um, a cada um segundo a sua capacidade, e ausentou-se logo para
longe." (Mateus 25:14,15). Aqui o Senhor é representado como deixando este
mundo e voltando para o céu; e enquanto Ele está ausente, Seus servos devem
negociar com os talentos conferidos a eles. "E, tendo ele partido, o que
recebera cinco talentos negociou com eles, e granjeou outros cinco talentos. Da
mesma sorte, o que recebera dois, granjeou também outros dois." (Mateus
25:16,17). Aqui temos o verdadeiro princípio e o verdadeiro caráter do
ministério cristão. O próprio Senhor chamou os servos e deu-lhes os talentos, e
o servo é responsável perante o próprio Senhor pelo cumprimento de seu chamado.
O exercício de um dom, seja dentro ou fora da casa, embora sujeito às direções
do mundo e sempre exercitado em amor e para a bênção, não é de modo nenhum
dependente da vontade de um soberano, de um sacerdote ou do povo, mas e Cristo
apenas, a verdadeira Cabeça da igreja. É algo grave e solene para qualquer um
interferir nas reivindicações de Cristo no serviço de Seu servo. Tocar nisto é
deixar de lado a responsabilidade para com Cristo e derrubar o princípio fundamental
do ministério cristão.
O
sacerdócio era a característica distinta da dispensação judaica; o ministério,
de acordo com Deus, é a característica do período cristão. Daí o fracasso da
igreja professa, quando procurou imitar o judaísmo de tantas formas, tanto em
seu sacerdócio quanto em seu ritualismo. Se uma ordem sacerdotal, com ritos e
cerimônias, é ainda necessária, a eficácia da obra de Cristo é posta e causa.
De fato, embora não em palavras, isto ataca a raiz do cristianismo. Mas tudo é
resolvido pela Palavra de Deus. "Mas este, havendo oferecido para sempre
um único sacrifício pelos pecados, está assentado à destra de Deus, daqui em
diante esperando até que os seus inimigos sejam postos por escabelo de seus
pés. Porque com uma só oblação aperfeiçoou para sempre os que são
santificados... Ora, onde há remissão destes, não há mais oblação pelo
pecado." (Hebreus 10:12-14,18)
O
ministério, então, é um assunto da mais alta dignidade e do mais profundo
interesse. Testifica a obra, a vitória e a glória de Jesus, de que o perdido
pode ser salvo. É a atividade do amor de Deus se dirigindo a um mundo alienado
e arruinado, e fervorosamente rogando por almas para se reconciliar com Ele.
"Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não lhes imputando
os seus pecados; e pôs em nós a palavra da reconciliação." (2 Coríntios
5:19-21). O sacerdócio judaico mantinha o povo em suas relações com Deus: o
ministério cristão é Deus em graça, por meio de Seus servos, libertando almas
do pecado e da ruína, e trazendo-as para perto se Si mesmo como felizes
adoradores no lugar santíssimo (santo dos santos).
Voltando
à nossa parábola, há uma coisa que deve ser especialmente observada aqui, que
mostra a soberania e sabedoria do Senhor em conexão com o ministério. Ele deu
quantias diferentes para cada um, de acordo com suas capacidades. Cada um tinha
uma capacidade natural que servia exatamente para o serviço para o qual foi
empregado, e os dons concedidos de acordo com a medida do dom de Cristo para
seu cumprimento. "E ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para
profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores" (Efésios.4:11).
O servo deve ter certas qualificações naturais para sua obra, além do poder do
Espírito Santo. Então o Senhor pode criar em seu coração, pelo Espírito Santo,
um amor verdadeiro pelas almas, que é o melhor dom do evangelista. Em seguida,
ele deve apressar-se e exercitar seu dom de acordo com sua capacidade, para a
bênção de almas e para a glória de Deus. Que possamos lembrar que somos responsáveis
por essas duas coisas - o dom graciosamente concedido, e a capacidade por meio
da qual o dom deve ser exercitado. Quando o Senhor vier ter com Seus servos,
não será suficiente dizer "Eu nunca fui educado para isso, ou nomeado para
o ministério". A questão será: "Eu esperei no Senhor para ser usado
por Ele de acordo com aquilo que ele tinha preparado para mim? Ou será que
escondi o meu talento na terra?". Fidelidade ou infidelidade será a única
coisa em questão para Ele.
Aquilo
que distinguia o servo fiel do infiel era a confiança em seu mestre. O servo
infiel não conhecia o Senhor: ele agiu com base no medo, não com base no amor,
e assim enterrou seu único talento na terra. O fiel conhecia o Senhor, confiava
nEle, e o serviu por amor, e foi recompensado. O amor é a única fonte
verdadeira de serviço para Cristo, seja na igreja ou pelo mundo afora. Que
nunca sejamos achados dando desculpas para nós mesmos, como o "mau e
negligente servo", mas que estejamos sempre contando com o amor, a graça,
a verdade e o poder de nosso bendito Salvador e Senhor.
OS SEGUIDORES IMEDIATOS DOS APÓSTOLOS
Aqui
surge uma importante pergunta, e uma que é frequentemente feita: "Em que
momento, e por quais meios, o clericalismo - todo o sistema do clero -
firmou-se com tanto afinco na igreja professa?" Para responder a essa
pergunta plenamente, seria necessário escrever em detalhes a história interna
da igreja. Sua constituição e caráter foram totalmente modificados pela
introdução do sistema clerical. Mas seu crescimento e organização foi gradual.
Argumentos foram construídos a partir do Antigo Testamento e, em um curto
período de tempo, o cristianismo foi reformulado para os moldes do judaísmo. A
distinção entre bispos e presbíteros, entre uma ordem sacerdotal e o comum
sacerdócio de todos os crentes, e a multiplicação de cargos eclesiásticos,
rapidamente se seguiram como consequência. Mas, por mais difícil que seja
traçar as incursões do clericalismo, a sinagoga era seu modelo.
Aprendemos
de todo o Novo Testamento que o judaísmo era o incansável e implacável inimigo
do cristianismo em todos os pontos de vista. Ele trabalhou incessantemente, por
um lado introduzindo seus ritos e cerimônias e pelo outro perseguindo até a
morte todos os que eram fiéis a Cristo e aos verdadeiros princípios da igreja
de Deus. Vemos isto especialmente em Atos e nas Epístolas. Mas quando os dons
extraordinários na igreja cessaram, e quando os nobres defensores da fé, nas
pessoas dos apóstolos inspirados, se foram, podemos facilmente imaginar como o
judaísmo prevalecera. Além disso, as primeiras igrejas (assembleias) eram
principalmente compostas de convertidos da sinagoga judaica, que por muito
tempo retiveram seus preconceitos judaicos.
Portanto,
acreditamos firmemente que o clericalismo brotou do judaísmo. Desde os dias dos
apóstolo até hoje a raiz de toda a estrutura e domínio do clericalismo está lá.
A filosofia e a heterodoxia, sem dúvida, fez muito para corromper a igreja e
levá-la a dar as mãos com o mundo: mas a ordem do clero e tudo o que pertence a
ela deve ter sido fundamentada na religião dos judeus. É mais que provável, no
entanto, que muitos possam ter sido persuadidos, como muitos têm sido desde
então, de que o cristianismo é uma continuação do judaísmo, em vez de serem
perfeitamente contrastantes. Os mestres judaizantes ousadamente afirmavam que o
cristianismo era meramente um enxerto sobre o judaísmo. Mas através das
epístolas, em todo lugar aprendemos que uma é terrena e a outra é celestial;
que uma pertence à antiga, e a outra à nova criação; que a lei foi dada por
Moisés, mas a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo.
OS SEGUIDORES IMEDIATOS
DOS APÓSTOLOS
Os
Pais Apostólicos, como são chamados, tais como Clemente, Policarpo, Inácio e
Barnabé, foram os seguidores imediatos dos apóstolos inspirados. Eles tinham
ouvido as instruções deles, trabalharam com eles no evangelho, e provavelmente
tinham sido familiarmente conhecidos deles. Mas, não obstante os altos
privilégios que eles gozavam como aprendizes dos apóstolos, eles logo se
afastaram das doutrinas que lhes tinham sido confiadas, especialmente no que diz
respeito ao governo da igreja. Eles parecem ter esquecido completamente - a
julgar pelas Epístolas que citam seus nomes - a grande verdade do Novo
Testamento sobre a presença do Espírito Santo na assembleia. Certamente tanto
João quanto Paulo falam muito da presença, habitação, domínio soberano e
autoridade do Espírito Santo na igreja. João 13-16, Atos 2:1, 1 Coríntios 12:14
e Efésios 1-4 dão claras direções e instruções sobre essa verdade fundamental
da igreja de Deus. Se essa verdade tivesse sido mantida de acordo com a
exortação do apóstolo - "procurando guardar" - não criar - "a
unidade do Espírito" (Efésios 4:3) - o clericalismo nunca teria achado um
lugar na Cristandade.
Os
novos mestres da igreja parecem também ter esquecido a bela simplicidade da
ordem divina na igreja. Deveria haver apenas duas ordens de ofícios - anciãos e
diáconos. Estes eram nomeados para atender às necessidades temporais, e aqueles
para as necessidades espirituais da assembleia dos santos. Ancião, ou bispo,
significa simplesmente supervisor, alguém que exerce uma supervisão espiritual.
Ele pode ser "apto para ensinar" ou não: ele não é um mestre
ordenado, mas um supervisor ordenado. E quanto aos sacramentos estabelecidos
por mandato divino, apenas encontramos, no Novo Testamento, o Batismo e a Ceia
do Senhor. Nada poderia ser mais simples, mais claro, ou mais facilmente
compreendido, como todas as direções dadas para a fé e prática, mas não havia
espaço de sobra para a exaltação e glória do homem na igreja de Deus. O
Espírito Santo tinha descido para tomar a liderança na assembleia, de acordo
com a palavra do Senhor e a promessa do Pai; e nenhum cristão, por mais dotado
que pudesse ser, crendo nisto, podia tomar o lugar de líder, e assim
praticamente despedir o Espírito Santo. Mas, a partir do momento em que essa
verdade foi perdida de vista, os homens começaram a contender por lugar e
poder, e assim, é claro, o Espírito Santo não tinha mais Seu lugar de direito
na assembleia.
Mal
a voz da inspiração tinha ficado em silêncio na igreja, e logo ouvimos a voz
dos novos mestres gritando e exigindo as mais elevadas honrarias de ser pago
como bispo, e de ter um lugar supremo dado a eles. Nenhuma palavra sobre o
lugar do Espírito como governante soberano na igreja de Deus. Isto é evidente
pelas epístolas de Inácio, que dizem ter sido escritas em 107 d.C. Muitos
grandes nomes, como sabemos, têm questionado a autenticidade delas; e muitos
grandes nomes defendem que elas foram satisfatoriamente provadas serem
genuínas. As provas de cada lado estão fora do nosso escopo. A Igreja da
Inglaterra tem, por muito tempo, as aceitado como genuínas, e as considera como
a base, e como a vindicação triunfante, da antiguidade do episcopado. A seguir
estão algumas amostras de suas advertências às igrejas.
Inácio,
no curso de sua viagem de Antioquia a Roma*, escreveu sete epístolas. Uma aos
efésios, aos magnésios, aos trálios, aos romanos, aos filadélfios, aos
esmirnenses, e uma ao seu amigo Policarpo. Tendo sido escritas na véspera de
seu martírio, e com grande seriedade e veemência, e tendo sido discípulo e
amigo do apóstolo João, sendo na época um bispo de Antioquia, provavelmente o
mais famoso da Cristandade, suas epístolas devem ter produzido uma grande
impressão nas igrejas; além do fato de que o caminho do ofício, autoridade e
poder terem sido sempre um grande encanto para a vã natureza humana.Ver Viagem
e Martírio de Inácio}
Ao
escrever à igreja em Éfeso ele diz: "Tomemos cuidado, irmãos, para não nos
colocarmos contra o bispo, a fim de que estejamos sujeitos a Deus..., pois é
evidente que temos de respeitar o bispo da mesma maneira como respeitamos o
próprio Senhor". Em sua epístola aos magnésios ele diz: "Eu vos
exorto a cuidadosamente fazer todas as coisas em divina harmonia: seus bispos
presidindo como se estivessem no lugar de Deus; seus presbíteros como se
estivessem no lugar do conselho de apóstolos; e seus diáconos, a posição mais
estimada para mim, estando encarregados do ministério de Jesus Cristo".
Encontramos o mesmo tom em sua carta aos trálios: "Enquanto estiverem
sujeitos ao bispo de vocês da mesma forma que ao Senhor, me parece que estarão
vivendo, não à maneira dos homens, mas de acordo com Jesus Cristo, que morreu
por vocês... Guardem-se de tais pessoas; e isso vocês farão se não estiverem
ensoberbecidos, mas continuem inseparáveis de Jesus Cristo nosso Deus, do bispo
de vocês, e dos mandamentos dos apóstolos". Passando por cima de várias de
suas cartas às igrejas, vamos apenas dar mais uma amostra de sua epístola aos
filadélfios: "Eu clamei enquanto estava no meio de vocês, falei em alta
voz: ‘Obedeçam ao bispo, ao presbitério e aos diáconos’. Agora alguns supõem
que disse isso prevendo a divisão que aconteceria. Mas Ele é minha testemunha,
por amor do qual estou em correntes, que eu nada sabia vindo da parte dos
homens, mas o Espírito falou...: 'Nada façam sem o bispo; mantenham seus corpos
como templos de Deus, amem a unidade, fujam das divisões, sejam seguidores de
Cristo, como Ele é do Pai'" Os extratos acima foram retirados da Tradução
de Wake. Veja também "Uma Completa e Fiel Análise dos Escritos de Inácio,
Clemente, Policarpo e Hermas". O Pesquisador, volume 2.}
Na
última citação é bastante evidente que o venerável "pai" desejava
adicionar a suas teorias o peso da inspiração. Mas, por mais extravagante e
irresponsável que essa ideia possa ser, devemos dar-lhe crédito por acreditar
no que dizia. Não temos dúvida de que ele era um cristão devoto, e cheio de
zelo religioso, mas não pode haver menos dúvida de que ele enganou-se muito
neste e em outros assuntos. A principal ideia em todas as suas cartas é a
perfeita submissão do povo aos seus superiores, ou seja, a submissão dos leigos
ao seu clero. Ele estava, sem dúvida, ansioso pelo bem-estar da igreja, e
temeroso do efeito das "divisões" às quais se refere; assim ele
provavelmente deve ter pensado que um governo forte, nas mãos dos bispos, seria
o melhor meio de preservá-la das incursões do erro. "Sejam
diligentes", disse, "em estabelecer a doutrina de nosso Senhor e dos
apóstolos, junto com o mais digno bispo entre vocês, os mais espirituais
presbíteros e os mais piedosos diáconos. Sejam sujeitos ao bispo e uns aos
outros, como Jesus Cristo era ao Pai, quando na carne; e como os apóstolos a
Cristo, e ao Pai e ao Espírito; e assim poderá haver união entre vocês, tanto
no corpo quanto no espírito". Assim, a mitra foi colocada na cabeça do
mais alto dignatário, e daí em diante se tornou objeto de ambição eclesiástica,
e não raro da mais indecorosa contenda, com todas as suas consequências desmoralizantes.
A HISTÓRIA INTERNA DA IGREJA
(107 D.C. - 245 D.C.)
Vamos
agora pisar, mais uma vez, em terreno seguro. Temos o privilégio e satisfação
de apelarmos para as Escrituras Sagradas. Antes mesmo que o cânon das
Escrituras fosse fechado, foi permitido que surgissem muitos dos erros, tanto
doutrinais quanto práticos, que vêm desde sempre perturbando e rasgando em
pedaços a igreja professa. Estes eram, na sabedoria da graça de Deus,
detectados e expostos pelos apóstolos inspirados. Se mantivermos isto em mente,
não nos surpreenderemos ao encontrar muitas coisas na história interna da
igreja inteiramente contrárias às Escrituras. Nem teremos qualquer dificuldade
em resistir a eles. Nós fomos armados pelos apóstolos. O amor ao ofício e
preeminência na igreja foi manifestado logo cedo, e muitas observâncias de mera
invenção humana foram acrescentadas. A "semente de mostarda" se
tornou uma grande árvore - o símbolo do poder político na terra: esta era e
continua sendo o aspecto externo da Cristandade; mas internamente, o fermento
fez seu trabalho maligno,"até que tudo ficou levedado". (Mateus 13:31-33)
Aqueles
que estudaram cuidadosamente Mateus 13 com outras passagens em Atos e nas
Epístolas que falam da profissão do nome de Cristo deveriam ter uma ideia
bastante correta tanto do que diz respeito ao início da história da igreja
quanto ao que se sucedeu. Ela abrange o período inteiro, desde a semeadura da
semente pelo Filho do homem, até a colheita, embora sob a semelhança com o
reino dos céus. Isto é um grande alívio para a mente, e nos prepara para uma
cena sombria e angustiante, perversamente perpetrada sob o justo nome e sob a
capa de Cristianismo. Vamos agora nos voltar para algumas dessas passagens.
1.
Nosso bendito Senhor, na parábola do joio e do trigo, prediz o que aconteceria.
"O reino dos céus", diz Ele, "é semelhante ao homem que semeia a
boa semente no seu campo; mas, dormindo os homens, veio o seu inimigo, e semeou
joio no meio do trigo, e retirou-se". No decorrer do tempo a erva cresceu
e frutificou. Essa foi a rápida propagação do Cristianismo na terra. Mas também
lemos que "apareceu também o joio". Estes são os falsos professantes
do nome de Cristo. O Senhor Jesus semeou a boa semente. Satanás, através do
descuido e falta de firmeza do homem, semeou o joio. Mas o que deveria ser
feito com ele? Deveria ser arrancado para fora do reino? O Senhor diz:"Não;
para que, ao colher o joio, não arranqueis também o trigo com ele. Deixai
crescer ambos juntos até à ceifa", isto é, até o final da era ou
dispensação, quando o Senhor vier em juízo. (Mateus 13:24-26,29-30)
Mas
aqui, alguns podem perguntar: "Será que o Senhor quis dizer que o trigo e
o joio devem crescer juntos na igreja?" Certamente que não. Eles não devem
ser arrancados fora do campo, mas devem ser colocados para fora da igreja
(assembleia local) quando se manifestarem como pessoas ímpias. A igreja e o
reino são coisas bastante distintas, embora seja possível dizer que uma (a
igreja) está contida na outra (o reino). O campo é mundo, não a igreja. Os limites do reino vão
muito além dos limites da verdadeira igreja de Deus. Cristo edifica a igreja;
os homens é que estendem as proporções da Cristandade. Se a expressão "o
reino dos céus" significasse o mesmo que "a igreja de Deus", não
deveria haver nenhuma disciplina, afinal. Mas o apóstolo, ao escrever aos
coríntios, expressamente diz: "Tirai pois dentre vós a esse iníquo"
(1 Coríntios 5:13). Mas ele não deveria ser posto para fora do reino, pois isto
só poderia ser feito tirando-lhe a vida. O trigo e o joio devem crescer juntos
no campo até a colheita. Então o Próprio Senhor, em Sua providência, vai lidar
com o joio. Eles serão amarrados em feixes e lançados no fogo. Nada pode ser
mais claro que o ensino do Senhor nessa parábola. O joio deve ser mantido longe
da mesa do Senhor, mas não deve ser arrancado do campo. A igreja não deveria
usar de punições mundanas para lidar com os ofensores eclesiásticos. Mas
infelizmente, contrariamente ao que o Senhor tinha instruído aos discípulos, é
exatamente o que acabou acontecendo no decorrer da história, como demonstra
dolorosamente a longa lista de mártires. Dores e punições foram introduzidos
como disciplina, e os insubmissos eram entregues ao poder civil para serem
punidos com fogo e espada.
2.
Em Atos 20, lemos que "lobos cruéis" apareceriam na igreja após a
partida do apóstolo. Nas Epístolas de Paulo aos Tessalonicenses - que supõe-se
serem suas primeiras epístolas inspiradas - ele lhes diz que o mistério da
iniquidade já estava operando, e que outras coisas más viriam a seguir. Ao
escrever aos Filipenses, ele lhes diz, com tristeza, que muitos andam como "inimigos
da cruz de Cristo, cujo fim é a perdição; cujo Deus é o ventre, e cuja glória é
para confusão deles, que só pensam nas coisas terrenas" (Filipenses
3:18,19). Muitos estavam se autoproclamando cristãos, mas pensando nas coisas
terrenas. Tal estado de coisas não podia escapar ao olho espiritual daquele
cujo único objeto de apreço era Cristo em glória e conformidade prática com
Seus caminhos enquanto na terra. Em sua Segunda Epístola a Timóteo -
provavelmente o último que ele escreveu - ele compara a Cristandade a "uma
grande casa", na qual há todo tipo de vasos, "uns para honra e outros
para desonra" (2 Timóteo 2:20). Esta é uma imagem exterior da universal
igreja. No entanto, os cristãos não podem deixá-la, e a responsabilidade individual
nunca pode cessar. Mas o cristão deve se limpar de tudo o que é contrário ao
nome do Senhor. As instruções são as mais simples e preciosas para os que
possuem a mente espiritual, em todas as épocas. Os cristãos não devem ter
qualquer associação com o que é falso. Tal é o significado de se purificar dos
vasos para desonra. Ele deve se limpar de tudo que não é para a honra do
Senhor. João e os outros apóstolos falam a mesma coisa, e dão as mesmas
direções divinas, mas não será necessário, aqui, se delongar mais que isso. Foi
apontado o suficiente para preparar o leitor para o que encontraremos naquilo
que se autoproclama cristão.
O PODER DA ORAÇÃO
Ao
traçar a linha prateada da graça de Deus em Seu povo amado, temos agora que
tomar nota de um relato que foi amplamente difundido entre os cristãos após o
início do terceiro século. Ocorreu perto do fim do reinado de Aurélio, e que o
levou, como dizem alguns, a mudar o rumo de sua política para com os cristãos.
Em uma de suas campanhas contra os germânicos e sármatas, ele se viu em uma
situação de extremo perigo. O sol ardente brilhava em cheio nas faces de seus
soldados; eles foram cercados pelos bárbaros e estavam exaustos por feridas e
cansaço, e sedentos: enquanto isso, o inimigo se preparava para atacá-los.
Nessa situação extrema, a 12ª legião, que diziam ser composta por cristãos,
avançou e se ajoelhou em oração. De repente, o céu ficou coberto de nuvens, e
começou a cair uma forte chuva. Os soldados romanos pegaram seus elmos para
recolher as refrescantes gotas, mas a chuva logo aumentou e se tornou uma
tempestade de granizo, acompanhada de trovões e raios, que deixou os bárbaros
tão alarmados que garantiu aos romanos uma vitória fácil.
O
imperador, perplexo com tal resposta miraculosa às orações, reconheceu a
intervenção do Deus dos cristãos, conferiu honra à legião, e emitiu um decreto
em favor da religião deles. Depois disto, se não antes, eles passaram a ser
chamados de"legião do trovão". Historiadores, a partir de Eusébio,
têm tomado nota desse marcante acontecimento.
Mas,
como uma lenda frequentemente contada, muitas coisas lhe foram acrescentadas.
Há boas razões para crer, no entanto, que uma resposta providencial em favor
dos romanos foi dada à oração. Isto parece bastante evidente. E para a fé não
há nada incrível em tal evento, embora algumas das circunstâncias relatadas
sejam questionáveis. Por exemplo, uma legião romana naquela época provavelmente
teria cinco mil homens: embora possa ter havido um grande número de cristãos na
12ª legião, que era uma legião distinta, ainda assim é difícil acreditar que
todos eles eram cristãos.
Em
seu retorno da guerra, eles sem dúvida relataram a seus irmãos a misericordiosa
intervenção de Deus em resposta à oração, pois a igreja registraria e
disseminaria a história entre os cristãos, para Seu louvor e glória. Mas os
fatos são ainda mais plenamente confirmados pelos romanos. Eles também
acreditavam que a libertação tinha vindo do céu, mas em resposta às orações do
imperador aos deuses. Assim, o evento foi comemorado, de sua maneira habitual,
em colunas, medalhas e pinturas. Nelas, o imperador é representado estendendo
as mãos em súplicas; o exército recolhendo a chuva em seus elmos; e Júpiter
lançando seus raios sobre os bárbaros, que jazem mortos no chão.
Alguns
anos depois desse marcante evento, Marco Aurélio, o filósofo e perseguidor,
morreu. Grandes mudanças rapidamente se seguiram. A glória do império, e o
esforço para manter a dignidade da antiga religião romana, expirou com ele, mas
o cristianismo fez grandes e rápidos avanços. Homens hábeis e eruditos surgiram
nessa época e, ousada e poderosamente, defendiam, usando suas penas como
instrumento, o cristianismo. Estes eram chamados de Apologistas. Tertuliano, um
africano, que dizem ter nascido em 160, pode ser considerado o mais hábil e
mais perfeito exemplo dessa classe.
Os
mais esclarecidos dentre os pagãos agora começam a sentir que, se a religião
deles tinha que suportar o poder agressivo do evangelho, ela deveria ser
defendida e reformada. Assim começou a controvérsia, e um certo Celso, um
filósofo epicureu, que dizem ter nascido no mesmo ano que Tertuliano, firmou-se
como líder do lado controverso do paganismo. Foi por volta desse período - os
últimos anos do segundo século - que os registros sobre a igreja começaram a se
tornar mais interessantes, por serem mais definidos e confiáveis. Mas antes de
prosseguirmos adiante com a história geral, seria interessante refazer nossos
passos e olhar brevemente para a história interna da igreja desde o princípio.
Veremos, assim, como algumas das coisas que ainda são observadas, e com as
quais estamos familiarizados, foram primeiramente introduzidas.
AS PERSEGUIÇÕES NA FRANÇA
(ANO 177 D.C.)
Vamos
agora nos voltar ao cenário da segunda perseguição sob o reinado do imperador
Marco Aurélio. Aconteceu na França, e exatamente dez anos após a perseguição na
Ásia. Pode ter havido outras perseguições durante esses dez anos, mas, até onde
sabemos, não há registros autênticos de nenhum até o ano de 177. A fonte da
qual derivamos nosso conhecimento sobre os detalhes desta última perseguição é
uma carta circular das igrejas de Lion e Vienne às igrejas na Ásia. Se há
qualquer alusão a esses dez ano históricos nas palavras do Senhor à igreja de
Esmirna, não podemos dizer com certeza. As Escrituras não dizem isso.
Comparando a história com a epístola, não é difícil ser sugerido tal
pensamento. "Tereis uma tribulação de dez dias". Em outras partes
desse livro de significado sobrenatural, um dia é considerado como um ano,
então pode ser o caso também da epístola à Esmirna. A história nos dá o início
e o fim quanto ao tempo, e o leste e o oeste em relação à abrangência da cena.
Mas vamos olhar agora para alguns dos detalhes nos quais a semelhança pode ser
mais manifesta.
A
prisão foi uma das principais características de seus sofrimentos. Muitos
morreram pelo ar sufocante das masmorras fétidas. A este respeito diferia da
perseguição na Ásia. A excitação popular se ergueu ainda mais alto do que em
Esmirna. Os cristãos eram insultados e abusados sempre que apareciam, e eram
até mesmo pilhados em suas próprias casas. Enquanto essa fúria popular irrompia
durante a ausência do governador, muitos eram lançados na prisão pelos
magistrados inferiores para aguardar seu retorno. Mas o espírito da perseguição
nesta ocasião, embora tenha surgido da população, não se restringia a ela. O
governador, em sua chegada, parece ter sido infectado com o fanatismo das
classes mais baixas. Para sua desonra como magistrado, ele começou o exame dos
prisioneiros com torturas.
E
o testemunho dos escravos, contrariamente a uma antiga lei em Roma, não foi
apenas recebida contra seus mestres, como também arrancada deles por meio dos
sofrimentos mais severos. Consequentemente, eles estavam prontos para dizer o
que lhes era requerido para escapar do chicote e da roda {*N. do T.: Antigo
instrumento de tortura}. Tendo provado, como diziam, que os cristãos praticavam
os mais hediondos e piores crimes em suas reuniões, eles agora acreditavam que
era correto submetê-los a qualquer crueldade. Nenhum parentesco, nenhuma
condição, nenhuma idade e nenhum sexo era motivo para ser poupado.
Vétio,
um jovem de bom nascimento e posição, e de grande caridade e fervor de
espírito, ouvindo que tais acusações eram apresentados contra seus irmãos, se
sentiu impelido a apresentar-se a si mesmo perante o governador como uma testemunha
da inocência deles. Ele exigiu ser ouvido, mas o governador recusou-se a ouvir
e apenas perguntou-lhe se ele também era um cristão. Quando ele distintamente
afirmou que era, o governador ordenou que ele fosse lançado na prisão com o
resto. Mais tarde, ele receberia a coroa do martírio.
O
idoso bispo Potino, então com mais de noventa anos de idade, sendo
provavelmente aquele que tinha, vindo da Ásia, levado o evangelho a Lion, era,
naturalmente, uma boa presa para o leão do inferno. Ele sofria de asma e mal
podia respirar, mas mesmo assim ele foi apreendido e arrastado perante as
autoridades." Quem é o Deus dos cristãos?", perguntou o governador. O
velho homem calmamente lhe disse que só poderia chegar ao conhecimento do
verdadeiro Deus se mostrasse um espírito reto. Aqueles que cercavam o tribunal
se esforçaram para conter a explosão de raiva contra o venerável bispo. Ele foi
condenado à prisão, e após receber muitos golpes em seu caminho até lá, foi
jogado no meio dos outros cristãos, e dois dias depois dormiu em Jesus, nos
braços de seu rebanho sofredor.
Que
peso de conforto e encorajamento as palavras do bendito Senhor devem ter sido
para esses santos sofredores! "Nada temas das coisas que hás de
padecer", foi o que o Senhor disse à igreja em Esmirna, e que foi
provavelmente levado também às igrejas francesas em Lion e Vienne por Potino.
Eles estavam experimentando um exato cumprimento desse solene e profético
aviso: "Eis que o diabo lançará alguns de vós na prisão, para que sejais
tentados." Eles sabiam quem era o grande inimigo - o grande perseguidor -
mesmo que imperadores, governadores e multidões pudessem ser seus instrumentos.
Mas o Senhor estava com Seus amados sofredores. Ele não apenas os sustinha e
confortava, como também manifestou, da maneira mais bendita, o poder de Sua
própria presença nas formas mais débeis da humanidade. Isto era, nos
aventuramos a dizer, uma coisa nova na terra. A superioridade dos cristãos
frente a todas as aflições de torturas, e a todos os terrores de morte, surpreendeu
totalmente a multidão, atingiu em cheio seus algozes, e feriu o orgulho estoico
do imperador. O que poderia ser feito com um povo que orava por seus
perseguidores e manifestava a compostura e tranquilidade do céu em meio às
fogueiras e feras do anfiteatro? Tome um exemplo do que afirmamos - um exemplo
digno de todo louvor, em todos os tempos e por toda a eternidade - do poder
divino demonstrado na fraqueza humana.
Blandina,
uma escrava, se distinguiu do resto dos mártires pela variedade de torturas que
suportou. Sua senhora, que também sofreu o martírio, temia que a fé de sua
serva pudesse ser deixada de lado sob tais provações. Mas isto não aconteceu,
que o Senhor seja louvado! Firme como rocha, mas pacífica e despretensiosa, ela
suportou os mais excruciantes sofrimentos. Seus carrascos lhe pressionavam a
negar a Cristo e a confessar que as reuniões privadas dos cristãos serviam
apenas para suas práticas perversas, e que então eles deixariam de torturá-la.
Mas não! Sua única resposta foi:"Sou uma cristã, e não há perversidade
entre nós." O flagelo, a roda, a cadeira de ferro quente e as feras
selvagens tinham perdido seu terror para ela. Seu coração estava fixado em
Cristo, e Ele a manteve em espírito perto de Si. Seu caráter foi completamente
formado, não por sua condição social, é claro - que era a mais degradada
naqueles tempos - mas por sua fé no Senhor Jesus Cristo, através do poder do
Espírito Santo que habitava em si.
Dia
após dia ela era levada como um espetáculo público de sofrimento. Sendo uma mulher
e uma escrava, os pagãos esperavam forçá-la a negar a Cristo, e a confessar que
os cristãos eram culpados dos crimes denunciados contra eles. Mas foi tudo em
vão. "Eu sou uma cristã, e não há perversidade entre nós", era sua
resposta calma e invariável. Sua constância exauriu a inventiva crueldade de
seus algozes. Eles estavam surpresos por vê-la viver através da temível
sucessão de seus sofrimentos. Mas em suas maiores agonias, ela encontrou força
e alívio ao olhar para Jesus e testemunhar por Ele. "Blandina foi dotada
de tanta coragem", diz a carta da igreja de Lion, escrita a mil e
setecentos anos atrás, "que aqueles que sucessivamente a torturavam de dia
e de noite ficaram muito desgastados de cansaço, e se deram por vencidos e exaustos
de todos os seus aparatos de tortura, e se espantaram de vê-la ainda respirando
enquanto seu corpo estava dilacerado e exposto." Para mais detalhes, veja
a História da Igreja, de Milner, vol. 1, p. 194}
Antes
de narrarmos as cenas finais de seus sofrimentos, devemos notar o que parece
para nós ser o segredo de sua grande força e constância. Sem dúvidas o Senhor a
estava sustendo de maneira marcante como uma testemunha para Ele, e como um
testemunho para todas as eras do poder do cristianismo sobre a mente humana,
comparado a todas as religiões que já existiram sobre a terra. Ainda assim,
poderíamos dizer, particularmente, que sua humildade e temor piedoso eram as
claras indicações do seu poder contra o inimigo, e de sua inabalável fidelidade
a Cristo. Ela estava desenvolvendo sua própria salvação - libertação das
dificuldades do caminho - por um profundo senso de sua própria fraqueza
consciente, indicada por "medo e tremor".
Em
seu caminho de volta do anfiteatro para a prisão, em companhia de seus
companheiros de sofrimento, eles foram rodeados por seus amigos entristecidos
quando tiveram uma oportunidade, e em simpatia e amor se dirigiram a eles como
"mártires por Cristo". Mas a isso eles instantaneamente responderam,
dizendo: "Não somos dignos de tal honra. A luta ainda não acabou, e o
digno nome de Mártir pertence apropriadamente a Ele somente, que é verdadeira e
fiel testemunha, o primogênito dentre os mortos, o Príncipe da vida, ou, ao
menos, apenas àqueles cujo testemunho Cristo selou pela sua constância até o
fim. Somos apenas pobres e humildes confessores." Em lágrimas eles rogaram
para que seus irmãos orassem por eles para que pudessem ser firmes e
verdadeiros até o fim. Assim a fraqueza deles era sua força, pois os levava a
apoiarem-se no Poderoso. E é assim sempre, e sempre foi, tanto em pequenas
quanto em grandes provações. Mas uma nova tristeza os aguardava em seu retorno
à prisão. Eles encontraram alguns que tinham desistido pelo medo natural, e que
tinham negado que eram cristãos. Todavia, nada ganharam por causa disso, pois
Satanás jamais os iria libertar. Sob uma acusação de outros crimes, eles foram
mantidos na prisão. Com esses fracos, Blandina e os outros oravam com muitas
lágrimas, para que pudessem ser restaurados e fortalecidos. O Senhor respondeu
suas orações, de modo que, quando levados novamente para uma examinação mais
profunda, eles firmemente confessaram sua fé em Cristo, e assim foram
condenados à morte e receberam a coroa do martírio.
Segundo
os homens, nomes mais nobres do que o de Blandina desapareceram na cena
ensanguentada, e nomes honrados também tinham testemunhado com grande coragem,
como foi o caso de Vétio, Potino, Santus, Naturus e Atálius. Mas o último dia
de sua provação tinha chegado, e a última dor que ela sentiria, e a última
lágrima que ela derramaria. Ela foi levada para seu exame final com um jovem de
quinze anos, chamado Pôntico. Eles foram obrigados a jurar pelos deuses; eles
firmemente recusaram, mas estavam calmos e imóveis. A multidão estava irritada
com a magnânima paciência deles. Todo o repertório de barbaridades lhes foi
infligido. Pôntico, embora animado e fortalecido pelas orações de sua irmã em
Cristo, logo sucumbiu sob as torturas, e adormeceu em Jesus.
E
agora vinha a nobre e abençoada Blandina, como a igreja a intitulara. Como uma
mãe que precisava confortar e encorajar seus filhos, ela foi mantida até o
último dia dos jogos. Seus filhos haviam partido antes dela, e ela estava agora
ansiando por seguir após eles. Eles tinham aderido ao nobre exército de mártires
acima, e estavam descansando em Jesus, como descansam guerreiros cansados, no
pacífico paraíso de Deus. Após ter suportado açoites, sentaram-na em uma
cadeira de ferro quente, e então ela foi amarrada em uma rede e jogada a um
touro; e tendo sido atingida algumas vezes pelo animal, um soldado mergulhou
uma lança em seu lado. Sem dúvida ela já estava morta muito antes da lança
tê-la atingido, mas nisto ela teve a honra de ser como seu Senhor e Mestre.
Brilhante certamente será a coroa, em meio às muitas coroas no céu, da
constante, humilde, paciente e perseverante Blandina.
Mas
a raiva feroz e selvagem dos pagãos, instigados por Satanás, ainda não tinha
alcançado seu limite. Eles começaram uma nova guerra contra os corpos mortos
dos santos. O sangue deles ainda não os tinha saciado. Eles queriam suas
cinzas. Assim os corpos mutilados dos mártires foram coletados e queimados, e
lançados no rio Ródano com o fogo que os consumia, para que nenhuma partícula
fosse deixada para poluir a terra. Mas a raiva, embora feroz, finalmente se
esgotaria: e a natureza, embora selvagem, ficaria cansada de derramamento de
sangue, e assim muitos cristãos sobreviveram a essa terrível perseguição.
Temos, portanto,
entrado em detalhes, mais do que o usual, ao falar das perseguições sob o
reinado de Marco Aurélio. Até então elas são um cumprimento, cremos, dos
solenes e proféticos avisos da carta à Esmirna, e também, de modo marcante, da
graça do Senhor prometida. Os sofredores foram cheios e animados por Seu
próprio Espírito. "Até mesmo seus perseguidores", diz Neander,
"nunca foram mencionados por eles com ressentimento; mas eles oravam a
Deus para que fossem perdoados aqueles que os tinham sujeitado a tais cruéis
sofrimentos. Eles deixaram um legado para seus irmãos, não de conflito e
guerra, mas de paz e alegria, unanimidade e amor."
Dou graças a Deus, a quem desde os meus antepassados sirvo com uma consciência pura, de que sem cessar faço memória de ti nas minhas orações noite e dia;
Desejando muito ver-te, lembrando-me das tuas lágrimas, para me encher de gozo;
Trazendo à memória a fé não fingida que em ti há, a qual habitou primeiro em tua avó Lóide, e em tua mãe Eunice, e estou certo de que também habita em ti.
Por cujo motivo te lembro que despertes o dom de Deus que existe em ti pela imposição das minhas mãos.
Porque Deus não nos deu o espírito de temor, mas de fortaleza, e de amor, e de moderação.
Portanto, não te envergonhes do testemunho de nosso Senhor, nem de mim, que sou prisioneiro seu; antes participa das aflições do evangelho segundo o poder de Deus,
Que nos salvou, e chamou com uma santa vocação; não segundo as nossas obras, mas segundo o seu próprio propósito e graça que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos dos séculos;
E que é manifesta agora pela aparição de nosso Salvador Jesus Cristo, o qual aboliu a morte, e trouxe à luz a vida e a incorrupção pelo evangelho;
Para o que fui constituído pregador, e apóstolo, e doutor dos gentios.
Por cuja causa padeço também isto, mas não me envergonho; porque eu sei em quem tenho crido, e estou certo de que é poderoso para guardar o meu depósito até àquele dia.
Conserva o modelo das sãs palavras que de mim tens ouvido, na fé e no amor que há em Cristo Jesus.
Guarda o bom depósito pelo Espírito Santo que habita em nós.
2 Timóteo 1:3-14
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